Um Rei para Hawktall

Capítulo I


CATELINE

Não conseguiu fechar os olhos durante toda a noite, com medo de não acordar a tempo de sair sem que a mãe a sufocasse em um turbilhão de perguntas. Vestiu rapidamente a túnica de lã de coelho que se estendia até suas canelas e atou o belo cinto de prata em sua cintura. Ainda sentia raiva de quem o deu de presente, mas era um dos poucos bens belos e de valor que possuía, nem mesmo Hudde merecia que tal objeto mofasse nos cantos escuros do que ousava chamar de guarda-roupas.

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Pegou sua lira e saiu para o frio da manhã. Deixou para calçar as botas já do lado de fora do casebre, não queria correr o risco de acordar algum dos irmãos.

— Bom dia, Amuleto — acariciou a crina branca sobre o espesso pelo preto. Costumava brincar que o cavalo era como a noite: o céu negro era seu corpo, possuindo a Lua na cabeça — Vamos logo, não queremos nos atrasar.

Cavalgaram a todo galope até a cidade, precisava chegar rápido à Fortaleza Negra, atual sede da Família Caillot, se pretendia ter algum lugar entre os músicos que iriam aformosear os próximos eventos reais.

Havia se passado uma quinzena desde que a enorme bandeira negra foi pendurada na torre mais alta do palácio, informando todo o reino de Hawktall que a Rainha Aldith estava morta.

Uma multidão acompanhou a liteira que levou o elegante caixão até porto. O Rei Aloys não poupou honrarias à sua amada esposa, nem oferendas à Prussiya em prol de sua alma. Como qualquer membro das ricas famílias de Hawktall, era de se esperar que Aldith fosse levada a alto mar por um veleiro e não a bordo de uma balsa ou canoa qualquer, mas Aloys foi além.

O maior Galeão da Frota Real foi preparado para levar a Rainha para o Ritual de Reencarnação. Suas velas, antes brancas, agora eram negras, e na proa um enorme lobo de prata refletia a luz do luar. Não foram usadas flechas flamejantes, mas sim um enorme canhão que disparou quando o Rei terminou suas orações.

Enquanto o corpo terreno de Aldith queimava, deixando sua alma livre para retornar ao oceano, Cateline lembrou-se de ver choro, orações e canções fúnebres por todos os cantos… os lamentos dos apaixonados súditos. No entanto, tão pouco tempo depois, o que via agora era a animação pelos festejos do grande evento. Um luto muito curto para dor aparentemente tão grande

Cateline não havia chorado, não tinha nenhum apreço emocional pela Família Caillot. Eram bons governantes, traziam prosperidade e paz para o reino, isso não podia negar, mas não eram exatamente o que chamaria de amáveis.

A rainha morreu sem que Cateline tivesse um vislumbre dela, nem mesmo de longe. Em quase vinte anos, ela nunca foi vista fora do palácio, e nem mesmo dentro dele… quando haviam festividades e os portões eram abertos para todo o povo, Aldith se trancava com a princesa, longe de todos os olhos. Dela, só se viam os quadros. Da princesa, nem isso.

A mãe de Cateline contou certa vez que, há quase duas décadas atrás, tudo era diferente. Rei Aloys e a Rainha Aldith andavam de braços dados por entre o povo, sendo atenciosos do menor vendedor da feira ao mais poderoso barão. Quando a gravidez da rainha foi anunciada, houve um grande banquete no palácio e todo o reino brindou à saúde do herdeiro que viria. Mas os brindes pouco adiantaram.

A peste tomou conta do reino nos últimos dias de gestação da rainha. No parto, ela deu a luz à duas belas crianças: príncipe Lenber e princesa Marey. Diziam que os cabelos eram negros como os dela e que ambos nasceram com plena saúde. O fato é que mesmo nascendo saudáveis, não permaneceram assim por muito tempo, ao menos não ambos.

Príncipe Lenber apresentou febre três dias após seu nascimento, mais tarde as dores tomaram conta da pobre criança e todo o reino podia ouvir seu choro. Sacerdotes e fiéis fervorosos montaram vigílias em frente ao palácio para orar por sua recuperação, oferendas foram entregues ao mar, na esperança de cativar a misericórdia de Prussiya, mas tudo fora em vão. Em seu vigésimo dia, a vida deixou-lhe o corpo.

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Quem o colocou no caixão dizia que o inchaço tomou tamanha proporção que deformou seu rosto angelical, o que fazia a rainha repetir aos gritos de desespero que aquele não era seu bebê, que haviam tirado o pequeno Príncipe Lenber dela e que voltariam para buscar a Princesa Marey.

Passaram-se dezoito anos desde então, diziam que a sanidade abandonou por completo a Rainha Aldith, que se entregou à tristeza. Ela mantinha a princesa Marey escondida de tudo e todos, na esperança de que se alguém realmente viesse busca-la, poderia protege-la. Por isso, jamais ninguém no reino havia visto a princesa, exceto a refugiada da guerra a quem chamavam de sua dama de companhia, Cecil; o Alto Juramentado do Rei, Vynnel Snotra; e o próprio Rei Aloys.

Mas com a morte da Rainha as coisas pareciam estar mudando. O Rei decidiu dar início a um grande torneio, aonde o campeão seria premiado com a honra de acompanhar a Princesa Marey em seu baile de apresentação à Corte, além de uma pequena fortuna em ouro e prata e um lugar no Conselho do Rei. Claro que isso não enganava ninguém, todos comentavam o real motivo do evento: unir os principais bons partidos do reino para escolher um marido para a princesa. Entregando a própria filha como um troféu… Os pensamentos de Cateline foram silenciados quando chegou ao maestro encarregado das audições.

Havia saído de casa com sua lira e estava decidida a inscrever-se para tocar durante a grande festa. Não nasceu homem e não podia competir por tantas riquezas, mas de alguma forma lucraria com o torneio. A família precisava que lucrasse. E Cateline não possuía o hábito de assistir as pessoas se beneficiarem ao seu redor sem ao menos tentar se beneficiar também. Além do mais, aquele torneio já havia tirado dela coisas demais, sentia como se lhe devesse algo. Mas não queria pensar nisso agora, evitar o assunto fazia com que a mágoa parecesse menor.

O auditor pediu para ouvir um pouco do que ela seria capaz de fazer. Ao passar os dedos pela lira, não houve um só presente na fila que conseguisse conter a emoção. Foi assim que conseguiu participar do torneio… com sua música.

Enquanto caminhava novamente em direção a Amuleto, vislumbrou a Torre da Princesa. Ao montar o cavalo, o fez trotar até lá, imaginando como seria ter uma pequena vista da disputada moça. Em um devaneio momentâneo, a imaginou caindo devagar, metro após metro, até chegar ao chão.

— Aposto que se ela tivesse uma boa quantidade de ossos para consertar, o Rei desistiria desse torneio absurdo e Hudde voltaria… — o cavalo deu um trote mais forte, parecendo ralhar com Cateline. — Sim, eu sei, eu sei. Não devo desejar o mal à nossa princesa. Me desculpe, mas… você não devia ser tão piedoso assim. Nem parece que é meu.

Chegaram então ao pé da torre. Cateline podia ouvir risos vindos da janela. Rindo apenas quinze dias após a morte da mãe? Talvez nós tenhamos mais em comum do que pensamos, princesa. E de súbito, uma intensa vontade de saber mais sobre Marey a invadiu.