Desvios

Capítulo 9 - Resolva-se


O jogo rolava solto no ginásio do colégio do Limoeiro. Era domingo à tarde, e o time principal havia sido convocado para treinaram, já que o próximo jogo era contra o bairro Pitangueira, e ninguém queria perder.

Cebola corria pelo campo tentando passar a bola para alguém. Titi estava sendo marcado, e Jeremias não era alguém a quem Cebola conseguiria chutar a bola. Então eis que surge o craque do Limoeiro, Cascão.

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— Joga pro Titi, Careca – gritou ele, enquanto corria para não ser marcado. Cebola assentiu em resposta, pois sabia o que Cascão estava tramando.

Ao ver a bola se aproximando, Cascão pensou em duas coisas: a primeira era que o Careca podia ser bem ruim de mira quando queria, e a segunda era que ele estava ali para sanar isso. Cascão pulou e a bota ricocheteou em seu peito, caindo em seguida. Ele correu, desviando de vários obstáculos humanos, e ao chegar perto do gol, chutou. Xaveco tentou defender, inutilmente. Foi gol.

Cascão ergueu o braço e bateu a palma com a do Cebola. Ele estava feliz, depois de tudo o que aconteceu com Cascuda, ele sentia alegria. Uma felicidade que ele achava ter perdido por jogar. Os tapinhas amigos e as reclamações de Xaveco faziam parte do cenário.

De certa forma, ele estava livre de obrigações, de encontros e compromissos. Jogar com os amigos não era uma obrigação.

— A gente tem que tirar os times de novo – falou Xaveco.

Os garotos se entreolharam.

— Bom, eu vou com o Cascão aqui – Cebola deu tapinhas nas costas do amigo.

— Nada disso, o Cascão vai no meu time – disse Titi.

— Af! Eu quero ganhar uma vez na vida! – Xaveco choramingou, cruzando os braços.

— Calma, calma – Cascão levantou os braços em sinal de rendição. – Tem Cascão para todo mundo.

— Menos para fazer trabalho, não é, Cascão? – falou uma voz distante, e, dada a situação, muito nítida para o rapaz.

O time todo se virou e viu a garota, com seus longos cabelos negros presos, uma bermuda jeans e uma camisa das Star Stars rosa, combinando com sua sapatilha rosa claro. Ela começou a andar em direção a eles, e para quem acompanhasse de fora, não imaginaria a fúria da menina. Os meninos formaram um círculo deixando Cascão no meio e liberando a passagem para Magali.

— Você esqueceu o trabalho? – perguntou ela. Seu tom de voz era ameno, típico dela, e no entanto, Cascão já brigou com a garota outras vezes, aos berros. Se ela não gritou com ele, então talvez não fosse tão ruim. Talvez não fosse como a Cascuda.

Cascão engoliu a seco.

— Ah, o trabalho do Louco? – perguntou, lembrando-se de repente.

— Sim. – respondeu Magali. – O trabalho que você deixou eu fazer sozinha – Ela estendeu uma folha de papel almaço escrita inteiramente em uma caligrafia bonita. Não era como a de Carmem, tinha um estilo próprio. Cascão viu o seu nome na capa cheia de flores desenhadas e a consciência fez com que ele sentisse culpa.

— E-eu... eu – Aquilo não era como das outras vezes. Cascão estava tão habituado com os berros de Cascuda, era normal eles brigarem e então fazerem o trabalho juntos, ou ela fazer tudo sozinha e colocar o nome dele só depois. Mas Magali ter apoiado o garoto, depois que quase todas as outras meninas o olharem torto após o término, e ainda manter a calma – ao menos na frente dos outros – tornava tudo mais difícil. Até mesmo pedir desculpa. – Eu esqueci, Magá.

— E quando você não esquece? – perguntou ela. Magali pegou o trabalho e olhou para a capa. – Tanto faz.

Deu as costas e voltou a andar, desta vez em direção à saída. Um tanto faz machucava mais que gritos. Cascão olhou para os amigos, que já estavam até acostumados com o temperamento das meninas da turma e não expressavam muita emoção além de impaciência.

— Então, vamos jogar? – perguntou Jeremias.

Os outros voltaram a discutir quem iria com quem, quando Cebola se aproximou de Cascão e murmurou:

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— Você foi um vacilão, hein?

O quê?! Ele estava recebendo conselhos do Careca, depois de tudo que o amigo fez? Não, como assim? Não era para tanto, ou era?

Cascão olhou para Cebola, que já tinha se afastado e para todos os outros. Então viu o ginásio e encarou a bola aos seus pés. A capa do trabalho e a frase “tanto faz” ecoaram na cabeça do garoto.

Ele começou a correr.

— Foi mal, galera. Tenho uns lances para resolver. – avisou, correndo para longe dali.

Cascão não encontrou Magali ao sair da escola, pensou que a amiga tivesse corrido. Será que Cascão havia feito Magá desmarcar algo com Quim?

Ele caminhou vagarosamente pela rua até chegar na casa de Magá, e crente que não iria encontrá-la, bateu palmas. Houve um breve instante em que Cascão esperou, até a porta se abrir rapidamente. Ele olhou nos olhos de Magali, que cruzou os braços.

— O que você quer, Cascão? – Ela perguntou, desviando o olhar.

— É que, hum – Cascão se perguntou o que mais ele tinha feito de errado além de esquecer do trabalho, afinal, era só mais um trabalho, e apesar de Magali não tirar notas tão boas quanto a Cascuda, ela não tinha problema nenhum com boletim. Ele, ao contrário...

Magali voltou a olhá-lo.

— Cascão, eu coloquei seu nome no trabalho. Se é isso que você quer dizer. – Cascão quase ficou com raiva. Por que tanta frieza? Por acaso ela tinha virado a Princesa de Gelo*? Essa não era a Magali que ele conhecia.

— Não, Magali. Não é isso que eu quero dizer. – Ele cruzou os braços. – Se você fosse um pouco menos grossa, eu podia até falar que foi mal. O que que tá rolando?

Magali fechou a porta atrás de si e caminhou com passos duros até Cascão. Ela ficou frente a frente com ele, e o fuzilou com o olhar.

— O que tá rolando? Bem, eu vou dizer o que tá rolando. – respondeu ela. Cascão conseguia sentir a raiva dela, e preferia quando ela gritava com ele, por mais estranho que isto possa parecer. – O que tá acontecendo, Cascão, é que eu estou tentando te ajudar. Eu sei como eu fiquei triste quando o Quim e eu terminamos, e você me ajudou a amenizar isso. Só que você não colabora. Como sempre, você deu bolo em quem está se importando contigo para jogar, é sempre assim. – Ela parou um pouco. E então balançou a cabeça, direcionando o olhar para os pés. – Eu não estou brava porque você está feliz jogando, pelo contrário, estou feliz. Eu só queria que valorizasse um pouco mais o que fazem, ou tentam fazer por você.

Cascão recuou alguns passos. Então Magali não estava chateada só pelo trabalho? Ela queria que ele se divertisse? A culpa estava o consumindo.

— Olha, Magá. Foi mal eu ter te deixado grilada, e eu agradeço por você ter feito o trabalho e tal, mas eu sou assim, esquecido. – Ele explicou.

— Eu sei. – respondeu ela. – Eu não devia ter sido tão grossa, é que estou tão cansada, apesar de isto não justificar nada. – Magali suspirou. – Então tá tudo bem. Você tem que ir lá jogar. – Ela deu um sorriso.

— O que tá te deixando cansada? – perguntou Cascão. Magali ajeitou uma mecha de cabelo, e olhou para o chão. Ela continuou encarando, sem piscar. Cascão se perguntou, como uma piada interna, se aquilo era fome.

De repente, ela começou a chorar.

Cascão já tinha visto Magali chorar várias vezes, mas qualquer pessoa chorando dava agonia a ele. O garoto encostou uma mão no ombro de Magá.

— Eu não sei o que está acontecendo, Cas – murmurou ela. – Eu-eu não sei. O Quim, ele... ele está tão distante e eu... Eu não sei o que eu faço. – Ela se agachou e abraçou seu corpo. Cascão olhou para a rua quase vazia. Se alguém visse Magá naquele estado, ela ficaria bem chateada. – É como saber que o fim está próximo e tentar evitar sem saber como. – Ela soluçou. – Isso foi tão dramático. Eu devia parar com isso. Fico pensando em tudo isso quando vou dormir e não consigo descansar direito. Tenho pesadelos. E eu sei que o Quim não me trairia, no entanto eu, apesar de eu amá-lo, queria que ele estivesse presente aqui. – Ela se abraçou mais. – Mesmo agora.

Cascão também se agachou. Ele não sabia o que fazer, nem o que pensar. Tinha raiva do Quim por tê-la feito chorar, só que também tinha feito a Cascuda chorar. E se Cascuda sentiu a mesma coisa que Magá? E se o culpado foi ele que era desatento com tudo?

Ele fez carinho no braço dela, até ela parar de chorar. Então ergueu-se e estendeu a mão para que ela também se levantasse. Ela aceitou.

— Magá, você precisa conversar com o Quim. Ele e você são perfeitos um pro outro. – disse Cascão.

Magali passou as mãos no rosto e suspirou.

— Assim como você e a Cascuda? – perguntou ela.

Se Magali continuasse fria com ele, teria doído menos.

— Sim. Exatamente. E é por isso que eu quero um namoro que dure, mesmo que não seja o meu. – Não era inteiramente verdade. Ele, de fato, queria que Magá fosse feliz, e também queria ser ele feliz.

— Eu já tentei falar com o Quim. Ele só desvia o assunto. – Magali mexeu os pés, impaciente.

— Magá, eu agradeço. Sério, valeuzão. A gente sai outro dia para fazer alguma coisa. – falou Cascão. – Mas agora você precisa se resolver com o Quim. Posso não ser ele, porém estou aqui pra você. – Cascão não queria vê-la chorando de novo. E se ele não foi capaz de salvar o namoro dele, talvez pudesse aconselhar Magá para que ela salvasse o dela.

Magali pensou um pouco. Cascão se perguntou o que ela pensava. A garota jogou os braços ao redor dele e o abraçou, então olhou nos olhos dele e disse:

— Você tem razão. Como posso te ajudar assim? Eu vou até o Quim.

Não era mais a Magali chorona, ou fria, era a decidida, a Magali que aconselha e que não tem vergonha de correr atrás do que quer. Ela deu outro abraço rápido em Cascão, e assim que o garoto saiu do jardim da casa dela, Magá fechou o portão e correu.

“Talvez, se eu fosse um pouco mais preocupado, eu fosse capaz de me resolver”, pensou o garoto. Então deu de ombros, pois ele não era o Cascão preocupado. Era o tranquilo e esquecido Cascão, e ele não via problema em continuar assim.