Malchance

Capítulo 1


Dentre todas as coisas ruins que poderiam acontecer em sua vida, tornar-se Chat Noir era definitivamente a pior delas.

É claro que era indescritível a sensação de deter poder para salvar alguém. Quando estava transformado, não existiam impotência ou limites ‒ o que, de certo modo, era problemático, ao incentivar uma impulsividade com que ele ainda não aprendera a lidar.

No entanto, Félix era perspicaz e não demorou a entender que deslumbrar-se com as habilidades que Plagg lhe concedera só iria dificultar seu trabalho e que toda aquela liberdade era ilusória. Afinal, ele não deveria ser apenas um herói ‒ e sim, um herói amaldiçoado.

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E as consequências da maldição do azar era problemáticas, cansativas e ligeiramente perturbadoras.

― Não se preocupe ‒ comentou Plagg, ao sair de sua mochila. Já avisara àquele bichinho irritante para não se denunciar dessa forma, mas ele nunca o obedecia de qualquer maneira. ‒ Quando o garoto estiver pronto, você não vai mais precisar passar por isso.

― Espero que não tenha esquecido o que eu te disse sobre machucar o Adrien.

E o "bichinho irritante" assentou-se sobre a cabeça do rapaz, para irritá-lo mais e fazer jus à alcunha.

― Claro que não esqueci. Não é todo dia que me ameaçam de morte. ‒ Aquele adolescente emburrado era um idiota por pensar que era capaz de ameaçar uma criatura milenar como ele. ‒ E por que eu iria ferir a quem pertence esse anel? Sua superproteção em relação a ele é patética.

― Estou lisonjeado.

Não continha o sarcasmo ácido com o kwami, aquela miniatura igualmente sarcástica, porém preguiçosa e esfomeada.

Adrien deveria ser o verdadeiro Chat Noir, porém ainda era muito novo e despreparado quando Plagg surgiu na mansão Agreste. Sendo assim, Félix assumiu seu lugar temporariamente, com a garantia de que o irmão menor iria receber toda a instrução necessária quando fosse o momento apropriado. E por não ser o legítimo proprietário do anel, foi amaldiçoado.

Alguns aspectos da maldição eram apenas irritantes ‒ tropeçar nos últimos degraus das escadas com frequência, ser atingido por ciclistas ao caminhar pela cidade, queimar a língua com café toda bendita manhã.

Contudo, o que eram apenas empecilhos cotidianos no início estavam se tornando acidentes graves numa velocidade impressionante. Por esta razão passara a vir andando do colégio: era capaz de lidar com todos os sinais vermelhos em sequência no trânsito, mas pôr a vida de Nathalie em risco porque se tornara um ímã de desastres num veículo em movimento era intolerável. Assim, comunicara-a de que voltaria por conta própria todos os dias. Agradeceu mentalmente pela confiança que ela tinha em seu bom senso e responsabilidade para aceitar o pedido sem questionamentos.

E não era esta nem de longe a pior parte de ser um gato amaldiçoado. Como Chat Noir, sua habilidade era o Cataclysm ‒ e com isso era capaz de destruir absolutamente tudo que tocava. Entretanto, se em condições normais o poder era ativado com base na vontade de quem o utilizava, para ele o gatilho eram as próprias emoções. Um breve acesso de euforia na primeira vez em que se transformara fez com que todo um jardim se tornasse pó.

Com relutância, passara a evitar os gatos (já que, ao contrário das pessoas, a companhia dos animais lhe era muito bem vinda). No entanto, agora ele era uma espécie de felino e tinha um poder de atração muito maior entre seus semelhantes. Um desses encontros se mostrou fatal ‒ deixara escapar uma carícia terna e, antes que pudesse impedir, viu com os próprios olhos o que o Cataclysm poderia fazer a um ser vivo. Durante semanas, reviveu a catástrofe em seus pesadelos, principalmente quando, ao carregar o cadáver nos braços para enterrá-lo, foi acometido pela culpa e pelo pânico e pulverizou o que restara do pobre animal.

Aprendera com o terrível acidente que, a partir do momento em que aceitara aquela responsabilidade e aquela maldição, suas emoções eram perigosas demais e manter-se estoico era a única maneira de impedir outra morte. Mas era complicado estar sempre atento às mudanças bruscas de temperamento ‒ como raiva, melancolia e alívio.

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Na escola, uma das garotas o perseguia, declarando diversas vezes seus sentimentos para que ele os retribuísse. Já lhe dissera "não" muitas vezes, mas a insistência dela em desrespeitar sua decisão começara a incomodá-lo, e aborrecimento era uma das maneiras mais fáceis de ativar o Cataclysm. Ou seja, a precaução era redobrada perto dela, pois não queria experimentar novamente os efeitos devastadores em alguém que mal conhecia.

E se exigir de si mesmo a impassibilidade perto de estranhos era complicado, em casa era praticamente impossível. Porque havia Adrien, e não sabia como agir com apatia quando era ele o envolvido. Entretanto, nunca poderia chegar perto do menino ou se deixar levar pelas emoções quando estava tão instável. Não podia confiar no próprio controle, não quando era a vida dele em risco.

Mas mesmo ele percebera seu distanciamento sutil, assim como suas doses cada vez maiores de café (salvar Paris durante a noite diminuía em muito seu tempo de sono) e seus sumiços noturnos. Além disso, a relação entre eles sofrera uma brusca e inconveniente transformação com a qual Félix ainda não se acostumara ‒ e pelo que podia notar, Adrien também não. É claro que ainda podiam conversar, mas o cuidado em evitar qualquer contato físico ― um simples esbarrão, dar as mãos ou abraçá-lo ― tornava tudo tão artificial, e tão estranha cada conversa.

Contudo, não podia desistir ‒ não quando estava fazendo aquilo por ele. E ao chegar a casa e refugiar-se no quarto foi o garoto que encontrou, com não pouca surpresa. Havia receio nos olhos infantis a indagá-lo, o que deveria ser ideal diante da ameaça que ele representava.

― Mano, você está bem?

― Só estou... um pouco cansado. ‒ Exausto, para falar a verdade.

― Suas olheiras estão enormes.

― Estou lendo por mais tempo que deveria. ‒ Desviou os olhos diante da preocupação genuína. As desculpas eram tão difíceis.

― Que história? ‒ Um pouco tímido, lhe pediu: ‒ Você pode ler para mim esta noite?

― Sinto muito, Adrien. ‒ E seguiram-se as palavras dolorosas que repetia com cada vez mais frequência: ‒ Vou estar ocupado.

― Ah... ‒ Era nítido o seu desapontamento, e o irmão mais velho não suportava ouvi-lo tão triste. ‒ Talvez da próxima vez...

― E como foi o seu dia? ‒ perguntou para distraí-lo das questões mais complexas. ‒ Também parece cansado.

― Hoje Chloé veio aqui de novo.

Chloé era uma menininha autoritária e egoísta, mas também a única companhia que Adrien tinha de alguém da própria idade. Se Félix não era capaz de gostar dela, ao menos podia suportá-la. E alimentar qualquer tipo de sentimento sobre qualquer um, principalmente os negativos, estava vetado para ele.

― Vocês dois se divertiram?

― É, nós brincamos juntos ― Havia ressalvas em sua afirmativa, e logo completou: ― Mas levamos uma bronca da Nathalie.

― Por quê? ― Embora já soubesse que ele se responsabilizara por algo que era culpa somente dela.

― Não devíamos sair do jardim, mas Chloé quis brincar lá fora ‒ explicou o menino, e Félix compreendera antes que ele terminasse. Adrien era gentil e atencioso demais para permitir que alguém se colocasse em risco quando ele podia ajudar. ‒ E eu não podia deixar ela sozinha.

― Precisa aprender a dizer não à senhorita Bourgeois.

Em condições normais ‒ com uma vida normal ‒ ele teria afagado a cabeça do garoto nesse momento para atenuar o que dissera. Afinal, afastado como estava, mais parecia repreendê-lo, ainda que se esforçasse para ser o mais suave possível. Mas as mãos o traíram: moveram-se sozinhas e, ao perceber, refreou os dedos estendidos e enfiou-os pateticamente nos bolsos.

Seu pequeno dilema não foi sutil o bastante para que Adrien não o notasse. E teve de assistir impotente enquanto as feições dele entristeceram.. Ele não podia chorar. Não podia. Se chorasse, seria impossível não abraçá-lo. Impossível deixar de garantir a ele que tudo iria terminar bem. E isso não era permitido. Não era quando podia desintegrar tudo que tocava.

Pela visão periférica, enxergou no quarto algo que definitivamente não estava lá quando o deixara pela manhã. O irmão mais novo acompanhou seu olhar e lembrou-se do motivo pelo qual estava ali.

― Ah! ...É um desenho que fiz hoje. ‒ Mais parecia uma criança apanhada em meio a uma travessura ao oferecer a ele o papel. ‒ É seu, se quiser.

Era um esboço simples e infantil ‒ toda a família, representada como bonecos desproporcionais e rabiscados. Estavam o pai e a mãe juntos, e Adrien entre a mãe e Félix. Todos estavam de mãos dadas, ainda que os braços fossem apenas linhas que se encontravam e se entrelaçavam.

― Ainda bem que você não pretende ser designer de moda ‒ admitiu, e enfim conseguiu que o menino desse uma risada. Permitiu-se um sorriso cuidadoso também. ‒ Obrigado, Adrien.

Foi somente quando o garoto o deixara sozinho no quarto, somente quando havia uma porta como medida de segurança entre eles, que Félix se permitiu extravasar o que sentira com aquele breve encontro.

Culpa. Desespero. Angústia. Mágoa.

Antes que pudesse soltar o papel, parte dele já havia se tornado pó. Ao menos o largara antes de maiores danos, e a folha ao atingir o colchão de sua cama estava apenas parcialmente destruída. O pedaço do desenho em que ele estava não existia mais. E as mãos de Adrien, aquele emaranhado de linhas conectadas às suas, haviam desaparecido também. Como uma demonstração do que era capaz de fazer ao irmão caso fosse descuidado.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.