Miro seu corpo esguio sentar-se sobre um dos degraus da escada. Um cigarro descansa entre seus dedos. Seus olhos se erguem — apenas um pouco — para observarem a imensidão celeste estendida sobre si. Tudo em você é tão contido, tão elegante. Mas a forma como você aperta seus pulsos e morde o lábio inferior lhe sugere insegurança. Não faz mal, eu também sou assim. Sinto outra dor lancinante nos ombros. Talvez eu seja a reencarnação de Atlas.

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Nossos olhos quase se encontram quando você os afasta do céu. Sinto meu coração pulsar ainda mais rápido e minha respiração sufocando-me por um milésimo de segundo, mas logo toda essa agonia passa quando você apenas volta a encarar o vazio atrás de mim. A melancolia o constrói. A postura impecável o torna tão forte…

Você traga o fumo e depois de alguns segundos o solta pelo ar, a fumaça espiralando num arco que desaparece aos poucos. Percebo-me tão incontrolavelmente apaixonado, por mais clichê que isso possa parecer. Tudo em você é tão belo, tão extraordinário! Adoro o jeito como você suspira, como as madeixas pálidas de seu cabelo balançam conforme o sussurro tímido do vento. Todos os dias vejo você sentar-se sobre essa mesma escada no mesmo horário, em plena meia-noite. Tenho tanta vontade de beijar a curva de seu pescoço, o lóbulo de sua orelha, os diversos sinais espalhados em seu rosto. Sua pele morena, como um todo, deixa-me arrepiado. Mas apenas observo-te como se fosse um paraíso perdido, intocável.

Você se levanta, com a guimba do cigarro jogada no chão e pisada pelo seu pé. Minha garganta é uma mistura de medo e bile e ansiedade, escalando minha traqueia e arranhando-a durante o percurso. Fecho meus punhos e ponho tanta pressão neles que sinto minhas unhas contra a palma e libertando sangue. Deve ser hoje. Preciso dizer a ele.

Com passos duros, saio detrás da moita com suas folhas secas e surjo em seu campo de visão. Você me olha enquanto desce as escadas, e posso sentir seu medo em perceber que, sim, a rua está completamente vazia e você se vê cercado por um estranho. Mas não consigo dizer nada, pois estou absorto demais mirando seus belos olhos. Eles são uma imensidão castanha, lindos e maravilhosamente profundos.

— Quer alguma coisa?

Sua voz desperta-me dos devaneios.

— N-Não é nada! — Cada sílaba minha parece atropelar as demais, formando uma frase quase que indecifrável. Percebo algo escorrendo de minhas mãos. Era sangue. Escondo-as no bolso de meu casaco rapidamente. — Só queria... Te conhecer.

— Ah — Ele era de uma beleza comum, porém estranhamente única. O som de sua voz parecia um cântico das misteriosas histórias fantasiosas que tanto já escutara. — Bem súbito isso, não?

— Bem, é que eu já o tinha visto antes — Eu me sentia patético. Ali, com as mãos sangrando dentro do bolso do casaco, o suor escorrendo pelo rosto e o cheiro do perfume barato contornando-me. —, então queria... Falar com você.

— Antes quando? — ele perguntou, desconfiado. Droga, droga, droga! Ele descobriria, sem dúvida que sim. Descobriria que desde o mês retrasado, em agosto, que eu apreciava sua imagem franzina por trás das moitas de flores com espinhos traiçoeiros.

— Desde... Alguns minutos. — menti. Uma mentira amadora e facilmente detectável, a julgar pelo meu nervosismo. Tentei mudar de assunto. — Você fica muito por aqui?

— É, bem… Aqui era onde eu costumava ficar com ele até que... — Você franze a testa, e leva uma das mãos à têmpora como se sofresse de uma forte dor de cabeça. — Quer saber? Isso não importa.

Então os últimos degraus são percorridos e você agora encara-me a alguns centímetros de distância. Sua cabeleira, meio cor de mel, meio grisalha, emana um refrescante cheiro de morango — e tabaco.

— Sinto muito.

— Não sinta. — Sua voz ríspida espeta meu coração, fazendo com que eu solte uma exclamação de dor em meu íntimo. — Ele não vai mais voltar.

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Silêncio. Desconfortante.

— O que aconteceu? — resolvo perguntar, ignorando todos os alertas de "não faça perguntas!" em minha mente.

Você suspira, mas parece assentir.

— Acho que não custa nada contar.

Vejo suas costas e logo em seguida você volta a se sentar na escada. Há um espaço reservado ao seu lado, e me dirijo a ele. Minha respiração sai entrecortada pelo fluxo insano de pensamentos que percorrem minha mente. Será que foi o certo a fazer? Será que o melhor não devia ser esquecê-lo? Eu já provocara tanta dor…

— Bem — você começou. — Guilherme era o nome dele. Nós éramos inimigos de escola. Pelo menos, eu achava que fôssemos. Implicávamos um com o outro o tempo inteiro. Éramos vizinhos, o que só acirrava nossa situação. Não sei bem o porquê de tanta rivalidade. Só sei que, assim que o vi pela primeira vez, ainda criança, aconteceu algo em mim que nunca havia sentido antes. Com medo de não saber o que de fato era aquele sentimento, tornei quase impossível nossa convivência. Eu comecei toda a briga, e ele apenas retribuía as afrontas. Certo dia, quando já estávamos em nosso último ano do Ensino Médio, ele desafiou-me a beijá-lo. Eu simplesmente não acreditei. O que ele estava querendo com aquilo? Não fazia sentido. Éramos garotos e, mais do que isso, inimigos.

Você faz uma pausa. Outro silêncio instala-se entre nós enquanto você pega outro cigarro do bolso de sua calça jeans gasta. Acende o papel. Inala a nicotina. Apenas observo seu perfil belamente esculpido. Seu abdômen era todo respiração e movimentos.

— Mas eu o beijei. — Sua voz surge outra vez. — Quando ele me propôs esse desafio, depois da surpresa, sequer pensei nas consequências. Eu não sabia o que estava fazendo em meio àquela escuridão que era meu quarto. Apenas ficamos lá, trocando milhares de beijos, até que enfim... Fizemos sexo pela primeira vez. — Posso sentir a vergonha em seu rosto, ao mesmo tempo em que vislumbro um sorriso nostálgico nele. Também consigo abrir um sorriso. — E depois dessa vez, vieram outras e mais outras. Até que nos formamos. Conseguimos manter a nossa superficial rivalidade, mas não por muito tempo. Fomos para uma festa algumas semanas antes de irmos à faculdade, e acabamos nos embebedando. Alguém sóbrio viu a gente se beijando, e no dia seguinte a notícia se espalhou por toda a vizinhança. Os pais de Guilherme o expulsaram de casa, mas eu não queria perdê-lo, sabe? Larguei tudo o que tinha e fugi no meio da noite. Saímos juntos da cidade e nos mudamos para São Paulo. Apenas indigentes em meio a toda àquela merda. Totalmente perdidos. Só tínhamos um ao outro.

O filtro de seu cigarro enfim queimara, e você o jogou outra vez, dessa vez no chão da sarjeta. Você olha para mim por um breve instante, e sinto meu coração pulsar freneticamente outra vez.

— Uma noite, quando nos hospedamos num motel e vários jornais abertos na sessão de emprego se acumulavam na mesa do canto, ele me disse que estava muito cansado. E eu disse que, obviamente, nós dois estávamos muito cansados. E Guilherme começou a retrucar, dizendo que não estava suportando aquela situação. E brigamos, tal como fizemos tantas vezes no colegial. Quando dormi, de costas para ele, no dia seguinte Guilherme não estava na cama. E ele sempre tinha dificuldade para acordar cedo. Por isso que, quando não o vi ali ao meu lado às seis da manhã, não sabia o que estava acontecendo. Quando me levantei, havia um bilhete sobre um dos vários jornais em cima da mesa. Dizia mais ou menos: "Fui embora, Tiago. Mas eu sempre te amarei, e espero que você seja muito, muito feliz."

Uma lágrima sequer escorreu de seu rosto enquanto você me contava essa história. Muito pelo contrário; quando chegou a essa parte, seu olhar endureceu-se e seus lábios ficaram tremendamente retos. Podia sentir a amargura emanando de seu peito, e a rigidez transformando-te em pedra. Senti dor.

— O que você fez? — perguntei, mais pelo receio de ficar tanto tempo sem ouvir sua voz.

— Voltei para casa, engolindo todo o meu orgulho, é claro. Meus pais haviam perdido a esperança em me encontrar depois de seis meses, mas voltei. Não foram as boas-vindas mais receptivas do mundo. Fiz exame para o vestibular depois de um tempo e passei para a faculdade que queria. Depois de quatro anos me formei em Direito, mas nunca exerci a profissão. Recebi o diploma porque meus pais queriam. Desde então, acho que nunca mais fui o mesmo. Estive infeliz durante muitos anos. Hoje, apenas me conformo. — Fez outra breve pausa, e concluiu: — Não vejo Guilherme há trinta e dois anos.

Tirei as mãos do bolso. Elas estavam com filetes de sangue seco na palma, mas você não pareceu ligar. Em vez disso, apenas se levantou e puxou outro cigarro do bolso. Meteu-o na boca logo em seguida, mas não o acendeu.

— Está muito tarde. Preciso voltar.

— Tudo bem — O nervosismo e o desejo ainda encontravam-se em mim ao mirá-lo. Eu tive tanta vontade de abraçá-lo. De sentir suas mechas de cabelo entrelaçando meus dedos, de sua respiração cálida em meu pescoço, de seus beijos agridoces e com cheiro de tabaco. Eu queria sentir tudo isso, mas não tive coragem. — Boa noite, Tiago.

Você olha para mim, perdido, como se enfim notasse minha existência. Por um segundo pareceu que iria dizer alguma coisa, mas ficou calado. Seus olhos voltam a ficar vazios e suas mãos levam o isqueiro para a ponta de seu cigarro.

— Boa noite. — E vai embora, virando uma criatura pequena e fora de foco enquanto andava ao longe até desaparecer de vista.

Eu queria tanto dizer que eu me arrependia. Queria tanto dizer o quanto eu te amava, e que eu me sentia incompleto desde que nossos caminhos divergiram um do outro. Dizer que fora tão difícil te achar depois de trinta e dois anos, mas que enfim eu havia te encontrado, meu amor. E que agora seríamos felizes juntos. Para sempre.

Mas não tive coragem.

Levantei-me do degrau, e pude sentir meu corpo todo tremendo de nervosismo. Eu o amava tanto, tanto. Andei sem rumo, de volta para o meu falso lar.

Jamais te encontrei outra vez.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.