Desajustadas

Bailarina


A maior sorte da vida daquele professor entediado e maligno era de que Silena não possuía visão a laser já que pela força com a qual a garota o fuzilava com olhar o mínimo resquício de poderes oculares teria o decepado.

Silena não conseguia acreditar até que ponto esse professor poderia ser mau, ele havia chegado 10 minutos antes do sinal bater e não permitiu ninguém, ninguém mesmo, entrar após ele sentar-se na cadeira, com a mesma graciosidade de um imperador, que seria empalado pelo seu povo, os alunos, se continuasse ali.

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E se não bastasse isso ainda aplicou uma prova surpresa, em plena primeira, e tendo nela um conteúdo que Silena desconhecia, provavelmente seria algo que ele passaria somente dali a alguns dias, ótimo, mais uma matéria que Silena ficaria de recuperação.

E agora, 20 minutos após entregar as provas, as recolheu e começou a falar sobre uma maquete, que deveria ser entregada pontualmente dali a uma semana, sinceramente, quanto mais aquele professor falava mais Silena desejava, mesmo que intimamente, para que um meteoro afundasse sua cabeça careca e brilhante, e obvio que três segundos depois de pensar nisso arrependeu-se profundamente, não importava o quanto uma pessoa fosse má, ela sempre podia melhorar, esse era o lema de vida de Silena.

O professor começou a explicar os detalhes técnicos da produção da maquete e mesmo que Silena estivesse com raiva e com a mínima vontade de escutar, se forçou a prestar o máximo de atenção que pode, afinal já havia ido mal na prova se rodasse também na maquete, era adeus aprovação.

O trabalho, basicamente, consistia em pegar um objeto quebrado, qualquer um, e concerta-lo. Sim, era isso, simples assim, porém o objeto deveria funcionar perfeitamente, deveria estar limpo e polido, como novo, mas caso o professor suspeitasse que o objeto fosse, de fato, novo era um 0 e uma visita ao diretor, acompanhada por seus pais, que o aluno recebia.

E pela segunda vez ao dia, Silena desejou que o professor tropeçasse na própria maldade e quebrasse o pescoço e pela segunda vez se arrependeu amargamente, rezou para todas as divindades que conhecia para que o professor não quebrasse o pescoço (por mais que Silena suspeitasse que com toda reserva de gordura que havia ali quebrar era algo, quase, impossível).

Suspirou da forma mais discreta que podia, com todo o mau humor daquele homem ali, não se arriscaria a desafiar a sua, talvez inexistente, paciência. Passou alguns segundos meditando sobre o que poderia fazer a após fechar os olhos foi como se uma luz brilhasse em sua cabeça. Abriu um sorriso, mais uma vez discreta (Silena suspeitava que aquele professor sentia repulso a alegria e não queria correr o risco) e concentrou-se nos detalhes de seu trabalho.

O tempo, graças aos deuses, passou rápido e no exato momento em que o sinal avisou o fim da tortura Silena correu, com toda a velocidade e desenvoltura para o seu armário, bom, toda a velocidade e desenvoltura que alguém com um salto de 15 centímetros e uma perna fina conseguia ter. Abriu o armário e delicadamente tirou lá do fundo, de um lugar obscuro quase totalmente soterrado por roupas e maquiagens, uma caixa de tamanho mediano.

A segurou com a maior delicadeza possível e alisou, com carinho, a caixa. Era feita totalmente de porcelana, era de uma cor rosa tão singela que poderia ser confundido com branco, tinha lindos desenhos de rendas e sapatilhas pela sua superfície e possuía um pequeno fecho. Sorriu nostálgica, aquela caixa havia sido presente de sua mãe, fora o a última coisa que lhe dera antes de pedir o divórcio e sumir, quase, completamente da vida de Silena.

Abriu a caixa, ainda com delicadeza e viu lá dentro a pequena bailarina, apelidada, carinhosamente por Silena, de Sofi, sorriu mais uma vez, relembrando-se de sua infância. A época do divórcio havia sido muito conturbada pera Silena, que com toda a sua inocência infantil, não conseguia entender porque a sua mamãe já não queria mais ser sua mamãe.

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Lembrou-se das noites que passou chorando, desesperada por um apoio materno, as noites que achou que nunca mais sorriria, as noites cujo a sua única companhia e consolo eram Sofi. Toda a vez que sentia-se sozinha e desamparada Silena abria a pequena caixa e ouvia a doce melodia, encoberta pelos passos suaves de Sofi, que bailava com toda a pompa e graça de uma verdadeira bailarina.

A caixinha havia quebrado há alguns anos e Silena nunca havia a levado ao concerto, por medo que eles estragassem sua única lembrança boa da terrível fase que foi o divórcio de seus pais. Finalmente havia chegado a hora da pequena Sofi brilhar novamente.

Guardou a caixa, certificando-se que nada a danificaria e voltou para aula. O resto do dia passou voado e assim que o último sinal do dia anunciava a tão ansiada liberdade, Silena seguiu para a biblioteca, pretendia trabalhar no seu projeto, não queria deixar tudo para a última hora e correr o risco de sofrer a ira pré-menstrual de seu professor.

Mandou uma mensagem para seu pai, avisando de que ficaria no colégio e recebeu um “boa sorte e coma algo” de seu pai, Silena suspirou e negou com a cabeça, mesmo sabendo que seu pai não poderia ver o gesto, ela havia comido meia barra de cereal naquela manhã e mesmo isso já havia sido o suficiente para Silena quase vomitar.

Balançou a cabeça suavemente sentindo os fios de cabelo, que tinha um doce cheiro de margarida, entrarem em sua boca, soltou uma risada baixa pela sua própria falta de jeito e escolheu uma mesa bem ao fundo da biblioteca, para não ser incomodada, não que isso fosse um problema, afinal, que aluno troca uma tarde livre por uma tarde sufocada dentro de uma biblioteca com livros tão velhos que faria as Parcas se invejarem?

Em sua mente um nome apareceu, Annabeth, ela sem dúvidas trocaria uma tarde ao ar livre pela biblioteca velha e com um leve cheiro de naftalina (apesar de Silena achar que o cheiro de naftalina vinha da bibliotecária, que devia ser até mais velhas que os Titãs, Cronos que se cuide). O pensamento fez Silena sorrir, a cada dia Silena se tornava um pouco mais próxima de Annie, o que era fantástico, já que apesar da casca durona, Annabeth era um amor de pessoa, e esperou ver a cabeleira rebelde e loira da amiga ali, mesmo sabendo que Annie preferia a biblioteca pública da cidade (informação cedida pela mesma).

Mais uma vez precisou balançar a cabeça para afastar pensamentos indesejados e passou a se concentrar na bailarina, tinha uma luta árdua a sua frente. Desmontou a caixa com cuidado extremo, não queria danificar nenhuma peça e fez uma careta ao ver o tanto de fios que havia ali, era uma bailarina ou uma bomba relógio? Silena não conseguia saber.

Inclinou-se sobre a bailarina e sentiu os fios tampar sua visão, suspirou irritada e os amarrou de qualquer jeito em um rabo de cavalo mais bagunçado que seus próprios pensamentos. Respirou profundamente e começou seu trabalho.

O tempo voava à medida que o progresso de Silena se fazia presente, seu sucesso era notável, já havia conseguido fazer a bailarina voltara a dançar, o único problema era conectar os cabos que fariam a melodia doce voltar, isso sim era complicado, haviam ali uma infinidade de cabos, de várias cores e espessuras, a menina não fazia a mínima ideia de qual deles precisa juntar.

—Conecte o cabo amarelo no vermelho. –Uma voz grossa e visivelmente masculina soou por cima de seus ombros.

Silena sentiu seu coração acelerar e levantou-se em um pulo, e sua surpresa ficou ainda maior ao ver quem estava ali atrás de si. Não era alguém que Silena conhecia mas ele tinha uma expressão tão familiar que era como se o conhecesse, ele tinha uma aparência tão bonita, tão verdadeira (completamente oposta ao que Silena estava acostumada, o mundo do glamour tem dessas coisas, pessoas extremamente falsas e artificias) que a menina amaldiçoou-se inúmeras vezes por estar com o cabelo bagunçado e com um jeito tão desleixado.

O garoto em sua frente devia ter quase dois metros de altura, sem hipérboles, era negro, num tom de pele tão maravilhoso que Silena pegou-se admirando, tinha cabelos pretos ralos e olhos castanhos, tinha uma expressão meio intimidadora mas aqueles olhos, doces e leitosos, quebravam a aura durona. Silena sentia-se patética por estar tão admirada com alguém, era quase vergonhoso.

—Desculpe. –O homem disse, um pouco desconfortável pelo olhar de Silena, que só então percebeu que devia estar encarando o homem, sentiu o rosto em chamas e abaixou a cabeça, tentando cobrir o rosto. –Eu passei aqui para pegar um livro e vi você bem concentrada, e bom, a curiosidade falou mais alto e eu vim ver o que era.

—Sem problemas. –Silena respondeu, levantando o olhar e sorrindo docemente. –Você disse para conectar o amarelo e o vermelho, certo? –Completou, virando-se para a caixinha, tentando esconder a, ainda aparente, vergonha.

—Sim. –Respondeu o garoto, um tanto intimidado pela beleza da garota ali, ele sempre acreditara que pessoas tão bonitas assim deveria existir apenas em livros ou filmes, Deus era muito injusto no quesito “partilhar a beleza na humanidade”.

Silena seguiu as instruções do garoto e para sua surpresa a velha e nostálgica melodia encheu os ouvidos da menina, que em um surto de agradecimento e alegria abraçou o garoto, que com uma expressão confusa e quase assustada, manteve-se estático.

—Ah, meus deuses, desculpa...-Silena murmurou, mais uma vez, envergonhada e vermelha. –Eu estou a horas tentando fazer a música voltar e agora que deu certo, graças a você, acho que deixei subir à cabeça... –Silena murmurou, abaixando a cabeça, xingando-se de vários nomes.

—Tudo bem, eu não estou bravo... só surpreso. –O garoto disse nervoso, primeiro via uma pessoa tão bonita quanto os anjos deveriam ser e do nada essa mesma pessoa o abraça, ou sua sorte havia repentinamente sorrido para ele ou ele estava em alguma pegadinha de algum canal do youtube, discretamente o garoto olhos em volta, procurando por alguma câmera.

—Meu nome é Silena, Silena Beuaregard. –Sorriu e estendeu a mão para o garoto.

—Meu nome é Charles Beckendorf, mas todos me chamam só de Beckendorf. –O garoto disse, sem apertar a mão de Silena, ato esse que fez a menina envergonhar-se e puxar a mão sutilmente de volta.

—Eu nunca te vi aqui antes...-Silena comentou, desesperada por continuar com a conversa, ela sentiu algo estranho no estomago e era uma sensação tão boa que Silena não quis deixa-la ir.

—Eu estudava a noite, eu ajudava meu pai na oficina dele durante o dia, mas agora o conselho foi atrás dele e me forçaram a ir pro período da manhã, eu começo amanhã. –Charles respondeu, tão interessado em continuar a conversar quanto Silena.

—Isso é incrível. –Silena disse animado, sorrindo de um jeito que fez o coração de Charles dar um salto, por Hades, ninguém deveria ser bonito desse jeito. –A gente talvez faça algumas aulas juntos.

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—Seria bom conhecer alguém. –Charles disse, sorrindo. –Eu conheço alguns caras ai mas quanto mais amigos melhor.

—Ah deuses, eu sempre digo isso. –Silena disse sorrindo ainda mais, sem saber do efeito que tinha no garoto ali. –Você disse que ajudava na oficina do seu pai, certo? Por isso sabia como fazer a música voltar?

—Ah, sim, isso é bem fácil, na verdade. –E então os dois em entraram em um diálogo gostoso e fluido que se dependesse deles jamais terminaria.

Porém a vida é uma cadela, como dizem as pessoas sábias e não muito longe dali Katie Gardner contorcia-se em um banheiro apertado com vários hematomas espalhados pelo corpo. Como isso havia acontecido, todos os créditos destinados ao seu pai, se aquilo pode ser chamado de pai.

O que aconteceu foi, Katie havia chegado em casa relativamente tarde, havia passado o dia na casa de Thalia e esquecera-se completamente das horas, estava um tanto nervosa e ao mesmo tempo alegre, estava com mechas verdes, estava desafiando o pai, sentia-se livre, como a muito tempo não havia se sentindo, mas sabia ela que esse sentimento de liberdade não compensaria o que viria a seguir.

Ao adentrar a casa viu o pai sentando no sofá, as garrafas ao seu redor e o cigarro, provavelmente de maconha, em suas mãos não negavam, ele estava completamente alterado, Katie queira correr, precisava fugir antes que fosse tarde, mesmo ela sabendo que no momento que havia aberto a porta já era tarde demais.

O homem a olhou do mesmo modo que olharia para um rato, aquele olhar de que diz “você é uma praga nojenta”, Katie sentia o olhar queimar em si, mas não podia fazer nada, se reagisse seria pior. Mas pior, de fato, foi quando ele mirou em seus cabelos, vendo a ousadia o resultado não podia ser outro, Katie levou uma surra.

Não pode reagir, tão pouco gritar, ela sabia que gritar só faria o pai enfurecesse e fazer tudo com o dobro de força, tudo que a menina pode fazer foi cobrir a cabeça e tentar, inutilmente, se proteger dos golpes que vinham com força.

Mas, isso nem era o que mais machucava, feridas físicas sarariam uma hora ou outra, o pior era os xingamentos, as punições verbais, as verdades ditas com nojo e raiva pelo seu pai, isso sem doía porque diferente dos tapas, uma cicatriz em sua mente não se curaria rápido, isso se curaria.

Aguentou tudo, e assim que o homem deu-se por satisfeito a menina praticamente arrastou-se para o quarto, onde ficou, chorando por horas e horas até dormir. E preferiria nunca acordar, o seu corpo inteiro doía, o mínimo ato de respirar produzia dor, já que havia levado inúmeros chutes nas costelas.

Foi ao banheiro e conferiu os estragos, o olho estava roxo, tinha um corte na bochecha esquerda, e tantos roxos pelo corpo que nem podia contar, ela parecia uma aquarela em tons negros, roxos e vermelhos, seria lindo se não fosse trágico.

Nem se deu ao trabalho de se arrumar, se fazer um curativo ou ao menos tentar se recompor, apenas deitou no chão, abraçou os joelhos e chorou.