Renegados

Capítulo 2 - Mordaças


O ressoar de gotas contra o chão de terra firme adentrava nos ouvidos dos habitantes de Ehre. Um chuvisco leve e sereno recaía sobre a cidade, encharcando pequenos cantos e levantando o cheiro de terra molhada. O odor selvagem da chuva marcava o início de um novo dia, assim como os toques pouco barulhentos das gotas.

Diversos pares de botas socavam a terra por baixo de suas solas; desde o pequeno morador ao mais rico dono de taberna. Os negócios começavam cedo na cidade real. O brilho do sol aparecia e a cidade acordava após uma longa madrugada, era a rotina. Os impostos eram altos e isso bastava para que todos se sentissem dispostos a trabalhar. O padeiro humildemente começava a organizar suas formas, o dono de taberna tratava de limpar a sujeira de uma noite festejada, o morador apressava seu rumo ao trabalho e os soldados marchavam para seus postos; os enormes portões da cidade trocavam seus turnos, assim como as ruas monitoradas e o calabouço real.

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A chuva calma e incessante não incomodava Axell. Ele observava a entrada do calabouço haviam algumas horas e em poucos minutos acostumou-se com os pingos gelados tocando sua pele alva. Existia uma remota chance de falha em toda aquela operação e o homem sabia bem disso, portanto não pode controlar a si mesmo quando ainda antes do raiar do sol viu-se a pegar sua adaga e andar em direção ao calabouço. Toda e qualquer rota de fuga era recogitada e reavaliada, assim como possíveis esconderijos. Após dois longos meses observando o capitão da guarda, percebera que o amor dele pela filha era maior até mesmo que seu posto perante o rei, mas ele não seria tolo o suficiente de apostar todas as suas fichas nesse fato, por isso todas as precauções deveriam ser tomadas. A chuva ocultava pegadas e sons, fazendo a ocasião ser ainda mais propícia.

Axell suspirou antes de dar uma última olhada para a entrada do calabouço. Os guardas trocavam de turno preguiçosamente. Desde que chegara, nenhum dos homens havia realizado uma ronda no contorno da construção. O rei deveria escolher melhor sua guarda, pensava.

— Bom... Se tudo for para o inferno, ao menos encontrarei minha família lá. Será um bom reencontro — Um murmúrio baixo e sarcástico saiu dos lábios de Axell antes que ele deixasse o ponto em que estava e corresse para o outro lado da cidade, o local onde a carruagem que o tiraria daquele ambiente pegajoso estava.

A parte baixa da cidade não era tão grande quanto deveria ser, e o trajeto entre seus dois extremos não retirava muito do tempo de quem o percorresse. Pouco menos de uma hora havia se passado quando Axell chegou ao local onde a carruagem a ele prometida estava.

Ao mirar a carruagem, admirou-se. Era divina e digna de um nobre. Mesmo não querendo admitir, Axell se maravilhou assim que colocou os olhos nela. Seu exterior era cuidadosamente polido e uma tinta vívida estampava algumas partes. Um cavalo Cindel acompanhava as rédeas. A composição era de tirar o fôlego. Era um veículo sensacional, um que muitos camponeses não poderiam sequer pagar mesmo que guardassem as economias de uma vida. Aonde Lucien havia arranjado aquilo? Sabia que precisava representar o servente de um nobre, mas a luxúria de fato o impressionou - e incomodou-o.

Não havia cocheiro algum a vista, o que o fez entrar em pânico; suas experiências com direção de animais não eram as melhores. Entretanto, bastou o soar de um ronco para que ele logo achasse sua salvação.

Ao girar a maçaneta da porta da carruagem, um senhor que Axell já conhecia presenteou sua visão. O jovem fechou os olhos por um minuto e suspirou frustrado. Nunca soubera como um homem tão velho conseguia dormir tanto. Forçando o tom, ele trovejou.

— Você dorme só por prazer ou por necessidade?

O homem abriu um dos olhos no mesmo instante. As olheiras juntamente com sua barba grisalha por fazer davam-lhe um aspecto de bêbado.

— Oh, é você. Quando estiver na hora de bancar o rico, avise.

Os olhos do senhor voltaram a fechar-se enquanto o nervosismo de Axell aumentava.

— Já está na hora. Saia logo daí antes que eu...

— Você o quê? — O velho abriu os olhos ainda inchados — Sei muito bem que você ainda não tem coragem de machucar sequer uma mosca, loirinho.

Os lábios de Axell dobraram-se de irritação e frustração.

— Já está na hora — Repetiu Axell em um tom mais seguro.

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Sorrindo de canto, o homem manteve os olhos abertos e foi até as rédeas do veículo. Seria uma viagem curta de início. E após isso, um dia de viagem até Klantes.

Antes que o homem subisse no assento, Axell já havia se acomodado na parte interna da carruagem. Muitos pensamentos ameaçavam toma-lo, mas ele os afastava antes que pudessem causar estragos. Tudo aquilo precisava dar em algo. Seu passado podia ter lhe tirado tudo, mas não poderia nunca tirar seu remorso. Ele se agarraria, agarraria-se ao remorso e o usaria como cipó para impulsionar-se para o alto. Para perto dela. Para perto da vida que ele havia deixado para trás.

Mais veloz que na ida, o trajeto até o calabouço não demorou pouco mais que alguns longos minutos. Antes que pudesse notar, já estavam na frente da entrada do lugar. O cheiro da desgraça e da podridão humana invadiu suas narinas com força total. Conforme descia do transporte e se aproximava dos soldados de guarda, fazia uma enorme força para não expressar a agonia que aquele odor lhe causava. Cada passo em direção àquilo era como caminhar para a fossa de seus próprios dejetos. Seu estômago embrulhava e a ânsia de vomito se tornava cada vez mais forte.

— O que pensa que está fazendo? — O soldado de barba rala à direita da entrada questionou assim que Axell prostrou-se em sua frente.

— Fui enviado por Jins Sullivan, o antigo senhor de Knight Mindi, para busca-la após sua libertação.

— Prove que é quem diz ser.

Axell retirou uma carta forjada com a assinatura e o selo do suposto homem e entregou ao guarda. A carta estava em um dos compartimentos da carruagem e Axell ficou feliz por Lucien ter providenciado-a.

O guarda checou o documento e avaliou com cuidado. Aparentemente, a carta havia sido muito bem forjada, pois o homem de nada suspeitou.

— Vou buscar a mulher. Você espere aqui.

E assim o homem caminhou para dentro daquela fossa.

Poucos minutos se passaram até que o mesmo homem retornasse. Mas dessa vez, não estava sozinho. Uma presença sombria o acompanhava. Uma mulher coberta de sujeira e substâncias gosmentas estava a seu lado. Havia algo mais grudado em seu corpo também, algo escuro, mas não negro o suficiente para ser sujeira. Era sangue... sangue seco e antigo. Sangue que não parecia ser dela. Seus cabelos estavam duros como caules e suas roupas... Axell deveria chamar aquilo de roupas? Deuses, aquela mulher não via água há um bom tempo. E não era só a visão que gerava repulsa. Era principalmente o cheiro que ela emanava. O cheiro de morte, profanação, podridão e dejetos. Bile subia pela garganta de Axell e o homem precisou de toda a sua força para manter o estômago no lugar.

Empurrando-a, o guarda gritou.

— Leve-a com você agora.

A mulher sorria. Os dentes amarelos e sujos e deploráveis sorriam para Axell com uma cobiça animal. Seus olhos estavam semicerrados e deixavam a mulher com a aparência de um predador. A pele sobre o osso, a sujeira e o odor davam-na o mais sombrio dos aspectos. Segurando a bile que novamente subia, Axell abriu as portas da carruagem e pediu para que ela entrasse. Surpreendentemente, ela obedeceu; e ao passar na sua frente, olhou-o tão profundamente que fez Axell questionar se o plano realmente daria certo.

Duas longas e silenciosas horas haviam se passado desde que saíram de Ehre. Nenhuma complicação os interrompeu e o plano seguia como deveria. Axell só não contava com uma coisa: que a mulher se calaria durante todo o trajeto. Foram duas horas perturbadoras. Eles estavam em assentos contrários e durante todo o tempo ela o encarou. Não retirou seus olhos dele nem por um minuto sequer. Axell se sentia cada vez mais apavorado com a ameaça que pairava ao seu redor. As lembranças sobre o que ela já havia feito o assombravam. Seus cabelos eram tingidos com sangue e suas lâminas eram forjadas com os ossos de seus inimigos. Aquela mulher era um demônio insaciável. E Axell tinha consciência disso.

O ambiente fechado não ajudava com o cheiro que a mulher exalava e a situação do estômago de Axell não estava nada agradável; assim como a situação de sua mente e coração. Suas palpitações estavam fora de controle quando a mulher finalmente abriu sua boca. A voz rouca que saiu de seus lábios indicavam que essa mesma voz não havia sido muito usada nos últimos meses.

— Quem diabos é você? — Ela estava séria e nem um pingo de emoção escoava de sua face.

— Eu não darei essa informação. Você apenas deve saber que está segura.

A mulher não mudou sua expressão e não esboçou qualquer tipo de reação além de um pequeno sorriso de canto.

— Então diga-me seu nome.

Axell temia falar algo que colocasse o plano em perigo, mas dar seu nome a ela não faria grande mal.

— Axell. Apenas Axell.

Novamente o pequeno sorriso estampava seu rosto antes impassível.

— Pois bem, Apenas Axell, acho que você gostaria de saber que a próxima vez em que ousar falar assim comigo, será também a última vez em que fará parte do sexo masculino — Ele não pode evitar o espanto, mas precisava mudar suas ações e ser mais corajoso. Precisava parar de tremer e de se acovardar. Precisava aguentar Knight Mindi.

— Não acho que seria. Você está em péssimas condições para fazer qualquer coisa — Fora preciso um esforço monumental para não gaguejar.

— Eu ainda consigo matar você. E sabe o porquê? Você tenta fingir que é forte e destemido, mas não tem uma única cicatriz sequer. Não tem experiência. Você não suporta a morte e vejo isso em seus olhos. Então por mais que eu esteja nessa situação, ainda venceria você.

Ele engoliu seco.

— Agora, diga-me quem diabos é você.

Seu coração parou, e voltou a funcionar outra vez apenas para parar novamente. Aquilo era um jogo. Um jogo mortal. Ela jogou as cartas dela, e era a vez dele de apostar.