Em busca da verdade

Capítulo 1 - Quem, raios, sou eu?


Estou sentada no beiral da janela do meu quarto. Meus pés se sentem confortáveis balançando descalços à mais de 2 metros de altura e minhas nádegas encaixam bem no beiral largo, de modo que posso pensar tranquila, com o vento da noite batendo no meu rosto.

Algumas pessoas têm ideias ou objetivos e imediatamente vão concretiza-los, certos de que é o que tem que fazer. Mas eu não sou assim. Já tem anos que tenho uma ideia e agora, finalmente, cogito a possibilidade de executa-la na prática.

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Sou adotada e sei disso desde sempre, mas isso não é a coisa mais chocante da minha vida. O chocante, o incomodo, o triste da minha vida é o fato de eu ter AIDS.

Ninguém sabe ao certo o motivo. A suspeita é de que eu tenha adquirido da minha mãe biológica, mas nunca soubemos ao certo. Isso porque meus pais me encontraram em um abrigo numa cidade muito pequena que fica à 4 horas da minha casa, de carro. Mas lá eles não tinham nenhuma informação sobre o que aconteceu antes dos meus 6 meses de idade.

A história que meus pais sempre me contaram era de que tinham ido longe, no abrigo que me encontraram, atrás de um bebê para terem como filho, já que minha mãe casou com meu pai aos 43 anos e teve medo de engravidar tão tarde. Então eles me encontraram numa maca dormindo, tomando soro e respirando em aparelhos - eu me recuperava da minha primeira pneumonia – e me amaram no mesmo instante. A chefe do abrigo disse que uma enfermeira de uma cidade vizinha tinha me levado para lá quando eu tinha 6 meses de vida, sem nenhum registro, só um papel com a data, peso e altura que eu nasci. A enfermeira disse que minha mãe havia me abandonado e que eu estava morrendo sozinha no péssimo hospital em que eu nasci. Então cuidaram de mim apropriadamente no abrigo – que tinha uma ótima ala médica – e descobriram que eu era soropositivo. Meus pais não se importaram com isso, me quiseram mesmo assim.

Particularmente, eu não os entendo. Por que pegar um bebê defeituoso quando se pode ter um perfeito? É claro que a total falta de registro facilitou muito todo o processo de adoção, mas meu pai é advogado e não teria dificuldades com isso.

Contudo, eles ficaram comigo. E tenho que agradecer a Deus todos os dias por ter sido abençoada com pais maravilhosos.

Esse é o tipo de coisa que penso todos os dias, sabe? Cada batida do meu coração é a garantia de mais um instante de uma vida eternamente doente. Mas desde o último dia do ano letivo venho pensando nisso de uma forma diferente. Menos como “Droga, nunca vou ter filhos!”, “Porcaria, ninguém nunca vai querer transar comigo!” e mais “Como alguém pode gerar um filho assim?” e “Quem mais teve que pegar essa praga pra me gerar?”. Menos exclamações e mais interrogações.

É claro que existe a possibilidade de eu ter adquirido a AIDS com alguma transfusão de sangue ou seringa contaminada, porém é improvável. Mesmo que as condições de saúde do hospital em que eu nasci não fossem boas. Na verdade, sempre torci para que a hipótese da transfusão fosse a certa. Minha mãe biológica não precisava ser uma aidética também. Mas aí voltamos aos dramas de todo adotado: por que ela me largou, quem era ela, o que aconteceu?

Alguém bate na minha porta e me assusto, perdendo a linha de raciocínio, mas não o equilíbrio do beiral, já tô’ muito acostumada.

— Quem é? – Pergunto.

— Filha, trouxe um lanche pra você. – Minha mãe responde atrás da porta.

Saio do beiral antes de dizer pra ela entrar. Ela morre de medo que eu caia, mesmo eu sentando ali desde os meus 11 anos.

Minha mãe é negra e tem cabelos totalmente brancos, é robusta (mas não ao ponto de ser gorda) e tem um rosto angelical que parece no mínimo 10 anos mais nova. Está no auge dos seus 61 anos, onde ela já pode realmente valorizar as melhores coisas da vida – já tendo certeza de quais são elas.

— Tudo bem, Pamela?

— Claro, mãe. Trouxe biscoitos e leite quente pra gente? – Eu sorri com a rotina dela e ela assentiu se sentando na minha cama e apoiando a bandeja ao seu lado.

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Uma das coisas engraçadas de se ter pais velhos é que eles - mais do que os outros que percebo – vivem de uma rotina. Nunca saímos da agenda e sempre sei exatamente o que vamos fazer. Mesmo depois de 16 anos com eles, ainda estou me decidindo se isso é bom ou não.

— Como está o Martínez, meu bem? - É claro que ela tinha que me lembrar dele.

— Está ótimo, mãe. Estava conversando com ele no Skype agora a pouco. – Me sentei de frente para ela, com as costas para a cabeceira da cama.

— Vão sair de novo? – Ele me olhou docemente, - parecendo já saber todas as minhas resposta tanto quanto eu sabia as suas perguntas - enquanto bebericava seu copo de leite.

— Não, amanhã quero ficar em casa. – Tentei surpreende-la.

— Ele vem que horas? – Olhei para ela como se estivesse repreendendo sua sugestão e ela me lançou um olhar inocente.

— Não vem, mãe. Vou pesquisar algumas coisas sobre a faculdade amanhã, talvez até de um pulo lá. – Peguei minha caneca do Harry Potter e tomei uma golada do achocolatado que queimou o céu da minha boca.

— Já decidiu qual quer? – Ela já parecia saber cada palavra que eu diria.

— Não... – Pareci na dúvida – Mãe?

— Sim?

— Você já sabe qual faculdade eu vou escolher, não sabe? – Suspirei e me encostei na cabeceira.

Minha mãe sorriu largo e pude ver suas adoráveis rugas de muitos sorrisos do passado.

— Tenho meu palpite.

— Por que não facilita pra mim?

Ela não me respondeu. Nós duas sabíamos o que ela ia dizer: que era preciso que eu aprendesse algumas coisas sozinha.

Meu alarme tocou e tomei o antirretroviral.

Comi alguns biscoitos enquanto perguntava sobre o trabalho dela – ela é jardineira profissional – e ouvi só parcialmente enquanto ela me contava sobre um novo projeto. A outra parte de mim está pensando sobre o Martínez.

Ele foi meu colega de turma nos últimos três anos, éramos do mesmo grupo de amigos, mas não éramos muito próximos até o último inverno. Foi quando começamos a ficar realmente amigos e depois mais que amigos. Ele em pediu em namoro no último dia de aula.

Louco, né? Como demoramos três anos para isso? Já estamos ficando faz quase 4 meses e ele já tinha indicado interesse, mas eu havia deixado claro que não queria isso ainda. Ele já conhecia meus pais, na verdade ele já conhecia até meus tios e primos. Acho que sou a única que tem conhecimento real de que nós não somos namorados, mesmo que pareça.

Não que eu não que eu não queira namorar com ele. Ele tem descendência mexicana, sangue quente. Pare de acelerar, coração! Foi só um pensamento inocente.

Talvez deva me concentrar mais no que minha mãe está dizendo...

— Tenho que esperar até o verão pelo resultado certo, é verdade. Mas, mesmo sem o efeito perfeito, a qualidade da obra vai ser excelente. Estou pensando seriamente em tirar aquela escultura horrorosa de anão de jardim. Nunca vou entender porque essa tolice se propagou como moda, filha.

— Eu acho que o dessa senhora vai cair muito bem com o jardim que você está planejando, particularmente.

— Mas é que ele fica na frente do... – Perdi o resto da frase pensando de novo no fogo do Martínez.

Bom, eu adoraria namora-lo. Ele é alto, tem uma pele morena e cabelos e olhos negros. É lindo. Além de ser muito gentil, amigável e divertido. O problema é que ele não é virgem.

Certo, que garoto é virgem aos 18 anos, hoje em dia? Isso não é um problema. O problema é que ele vai querer transar comigo.

Nossa, isso não é um problema! Isso é tudo, menos um problema. Estou me controlando para não rir, enquanto minha mãe fala de algumas flores que não entendo.

A questão, na verdade, é que se eu namorar com ele terei que contar que tenho AIDS e provavelmente ele não vai mais querer ficar comigo. A boa notícia é que ele não tem pretensão de transar comigo sem namorarmos. Então, enquanto eu conseguir protelar o namoro, conseguirei protelar meu bom momento com ele.

Não tenho problemas com a minha virgindade. Não sou virgem porque ninguém quer ficar comigo, mas porque quero proteger as pessoas. Não que eu tenha encontrado alguém certo antes do Mart. Teve o Joshua, que namorei por cinco meses no início do Ensino médio, mas ele não era a pessoa certa. Além dele só houveram mais dois casos de namoricos de duas semanas no Ensino Fundamental e um cara numa festa no ano passado.

— Não acha, Pam?

A parte que estava escutando a mamãe fez um bom trabalho, respondi rápido a sua pergunta:

— Plantas silvestres são meio arriscadas nessa época do ano.

— Foi o que eu disse pra ela. – Minha mãe sorriu.

Acho que ela sabe que estou distraída. Os biscoitos acabaram, mal me vi comendo.

— Acho melhor eu ir, filha. – Ela se inclinou para pegar a bandeja e se levantar, mas coloquei a mão sobre a sua, num sinal mudo pra que ela esperasse e ela voltou a posição anterior.

— Mãe, preciso te perguntar uma coisa. – Não posso mais adiar essa ideia que está há anos na minha mente – Na verdade, é mais um pedido. – Ela aguardou, ligeiramente tensa – Quero descobrir como peguei essa doença e descobrir quem era a minha mãe biológica e o porquê dela ter engravidado e me abandonado.

Falei meio rápido, mas fui clara. Eu olhava nos olhos dela e pude ver quando suas sobrancelhas se uniram de dúvida e surpresa antes de voltarem a ficar neutras. Ela refletiu um segundo, realmente surpresa com a minha pergunta.

— Vou falar com seu pai sobre isso e amanhã conversamos. – Ela forçou um sorriso e pegou a bandeja antes que eu pudesse contestar – Boa noite, minha princesa.

E saiu antes que eu pudesse pensar sobre a reação dela ou responder ao boa-noite. Teria ela ficado magoada? Ou só não estava acostumada a ser pega de surpresa assim? Não. Deve estar magoada. Acha que quero saber quem é minha mãe porque quero conhece-la.

Todavia não é bem assim. Mesmo que ela tenha tido um bom motivo pra me abandonar, nunca vai ter tido um bom motivo pra ter me gerado. Não acho possível perdoa-la e querer ela por perto caso seja doente como eu e tenha me feito mesmo assim. Talvez ela não soubesse....

Mas é por isso que tenho que encontrá-la. São tantos “Talvez” na minha história... Preciso me livrar deles.

Estou voltando para o beiral da janela. Agora, já mais tarde, a brisa parece mais fria. Ou talvez seja a culpa de ter magoado a minha mãe. Arg’, qualquer “talvez” agora me parece irritante. Está mais frio e estou culpada por ter magoado a minha mãe.

Voltei as pernas para dentro do quarto e peguei meu celular na escrivaninha. Abri o whatsapp e visualizei sem ler as mensagens de dois grupos de amigos antes de abrir a conversa com o Mart e ler as duas mensagens: “Estás mejor, mi Pam?” e “Has dormido y no hablastes comigo?”. Não sei dizer se o espanhol dele era o certo, mas espero que sim, porque estou aprendendo bastante.

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“To aqui, acordada. A conversa c minha mãe foi um pouco + longa hoje. Preciso te contar algo.” – Digitei e enviei. Ele visualizou imediatamente.

“Fala, amor.”

“Pedi minhs mãe pra ir atrás d informações da minha mãe biologica. L”

“E ai???”

“Ela faloy q vai ver amanha, mas acho q ficou magoada”

“Se for importante pra vc ela vai entender, Pamela. Rlx”

“Vlw, Mart *-* Mas, sabe, não quero magoar ela.”

“To lgd, gata. Mas pelo q conheço da tua mãe ela não vai ficar magoada, vai entender”

“Espero q sim.... Vc já tava indo?”

“To vendo Disney rs Gosta desse programa?” - Me mandou a foto da televisão do quarto dele.

“Gosto, já liguei aq”

Ficamos falando de desenhos animados por mais um tempo antes de eu ficar cansada demais e falar que ia dormir.

“Buenas noches, mi hermosa. To c sdds. Beijo”

“Fomos ao cinema essa tarde rs”

“Mas nem te beijei direito :/”

“kkkkkkkk Sei, sei rs Buenas noches. Bejos”

Ainda fiquei inquieta me revirando de um lado para o outro da cama antes de conseguir dormir. Foi uma noite sem sonos.

Acordei as 9h48min, a casa estava vazia, comi um pedaço de bolo da geladeira e voltei pro quarto. Mandei mensagem de “Buenos dias” pro Mart e comecei a pesquisar sobre a universidade particular que queria visitar hoje.

Meu pai gritou do andar debaixo da casa um “Boa tarde” bem alto assim que chegou. Eram 12h21min, havia me distraído conversando com o Martínez sobre a faculdade dele – Hotelaria numa faculdade pública, a qual ele estava esperando confirmação de ter passado. Desci com o celular na mão e pulei ao abraçar meu pai.

Ele é branco, tem olhos verdes e cabelo castanho com mechas grisalhas. É bem mais alto que eu e é bem parecido com a minha mãe quando se trata de lidar comigo. Meu pai é 3 anos mais novo que minha mãe e trabalha em uma empresa particular de advocacia. Ele não gosta muito de falar do trabalho em casa, então só sei o básico sobre isso.

— Passou bem a manhã, filha? – Ele sorriu e tive a impressão que minha mãe ainda não havia falado com ele sobre minha vontade de conhecer meu passado.

— Ótima, pai. E o senhor?

— Bem, graças a Deus.

— Vou esquentar o almoço.

— Já venho te ajudar! – Ele gritou enquanto subia a escada tirando o paletó.

Meu pai gosta de fazer várias coisas ao mesmo tempo, tem hiperatividade. Então, normalmente, fala conosco de algum cômodo diferente do que estamos, se obrigando a gritar. Mandei uma mensagem paraa o Martínez

“Meu pai chegou agr. Vou preparar as coisas do almoço. Dps falo cntg”

“Okey”

Meu pai desceu com uma bermuda e uma camisa rasgada de usar em casa e veio me ajudar a esquentar o almoço, mas deixei ele na cozinha para tomar meu próprio banho e me vestir. Quando desci tudo já estava na mesa e minha mãe estava lavando as mãos na pia. Dei um beijo nela. Ela parecia bem, sorrindo, como sempre.

Estávamos terminando de pôr a comida no prato quando a campainha tocou. Quando abri a porta, Martínez estava com um pequeno buque de flores amarelas e laranjas na mão. Ele sorriu e me puxou para um beijo antes de entrar, sem que eu desse passagem ou indicasse. Esse abusado também não me esperou para guia-lo até a cozinha. Quando tranquei a porta e fui até lá ele estava entregando o buque a minha mãe que abraçou ele e agradeceu.

Ele sentou na mesa, bem à vontade, apertou a mão do meu pai e foi se servindo enquanto conversava com minha mãe sobre como essa flor que ele trouxera - que eu não reconhecera - só ficava bonita desse modo nessa época do ano. Comecei a comer enquanto eles conversavam sobre flores, Mart realmente gostava disso, mas nunca me dava flores porque dizia que eu não sabia aprecia-las da forma correta.

Quando a conversa sobre flores acabou, minha mãe me olhou serena e disse:

— Achei que ele não viesse hoje. – O comentário dela foi tão... tão... Reflexivo que parecia que ela havia falado sozinha.

— Atrapalho? – O garoto largou os talheres e apoiou as mãos na mesa como se estivesse prestes a se levantar, realmente preocupado.

— Não, meu bem. – Minha mãe deu uma risada e meu pai deu um sorrisinho, enquanto mastigava, enchia o garfo com mais comida e passava o dedo da outra mão na borda do copo, eu revirei os olhos sorrindo – Já sabia que você vinha.

— Ela acha que sabe de tudo. – Fiz biquinho – Você deu sorte dessa vez, sua bruxa. – Eu ri, assim como todos na mesa.

Quando só meu pai ainda comia minha mãe pigarreou e falou:

— Filha, Ângelo e eu decidimos que você deve mesmo ir atrás da sua história.

Tremi, pensando se ela falaria da AIDS na frente do Mart. Mas minha mãe jamais teria tão pouco tato.

— Sim, sim. – Meu pai concordou pegando a última garfada.

— Contudo, infelizmente, - Minha mãe tinha um discurso planejado e eu estava muito curiosa - temos muito pouco pra ajudar na sua busca: o nome do abrigo e todos os dados dele, nomes de algumas cuidadoras e médicos, o nome da enfermeira que te levou pro abrigo e o papel que ela levou com seus dados. Acho que vai ter que ir até lá para encontrar algo realmente útil, meu amor. E não podemos te acompanhar agora, Pam. Por isso, receio que você precise esperar até o fim de semana.

Hoje é segunda-feira.

— Bom, - Martínez pigarreou – eu posso ir com ela. – Ele me olhou disfarçadamente pra ver minha reação, eu estou ansiosa - Sou maior de idade, tenho carteira e não estarei ocupado essa semana. Talvez nem precisemos ficar fora mais de um dia, posso cuidar dela, se não se importarem.

Meus pais se olharam, surpresos e ligeiramente nervosos.

— E o carro? – Meu pai perguntou, como quem resolve um problema difícil.

— Tenho certeza que minha mãe não se importa de me emprestar o dela, não está trabalhando. – Mart respondeu, cauteloso, enquanto tentava ver se eu apoiava.

Eu estava sorrindo, com os olhos um pouco arregalados e assenti quando ele respondeu. Minha mãe pediu licença, pegou o bolo da geladeira e colocou na mesa. Sentou, parecia calma quando voltou a mesa, talvez resignada.

— Eu preferia ir com você, Pamela, mas sei que o Martínez vai cuidar bem de você. Então, não vejo problema que vocês façam essa viagem. Ângelo?

— Bom, acho que está na hora de você fazer algo seu. Além de que é importante demais conhecer nossas raízes, então fico feliz que já se considere responsável o bastante. – Meu pai sorriu, parecendo realmente bem.

Minha mãe parecia estar tentando lidar com a ideia. Me lembrei de algumas histórias que meu pai me contava sobre seus antepassados quando eu era mais nova e de como ele parecia orgulhoso. Todos me olhavam esperando uma resposta.

— Obrigada, Mart. Obrigada, mãe e pai. Eu amo vocês dois e prometo que vou me cuidar. – Eu sorri e respirei aliviada.

Mal acredito que realmente vou fazer isso. É loucura e é improvável que eu ache algo, mas meu corpo parecia vibrar com a ideia dessa pequena aventura. Comemos o bolo de sobremesa e fui para meu quarto com Martínez, deixando a louça para os meus pais.

— Eu disse que ela ia deixar. – Ele sorriu presunçoso, largado na minha cama.

— Mas você viu como ela ficou triste? – Finquei a testa de preocupação.

— Pamela, - Ele se sentou e respirou fundo – sua mãe te entende melhor que ninguém. Ela não me pareceu triste, só pareceu saber algo que a gente não sabe. Mas relaxa, ele deitou de novo. Ela vai te falar quando você estiver fazendo as malas.

Ele normalmente acertava, quando se tratava da minha mãe.

— Aliais, - Ele bateu com a mão num pequeno pedaço de colchão que ele não estava ocupando, me chamando para perto – quando vamos?

Eu me sentei e senti as mãos dele na minha cintura quando respondi:

— Amanhã? – Ele me soltou imediatamente e se levantou da cama, com pressa.

— Ótimo! – Ele se animou e mordeu o lábio inferior de um jeito safado – Te pego as 7.

Eu ri da animação dele e das claras intenções implícitas naquela viagem.

— Eu não vou transar com você. – Eu ri me deitando na cama na mesma pose que antes ele estava.

— Isso é o que você diz agora. – Ele deitou em cima de mim e me deu um beijo intenso nos lábios, puxando minha coxa para que envolvesse minha perna na sua cintura, mas assim que o fiz ele parou de me beijar, me deu um selinho e se levantou – Até logo, gostosa.

Corei enquanto ele saía.

Fui logo atrás dele e ainda o encontrei se despedindo da minha mãe.

— Sua mãe anda cuidando bem do nosso jardim? – Minha mãe perguntava a ele, sem ver que seu estava no corredor ouvindo.

— Está sim. Eu ajudo sempre. – Ele sorriu – Minha estufa também anda dando ótimos resultados, mas queria que a senhora desse uma olhada numa planta que não conheço bem, quando puder.

Minha mãe achava que todo jardim que ela projetasse passava a pertencer a ela também. Ela tinha feito o projeto do grande jardim da casa do Martínez, mas não tinha montado, a mãe dele preferiu fazer isso em família.

— Claro, meu filho. Mas porque já vai?

— Ele tem que arrumar as coisas pra amanhã, mãe. – Entrei na sala falando.

— Amanhã? – Ela ficou confusa um instante e, então, soltou um “oh!” baixinho – Está com tanta pressa assim? – Parecia confusa ou preocupada, não sabia dizer bem.

— Bom, queria acabar com isso logo, mãe. – Estou magoando ela, sinto uma dor no peito por isso.

— Sim... Claro. – Voltou a falar com Mart, parecendo distraída – Precisa que eu veja essa planta hoje, filho?

— Não, Dona Julieta, nada urgente. Bom, vou indo. – Ele beijou as bochechas dela e saiu sozinho.

Martínez ficava sempre muito à vontade na minha casa, como se também fosse a casa dele. Não consigo ficar tão confortável na casa dele... Também já conheço toda a família dele e gosto bastante de todos. Ele sempre me apresenta como namorada, mas os pais dele e os irmãos mais novos sabem que eu não aceitei.

Claro que também não neguei. Só disse que ainda não era a hora.

Mas ninguém do nosso convívio leva muita fé em mim. Só meus pais entendem porque eu não quero namorar. Até meus outros parentes que sabem que tenho AIDS não entendem bem, acham que isso não me impede de ter uma vida normal.

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É verdade que a única coisa na minha vida que tenho diferente são os constantes exames e ter o Dr. Marcio como um parente de tão próximo. Mas ainda não tinha tido necessidades sexuais dessa forma.

— Vai ver o Marcio hoje, Pamela? – Minha mãe estava em é perto da estante mexendo na primeira fotografia minha que eles tinham, quando estavam me levando para casa.

— Vou só ligar pra ele.

— Precisa de ajuda em algo, filha? - Ela começou a mexer em outra foto na estante, minha com meus colegas do 1º ano.

— Por enquanto não, mãe. Quando for arrumar a mala te chamo. Meu pai já voltou pro trabalho?

— Ainda não, só volta as 15hrs.

— Obrigada, mãe. – Beijei a bochecha dela e subi para o meu quarto. Nós duas sabíamos que o agradecimento não era pela resposta.

Subi para o meu quarto e mandei mensagem para o Dr. Marcio perguntando se meus últimos exames estavam bem e seu podia fazer uma pequena viagem. Depois arrumei minha caixa de maquiagem, - que eu quase não usava - liguei meu computador e li algumas publicações em blogs que eu acompanho. Mart me mandou uma mensagem as 15h43min:

“Ta afim de vir aqui em cass não?”

“Agr?”

“Pra jantar”

“Pode ser. Q hrs?”

“19:30- te pego ai”

“De boa”

Separei algumas roupas para 4 dias de viagem e fui chamar minha mãe. Não espero demorar mais que dois dias, mas prevenido morreu de velho. Minha mãe estava separando algumas roupas do armário dela.

— Vai vir comigo? – Eu estava aliviada com a ideia.

— Não, meu amor, - ela sorriu – só estou separando algumas roupas pra doação. Na verdade, é pra você levar, a cidade pra onde você vai é bem pobrezinha.

— Pode me ajudar com as malas, mãe?

Ela concordou, pegou uma mala grande e veio para o meu quarto, deixando o dela com roupas em cima da cama. Quando olhou as roupas que havia separado reclamou:

— Vai levar só isso?

— Bom, não devemos demorar mais de dois dias, mãe.

— Acho melhor levar roupas para uma semana. Não sei como vão ficar as coisas lá, não vamos arriscar.

Ela separou mais roupas para, pelo menos, 10 dias e foi guardando tudo na mala. Enquanto eu guardava um livro, um caderno, um estojo, coisas para usar no cabelo e aparatos tecnológicos na mochila. Ela separou os itens de higiene pessoal em uma bolsa que guardei dentro da mochila e acrescentou um lençol, um travesseiro e um guarda-chuva na mala que quase não aguentava mais.

Então ela foi na sala e voltou com uma pequena pasta.

— Isso e tudo que tenho pra te ajudar, filha. Também peguei sua carteira do plano de saúde e outras coisas que você pode precisar se passar mal. Além de uma quantia em dinheiro pra caso precise. O cartão e mais esse dinheiro você põe na sua carteira com todos os seus documentos, certo?

— Obrigada, mamãe. Mãe, você não estar chateada comigo, está?

— Não, meu anjo. – Ela respirou fundo e sentou ao lado da mala na minha cama, pegando minha mão – Eu só fiquei surpresa. Nunca achei que você se interessasse realmente por saber algo que só te fará mal. Saber como você pegou a sua doença e porque sua mãe biológica te abandonou não farão você mais feliz. – Ela suspirou de novo – Mas talvez isso alivie suas dúvidas. Não estou magoada, só não entendo como não percebi o quanto essas dúvidas te incomodam e preocupada que você possa não conseguir sana-las. Mas, de qualquer forma, tenho esperança de que você e o Martínez enfim se resolvam nessa viagem.

Fiquei sentida pela declaração tão sincera de preocupação e amor da minha mãe. Comecei a chorar e ela também. Minha mãe limpou minhas lágrimas, me fez sentar em seu colo e me abraçou como um bebê.

— Te amo demais, Pamela. E quero seu bem acima de tudo. Se não encontrar o que procura estarei aqui pra te apoiar, se encontrar, também estarei aqui. Mas acima de tudo, filha, espero que possa se aceitar. Você tem uma longa vida pela frente e tem tudo para ser muito feliz, estou do seu lado. E vou estar com você pra sempre.

Murmurei um “Te amo, mãe” baixo, em meio ao meu choro, agora intenso.

O lado ruim de ser ter pais velhos é a perspectiva de que eles não passaram tanto tempo ao nosso lado. E mesmo que ela só tivesse tocado indiretamente nesse assunto, meu coração se apertou. Sentei na cama ao lado dela até parar de chorar totalmente, enquanto ela me fazia cafuné.

Então, sem falar mais nada, ela me deu um beijo na testa e voltou pro seu próprio quarto. Fui conferir o celular, já eram quase 18h e havia uma mensagem do Dr. Marcio dizendo que não havia nenhum problema e me desejando boa viagem. Fechei minha mala, peguei uma bolsa pequena em que guardei a carteira, um batom e uma toalhinha. Avisei minha mãe que ia na casa do Mart hoje e me arrumei.

Fiquei lendo um livro online no meu computador e tomei o remédio quando meu alarme tocou, até ouvir uma buzina na porta. Desliguei tudo, dei um beijo na minha mãe e entrei no honda CR-V EXL 4X4 da mãe do Mart. Ele me deu um selinho e seguimos para a casa dele.