Ondas de uma vida roubada

Aroma a ilusão


Vários dias se passaram desde o fantástico anúncio do tão inesperado festival de talentos. Cada aluno vivia aquele ambiente trepidante e comemorativo à sua própria e distinta maneira. Alguns imaginavam as suas caras nos mais diversos jornais e revistas, outros distraíam-se, pensando nos inúmeros concertos que iriam dar, outros deambulavam mentalmente pelas grandiosas festas da alta e mascarada sociedade mundial, John entoava por todos os corredores o seu discurso de vitória certa, Tatiana ensaiava o seu melhor sorriso para aparecer nas fotografias, Diana, por seu turno, lutava contra a ansiedade e o receio, estando por muitas vezes à beira de desistir daquela enorme loucura, porém o seu grande amigo Peter sempre estava lá para a impedir. Anúncios radiofónicos entoavam pelos milhares de cantos da escola secundária. Gigantescos letreiros foram pregados em pontos estratégicos, exibindo magníficas letras garrafais com mensagens de incentivo.

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Na tarde que antecedia o tão ansiado festival, Diana saiu da escola, transportando a sua bicicleta numa das mãos e um pesado livro na outra. Lanchou com Peter no café predileto.

– O que é isso aí no teu braço? – Perguntou a jovem pegando a lata do sumo de laranja que estava a beber.

– Nada de especial. – Mentiu Peter, escondendo algo com a manga da T-shirt.

– Não me mintas, deixa-me ver. – Disse Diana, agarrando a grande velocidade o braço do amigo. Uma ferida muito feia e sangrenta brilhava tragicamente no cotovelo do jovem. – Como fizeste isto? – Perguntou preocupada. – Alguém te agrediu? Quem foi?

– Como queres que responda a tantas questões ao mesmo tempo? Tem calma miúda! Ninguém me atacou. Quando cheguei ontem a casa a minha tia tinha lavado o chão do hall de entrada, eu não sabia e escorreguei. Isto não é nada de grave. – Explicou Peter, mordendo o lábio inferior devido aos remorsos incessantes e pesados.

– Não sei se acredito. Quando quiseres contar a verdade, eu estou aqui. – Respondeu sinceramente Diana, olhando uma última vez para o ferimento mentiroso. – Bem vou embora. Até amanhã, cuida dessa ferida. – Despediu-se, pegando nas suas coisas e seguindo rumo ao orfanato.

A linda morena entrou no seu bairro, respirando de forma ofegante devido à grande distância que tivera que percorrer a pé. Parou junto de um banco velho e partido, repleto de pontas de cigarro e latas de cerveja vazias. Olhou em redor, observando a grande e injusta miséria e pobreza onde o seu lar estava trancado sem chances de fuga possível, grande parte culpa da sociedade onde viviam, e a outra percentagem devia-se ao facto daquelas pessoas traídas pelo destino não terem coragem nem força para alterar os seus caminhos miseráveis e sujos. A jovem começou a andar, o seu coração estava embriagado pela decadente tristeza e pela terrível angústia.

De súbito paços arrogantes e rápidos cruzaram os pensamentos e o caminho da linda jovem. Alguém rudemente tentou arrancar a mochila, porém:

– O que pensas que estás a fazer, Sam? – Perguntou Diana destemida, fitando cautelosamente a navalha que lhe era tremulamente apontada.

– Dá-me dinheiro! – Ordenou Sam em voz ameaçadora, encostando a arma ao braço da jovem. – Agora! – Gritou.

– E porque te daria eu o meu dinheiro, diz lá valentão? – Questionou a morena sorrindo cinicamente. – Estou a espera de uma resposta, Sam. – Insistiu.

– Já disse dá-me a carteira! – Proferiu o rufia, exercendo pressão com a lâmina ferrugenta no braço da adolescente.

– Já não estou a compreender, tu queres a carteira ou o dinheiro, porque as duas coisas, eu não te dou, disso podes ter tu a certeza absoluta. – Brincou Diana, aproveitando a raiva do rufia para o imobilizar e atirar ao chão, lançando a faca para bem longe.

– Sua! – Praguejou Sam tentando-se erguer, todavia Diana previra essa tentativa mesmo a tempo, colocando um joelho em cima do peito arfante do rapaz.

– Não percebi, o que é que me ias chamar? – Perguntou a jovem em voz baixa. – Olha Sam, tenho um concelho para ti. – Iniciou

– Eu não quero concelhos de uma…

– Cala a boca antes que leves, eu estou a perder a paciência contigo. Sabia que eras um preguiçoso que se acostumou às traições da vida, as vicissitudes deste bairro, a pensamentos sórdidos e sujos, todavia nunca imaginei que agora fosses ladrão. – Repreendeu a jovem embalada pelas faíscas que voavam dos seus lindos olhos azuis e raivosos. – Dinheiro fácil e poluído nunca foi o caminho mais certo nem nunca será, pára de te queixar da vida ingrata e injusta que tens, tu nunca fizeste nada para a tentar mudar, nunca seguiste outro rumo, nunca tiveste essa coragem. Olha, tenho uma novidade para ti, a vida não é justa nem grata. – Continuou.

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– Tu não sabes do que falas, miúda. – Queixou-se Sam, sentindo a humilhação percorrer todo o seu fraco ser.

– Acreditas mesmo que a minha vida tem sido fácil? Enganas-te. Perdi a minha mãe era eu ainda um bebé, não sei se o meu pai está vivo ou morto, contudo não foi por esses motivos e mais alguns que hão-de vir que eu decidi baixar os braços e optar pelos piores caminhos, droga, prostituição, roubou e coisas desse género. – Respondeu categoricamente, ignorando as tentativas falhadas que Sam fazia para se libertar do seu joelho e das suas duras e cruéis palavras. – Eu ergui a cabeça, escondi as lágrimas e os medos e enfrentei dia após dia. Tu não és diferente de ninguém, por isso vai à luta, cria perspectivas, sonhos e metas, torna-te um ser humano digno e útil, muda por ti e não pelos outros, mas muda mesmo Sam. - Finalizou Diana, levantando-se e seguindo o seu caminho, deixando o rapaz entregue e amarrado àquele discurso.

Nessa noite, Diana comeu muito pouco ao jantar, fruto dos infalíveis nervos que a atacavam sem dó nem piedade. Depois de várias tentativas fracassadas, pousou os talheres ruidosamente no prato e olhou em volta, observando todos aqueles com quem partilhava o destino, a vida e o orfanato.

– Estás doente, minha querida? – Perguntou a Madame Lisa, retirando o prato da sua frente.

– Não, estou ótima, não se preocupe. Importa-se que vá para o meu quarto? – Pediu educadamente.

– Claro que não, mais tarde levo-te um copo de leite para dormires melhor. – Concordou a ternurenta e dedicada mulher.

– Obrigada. – Disse Diana, caminhando em seguida até ao seu quarto deserto e silencioso.

Sentou-se na sua cama de madeira branca, decorada com uma bonita colcha de lã azul, tricotada na perfeição pela doce Madame Lisa. Apoiou os cotovelos nos joelhos e vislumbrou atentamente a sua coleção de cromos que crescia a olhos vistos. Pegou-lhe com cuidado, revelando as figurinhas reais dos heróis que protegem a paz na Terra, que devolvem a estabilidade ao planeta, que almejam a esperança e a coragem apenas com palavras. Ela sorriu calmamente, vendo na passerelle da sua mente, o Gavião Arqueiro, o Thor, o Homem-Aranha, o Homem-Formiga e muitos outros lançarem-lhe olhares de tranquilidade e força de vontade. Num repente sofredor e triste a saudade do seu pai e da sua mãe invadiu o seu jovem coração com a potência de uma bomba atómica. Algumas lágrimas sonhadoras e teimosas nadaram até à superfície azul dos seus lindos olhos, manchando o seu bonito rosto com a água salgada e injusta do vasto oceano do seu ser.

– Um dia, eu irei encontrar-te. – Murmurou, enquanto algumas gotas de saudade e perda caíam brilhantes sobre o cromo do Capitão América, que se protegeu delas com o seu poderoso escudo, refugiando-se no sorriso que Diana normalmente exibia. – Para mim tu és um herói, melhor do que o Homem de Ferro, mais corajoso do que o Capitão América, mais divino do que o Thor, mais bonito do que o Gavião Arqueiro e mais engraçado do que o Homem-Aranha. – Afirmou convicta, pousando os cartõezinhos sobre a mesinha-de-cabeceira.

Diana vestiu o pijama e mergulhou nos seus lençóis de sonhos e fantasias inalcançáveis e estúpidas, no entanto antes que tivesse tempo de fechar os olhos paços apressados arrombaram a sua porta.

– Diana! Diana! Vem, tens que ver a notícia que está a passar na TV! É incrível, eles são incríveis, oh meu Deus! Vem rápido! – Gritava um menino eufórico.

– Calma Ronald, eu já estou a ir. Daqui a pouco dá-te um ataque cardíaco com tanta ansiedade. – Preveniu a jovem, entrando na cozinha deparando-se com todas as crianças apinhadas em volta do pequeno e velho televisor.

No ecrã várias figuras misteriosas e conhecidas do público desfilavam entre inúmeras camas hospitalares, fazendo as delícias das crianças doentes. Uma jornalista falava muito rápido tentando acompanhar todos os pormenores daquela visita inesperada.

– Os heróis mais poderosos do planeta juntaram-se hoje para uma grandiosa iniciativa de solidariedade. Visitaram em surpresa a ala pediátrica do hospital de Nova Iorque para garantirem um dia diferente e inesquecível a estas pobres e frágeis crianças. – Relatava, empolgada, focando o Capitão América segurando um menino ao colo e dando-lhe um grande e sentido beijo na testa. Noutra perspectiva encontrava-se o Gavião Arqueiro brincando alegremente com uma menina loirinha, os seus sorrisos eram contagiantes e lindos. – Capitão América o senhor importa-se de dar umas palavrinhas para o noticiário? O que leva um herói a dedicar-se a estas causas plenas de nobreza? – Perguntou ela efusivamente quase ao colo do Super Soldado.

– Comparadas comigo, estas crianças é que são os verdadeiros heróis, pois lutam afincadamente todos os dias contra a morte traiçoeira, eu apenas luto contra uns vilões aqui e ali, nada de especial, comparando com as vitórias alcançadas por eles. – Respondeu o Capitão emocionado, dando um aperto de mão num menino sentado numa cadeira-de-rodas.

– Qualquer dia temos que fazer uma corrida eu a pé e tu nessa máquina, meu! – Brincou Clint Barton, aproximando-se do local de foco, o menino sorriu alegremente perante a presença de tais ídolos.

– A felicidade, a surpresa e a concretização marcaram o dia de hoje neste hospital e marcarão de igual forma a vida destes pequenos grandes heróis. – Concluiu a jornalista.

Todas as crianças do orfanato Spring estavam muito felizes por verem os seus heróis num cenário completamente diferente do que estavam habituados, ali não existia espaço para dor, sangue, morte e gritos, apenas sorrisos, luz e esperança eram permitidos e fortemente incutidos e comercializados.

Diana bebeu num grande trago a sua poção branca, quente e açucarada antes de retornar ao seu solitário quarto, onde Linda já penetrara voluntariamente no mundo mágico da fantasia, para enfrentar uma demorada, longa e ilusória noite. O tão desejado sono não vinha ao seu encontro, por mais carneirinhos que ela contasse, por mais frases de incentivo que prenunciasse, por mais reviravoltas que desse, ele teimosamente não vinha. A sua mente vagueava absurda e indubitavelmente, pelos doentes corredores daquele hospital, via com nitidez todos aqueles heróis saltarem dos seus olhos para uma dimensão vazia e inconcreta, perdida num emaranhado de partículas anatomicamente incompletas e imperceptíveis, banhada por poeiras de prata e sangue. Esse lugar esquecido na imensidão triunfante de emoções e sentimentos, ideias e valores, receios e certezas, era o seu coração batendo ao sabor de todos aqueles corpos celestes e justiceiros. Todavia, nem todo aquele alarido de luz, som e esperança cativava as atenções do Deus do sono, desprezando Diana à mercê do cansaço e da ansiedade mórbida e esmagadora.

A jovem sem fazer barulho algum, levantou-se e isolou-se com a escuridão alaranjada do seu quarto. Calçou os seus chinelos, e em paços rápidos e abafados patinou até à porta, abrindo com cuidado e saindo para o corredor somente deserto. Chegada à porta principal, rodou a maçaneta e entrou na criminosa rua.

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Desceu os sujos degraus, sentando-se no último patamar. Observou a paisagem assustadora e injustamente tecida pelas mãos de pessoas imperfeitas que usam as imperfeições e carências de outrem para construir os seus programas de diversão e mealheiro infinito. Olhou o tapete alcatroado com pesar, imaginando uma belíssima vereda campestre onde os sinais de trânsito eram bonitas árvores de fruto e flor. Olhou igualmente os candeeiros camuflados pelo nevoeiro fumador, imaginando o radioso sol de Verão. Cheirou aquele fumo trágico, agressivo e persistente, imaginando o delicioso e doce aroma do amor eterno dos seus pais tão amados. Ouviu ao longe sirenes apressadas e estridentes, imaginando que eram o bater das asas de borboletas que a transportariam para os braços do seu perdido herói. Viu de relance um grupo nojento de raparigas impuras que buscavam incessantemente o dinheiro fácil através do prazer miserável da carne. Uma brisa noturna com cheiro a cinza fustigou-lhe o rosto sonhador, fazendo-a despertar atribuladamente. Alguns paços pesados e obrigados colocaram-na em alerta, impulsionando-a para o degrau superior.

– Uma jovem como tu não devia estar sozinha na rua a esta hora, pode ser muito perigoso. – Diana reconheceu a voz rouca e agressiva do polícia maldisposto que traçava a ronda preguiçosa por aquelas bandas.

– Claro tem toda a razão, desculpe senhor Fred. Vou já para dentro. – Respondeu Diana entrando precipitadamente na escuridão acolhedora do edifício.

No entanto, quando fazia a perigosa e silenciosa travessia de regresso ao seu ninho, chocou duramente com uma superfície sólida e horrivelmente perfumada, caindo ao chão com um grito agudo de pavor e censura.

– Vejam o que temos nós aqui! – - Disse maliciosamente uma voz de mulher. – Acho que a minha mãe vai adorar saber disto. A sua querida e perfeita Diana a sair à socapa a altas horas da noite. – Ameaçou a detestável e impiedosa Monique deliciada com a situação.

– Tenho uma pergunta para ti, Monique. Como está o padre Philipe? Pelo que sei os vossos encontros não se reduzem apenas aos domingos de missa pois não? – Contra-atacou a perspicaz jovem sem misericórdia nas suas ofensivas palavras. – Acho que ouvi a minha cama a chamar-me, não estás a ouvir também, que barulheira que ela faz! – Zombou Diana, feliz com o efeito de cólera que provocara naquela mulher.

– Isto não fica assim! – Garantiu Monique cedendo a passagem.

– O padre Philipe nunca te preveniu que as pessoas más e pecadoras têm um lugar muito especial reservado nas profundezas fumegantes do Inferno? Tem cuidado minha amiga! – Zumbou de novo Diana, correndo até ao seu refúgio.

Conhecerá Diana verdadeiramente o seu melhor amigo?