Eu ainda me lembro de como Tio Gale tinha amor àquelas terras. Mais que papai até. Ás vezes, eu saía com ele para procurar minhocas. Não me pergunte porque eu fazia isso.

Ele me contava as histórias de como era antes de irmos para aquela fazenda, e eu digo “irmos” porque eu já existia só não tinha nascido ainda. Tio Gale contou que foi um trabalho imenso para ele pegar tudo de importante que tinha no hospital que viviam e outro trabalho imenso para meu pai achar uma fazenda desocupada que tivesse um gerador de energia funcionando.

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No começo foi tudo muito difícil: eles tinham apenas um casarão para muitas pessoas, uma grávida que desmaiava sem parar e um bando de problemas para resolver. Papai sempre disse que foi da necessidade que surgiu a amizade dele com Tio Gale, que na verdade ele não queria papo, mas eu sei que eles teriam sido amigos mesmo se não houvesse necessidade.

Com o tempo as coisas foram se ajeitando: começaram a fazer mais casas pequenas de madeira ao redor do casarão, organizar um plantio na terra e um racionamento eficaz de água. Então eu nasci e é claro, as coisas melhoraram muito com a minha chegada.

“Tão convencido quanto o pai” mamãe com certeza diria se estivesse aqui.

É estranho eu ter 18 anos e ainda chamá-los de “mamãe” e “papai”?

Dane-se.

Não muito tempo após minha chegada, papai começou a planejar com tio Gale formas de adquirir energia sem utilizar o gerador. Quanto mais energia, melhor. Começaram a fazer placas e equipamentos que permitisse a obtenção de energia eólica e solar e não foi muito difícil. Antes de toda aquela tragédia o mundo já tinha se adaptado a receber energia do sol e do movimento do vento, considerando que a energia hidráulica há muito não era viável pela escassez de água.

Em dez anos já éramos uma comunidade organizada e segura.

Aos poucos, os líderes foram recebendo pessoas novas, sobreviventes que perambulavam. A lei era severa e tinha mesmo que ser, considerando que foi meu pai que as pensou. Quando se lidera um ajuntamento de pessoas depois de uma catástrofe, ou você lidera com punhos de ferro, ou então tudo vai virar uma bagunça sem precedentes, impossível de se reorganizar.

A comunidade cresceu e se desenvolveu muito, não só pelos bens, mas também pelo modo de vida das pessoas, que agora voltavam a ter valores éticos e senso de humanidade. Papai logo percebeu que era simples: viva entre humanos e mais humanizado ficará.

E foi assim que ele soube como salvar o resto da cidade.

Depois de criar várias estratégias, voltou à cidade com um grande número de homens, a fim de acabar com as gangues. Ele queria que as coisas voltassem a ser como antes: que as pessoas andassem livremente nas ruas, que quem fizesse mal sofresse uma punição sendo preso e que não precisassem mais ter medo uns dos outros.

Pareceu um sonho ambicioso demais e as pessoas não acreditavam mais em uma sociedade totalmente organizada, mas o Mellark era durão. Ele ainda é.

Demorou mais de dez anos, mas ele conseguiu. Instituiu homens como policiais nas ruas, deu atribuições para cada pessoa a fim de que ajudassem no que ele chamava de “reconstrução do mundo” e incumbiu aos que tinham maior nível de escolaridade que dessem educação escolar às crianças.

Eu ainda me pergunto como um guerreiro estrategista, uma mulher corajosa, um líder de bando, dois rapazes engraçados e uma doutora com poucos enfermeiros conseguiram fazer algo que todos achavam que nunca mais veriam.

Civilização. Organização. Interação.

Quando começou tudo isso papai não sabia, mas hoje eu sei: ele estava reescrevendo a história.

Mamãe tinha medo que a liderança e o poder lhe subisse à cabeça. Ela o tempo todo o fazia lembrar-se como as coisas eram antes e que ele deveria sempre ir com calma para não destruir tudo o que conquistaram.

Todos os anos eles visitavam o túmulo de Lily. Quando eu era criança, mamãe me contava histórias dela, e eu até posso dizer que sentia falta da garotinha esperta de cabelos loiros, até mesmo sem conhecê-la. Meus pais nunca deixaram de sentir falta dela. Nem de Aya, Delly, Ritie e todos os familiares que se foram sem que pudessem fazer nada.

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Agora, no entanto, podiam. Fariam um mundo melhor por eles, por todos aqueles que morreram lutando para proteger seus lares, suas famílias, seus amados.

Por que se pararmos para pensar é tudo o que realmente temos. Digo, uns aos outros, é o que temos. Por isso nos organizamos em ajuntamentos desde a era paleolítica, desde que o mundo é mundo. São os nossos iguais que nos impulsionam, nos dão forças para melhorar, explorar, proteger.

Talvez por isso meu pai consegui tanto: sua ânsia por proteger e amar sua família acabou por afetar a todos, e o que antes era fugir com uma mulher grávida para lhe dar apoio e proteção, transformou-se em fugir com um grupo de pessoas e proporcionar-lhes tais coisas, e mais.

E pensar que tudo começou com uma garota assustada e muda em um beco. Ele sempre ri quando lembra do tempo que mamãe não falava.

Eles se amam muito. Eu me lembro da primeira vez que ouvi eles dizerem “eu te amo” um para o outro. Os dois são como guerreiros, e discutiam às vezes, então isso não acontecia muito às vistas, porém quando acontecia, era como se enchesse o lugar de paz. Aquele era o sinal que me trazia ao entendimento que estava tudo bem. Enquanto eles se amassem e estivéssemos juntos, tudo estaria bem.

É engraçado como o sonho deles é o meu sonho. Ver tudo crescer, florescer, é uma dádiva que eu não troco por toda riqueza que eu pudesse conhecer.

E se tem uma coisa que eu aprendi com toda essa trajetória de sofrimento que as pessoas tiveram que passar até se reorganizarem, é que o mundo é o que somos. Os problemas não se resolvem, eles esperam que alguém tome coragem e os resolvam.

E foi assim que meus pais fizeram uma sociedade ressurgir das cinzas.

Cinzas de uma Era que apesar de ter sido ultrapassada nunca será esquecida.

Os mortos não serão esquecidos.

Parecem tristes, mas as cinzas trazem esperança. Como o ressurgir de uma fênix.

Intenso. Fascinante.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.