Cinzas de uma Era

Capítulo 24 - Pode ir.


— Mãos pra cima! Vamos, cara, levanta as mãos! — Os gritos de Finnick tiraram Katniss da pausa que seu cérebro deu ao ver Peeta assim. E não era apenas pelo sangue, tinha também o olhar. Aquele olhar... Tristeza? Dúvida? Ou apenas cansaço? — Meu Deus do Céu por favor, não diga que isso é sangue humano!

Katniss correu em direção ao loiro ensanguentado, que continuava parado, sem reação alguma, mesmo com a arma de Finnick apontada diretamente para ele.

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— Katniss, não chega perto dele! Ele pode ser perigoso! — Gale advertiu

Ela, porém, não deu ouvidos, e mesmo ele estando totalmente ensanguentado, o abraçou com todas as forças que conseguiu. E chorou.

— Meu amor, o que você fez? O que você fez, Peeta?

— Você também não está com medo de mim? — A voz de Peeta saiu em um sussurro rasgado e doloroso. Katniss se afastou para olhá-lo, um pouco irritada pela insinuação dele, ao mesmo tempo que sentia uma espécie de pena.

— Nunca tive medo de você — sussurrou ela — não é agora que vou ter, é?

— Katniss! — O chamado de Gale os interrompeu. — Vem para cá! Não sabemos quem ele é, e...

— Ele é meu marido, Gale — afirmou, interrompendo-o.

Gale calou-se e pareceu engolir em seco antes de falar novamente:

— Marido? Quando você se casou? Não me lembro de saber disso antes dessa loucura começar, eu nem sabia que você tinha ficado noiva outra vez...

— Outra vez? — questionou Peeta, passando seu olhar de Gale para Katniss.

— Gale era... — começou ela — Gale e eu já fomos noivos. Tínhamos terminado há pouco tempo quando tudo aconteceu.

Peeta calou-se por um tempo, depois voltou seu olhar a Gale, que continuava a o observar, mas sem a intenção de falar coisa alguma.

— Peeta — chamou Katniss, sob a atenção de todos. — E Troid? Eu ouvi um tiro e fiquei preocupada...

— Está morto — respondeu simplesmente.

— Dianna? — perguntou Otto, que até então não tinha falado absolutamente nada.

— Morta — foi sucinto pela segunda vez.

Otto pareceu ter sentindo algum tipo de compaixão por Dianna, pois encolheu-se e voltou a sentar-se na guia, onde estava antes de Gale e Finnick chegarem.

— Você tem água, Gale? — perguntou Katniss, porém sem tirar os olhos de Peeta. Sem conseguir parar de tentar imaginar a forma que Troid morreu para que tanto sangue fosse dissipado.

O moreno apenas assentiu e subiu no caminhão trazendo de lá dois livros de água. Katniss o tomou e começou a jogar aos poucos sobre o rosto e pescoço de Peeta. O sangue já estava secando, o que fazia a cena toda mais estranha e feia de se ver. Enquanto lavava, Katniss começou a notar que ele estava ferido: haviam cortes perto da sobrancelha esquerda, no queixo e várias escoriações na bochecha. Seu nariz também sangrava.

— Meu Deus, Peeta! Você está machucado! Ficou aí calado enquanto eu pulava em você e piorava as coisas?

Peeta nada respondeu, apenas a observou falar, e às vezes olhava para as roupas dela que agora também jazia machada pelo sangue do maldito Troid.

Quando Peeta estava um pouco mais apresentável, Gale rompeu o silêncio:

— Kat, a gente não pode ficar aqui, mesmo que já tenha amanhecido, não é seguro. Temos um acampamento, e abrigamos pessoas lá. É seguro, tem comida e até um pouco de energia elétrica que usamos de forma racionada.

Katniss nada respondeu, apenas o ouviu, sentindo o olhar de Peeta descer para encarar a grama. Ele estava visivelmente inseguro e Katniss odiava vê-lo assim. Como houve um silêncio da parte dela, Gale continuou:

— Sabe, a Annie está lá, e ela não se cansa de lembrar de você. Ela vai cair dura quando eu disser que você está mesmo viva, como eu sempre acreditei.

— Annie — Repetiu Katniss, sentindo voltar a vontade de chorar. Ela e Annie eram tão amigas... Sempre foram.

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Ao sentir o embaraço da coisa toda, Peeta decidiu se pronunciar:

— Você pode ir, se quiser. Não que precise de permissão, mas só para você saber. Está tudo bem se quiser. — Ele sorriu de lado meio triste, logo depois fazendo uma careta por ter mexido algum ferimento.

Katniss enxugou as lágrimas e olhou para Gale e Finnick, antes de voltar-se a Peeta e sorrir.

— Tudo bem... Tem alguma coisa sua na casa ainda? Podemos pedir a Otto para que ele pegue e iremos... Lá eu posso cuidar dos seus ferimentos pois estão bem...

— Não... Não, Kat, você vai. Eu não. — Katniss o olhou tão duvidosa quanto irritada esperando que ele se explicasse. — Eu vou voltar para casa. Vou estar esperando você lá. Se você quiser, pode levar o garoto com você.

— Peeta, por quê? Por que você não pode simplesmente ir? — replicou, chateada. — Por que você tem que ser sempre tão complicado?!

Peeta desviou o olhar dela, olhando para o lado e encontrando o olhar de Gale. Ele observava tudo atenciosamente.

— Você sabe que não me relaciono com muitas pessoas há muito tempo, Katniss. Não quero parecer rude a ninguém.

— Tudo bem, então eu vou para casa com você, te ajudo com os ferimentos e descanso um pouco também. Eu dou o endereço a Gale e ele vai me buscar amanhã.

— Por que ele não dá o endereço dele? — Peeta sempre fora desconfiado. Não seria agora que a coisa mudaria.

— Posso lhe dar, se você insiste. Não temos nada a esconder.

Gale já estava respondendo de forma rude e aquilo não estava agradando a Katniss nem um pouco. O que ela menos queria era que os dois começassem algum tipo de embate.

Em instantes, um papel era colocado na mão de Katniss com o endereço onde o abrigo coletivo deles funcionava.

— Saber que você ainda vive foi uma das melhores notícias que tive, Gale — afirmou ela, o abraçando para se despedir. — Eu te vejo amanhã.

— Também fiquei mais que feliz, Kat. Nós vamos estar esperando por você. Sempre.

Katniss sorriu e seguiu até Finnick para abraçá-lo também.

Quando o caminhão saiu, restaram apenas Peeta, Otto e Katniss na pista. Após Otto recolher alguns pertences de Peeta da casa, e também guardar na bolsa vários utensílios da dispensa, voltou à pista onde o esperavam. Ele evitou o tempo todo olhar para os corpos na sala.

— Vamos, o carro está a alguns metros daqui.

Peeta seguiu andando na frente e Katniss percebeu que estava mancando com uma das pernas. Ela correu até ele e se pôs ao seu lado.

— O que houve com sua perna? Está ferida também?

— Não, eu só devo ter chutado forte.

Chegando no carro, Otto se pronunciou acerca do percurso:

— Eu posso dirigir se o senhor quiser... O senhor sabe... Para descansar um pouco.

Peeta olhou para o garoto ponderando. Bem, era cedo da madrugada, o que poderia acontecer?

— Tudo bem, garoto. Toma a chave.

Peeta abriu a porta de trás do carro e deitou-se ali tentando esticar suas costas que doíam como o inferno. Esperou que Katniss entrasse no banco da frente, mas em vez disso ela entrou pela outra porta, também no banco de trás, tomando a cabeça dele e deitando em seu colo.

Em pouco tempo o garoto já tinha dado partida e seguiam para casa. Peeta nada dizia, uma hora olhava a esposa, outra hora apenas observava o céu pela janela do carro.

— O que você tem, Peeta? Por que está tão calado? E por que está me olhando assim?

— Assim como? — quis saber ele, mesmo sabendo exatamente com qual olhar a estava olhando.

— Assim, triste. Aconteceu alguma coisa lá dentro da casa que você quer que eu saiba?

— Aconteceu, mas não é sobre isso.

— Sobre o que é então?

Katniss esperou a resposta que não veio. Ele apenas voltou o olhar novamente para a janela, submerso a seus pensamentos. Katniss pôs-se então a acariciar os cabelos dele, ainda chapiscos de sangue.

Ao chegar em casa, Peeta partiu direto para o banheiro para lavar-se por inteiro. Não aguentava mais o cheiro do sangue odioso de Troid.

— Você pode se sentir em casa, Otto. Pode comer, descansar, e tem até revista e livros naquele quarto, se você quiser ler — explicou. — Vou ser sempre grata a você. Eu não voltaria para casa sem sua ajuda.

Otto apenas sorriu, sentando-se no chão e apanhando uma revista que Katniss percebeu ser de uma história em quadrinhos. Olhando-o assim, sentado com as pernas cruzadas, lendo atenciosamente uma história, com seus cabelos escuros e compridos caindo-lhe sobre os olhos, Katniss nunca poderia associá-lo a alguém que já matou uma outra pessoa. Otto era um adolescente que não tinha a menor pressa em crescer.

Entrou para a cozinha a fim de averiguar o que teria para comer e preparou o que deu com os enlatados que tinha. Em instantes, Otto apareceu na cozinha, comendo bastante, depois voltando-se à sua posição inicial, com a revista entre as mãos.

Depois de tomar banho, Katniss percebeu que Peeta não tinha ido à cozinha, então deduziu que ele estaria no quarto, por isso decidiu levar a comida até ele. Encontrou-o deitado na cama, parecia muito melhor depois de limpo com os cabelos molhados e pequenos curativos no rosto, a olhar para o teto. Ele estava sem camisa e Katniss percebeu as marcas roxas que se formavam em seu abdômen, com certeza proveniente dos socos que levou. Ele parecia tão cansado.

— Não parece que você dormiu bem na noite passada — comentou, entrando e depositando a bandeja com a comida na cômoda ao lado. — Esse cansaço nos olhos não foi adquirido hoje. Tem tido insônia, querido?

— Não consegui dormir sem você. Não sem saber onde estava, ou se estava viva. A não ser, é claro, nos momentos em que eu apagava em desmaios.

— Também não dormi sem você — respondeu ela, deitando-se ao lado dele na cama, percebendo que ele não se moveria para comer naquele momento. — Você não vai comer? Gastou muitas energias hoje.

Ele apenas negou com a cabeça, virando-se para ela, a olhando, gravando cada parte do seu rosto.

— Eu ia deixar para falar isso amanhã, mas como você não quer comer e ao que parece nem dormir, vou pedir agora mesmo.

— O que quer, meu amor? — Ele trouxe sua mão para o rosto dela acariciando devagar. Ela sabia que ele estava mais carinhoso e sentimental que o normal, considerando que seus olhos estavam marejados naquele instante, porém achou aquilo totalmente inteligível. O modo brutal como ela fora levada, o suposto cadáver carbonizado... Ela sabia que aquilo mexeria com ele, assim como vê-lo apanhando em sua frente lhe causou uma aflição infinita.

Pousou sua mão sobre a mão dele, recebendo seu carinho ao mesmo tempo que lhe acariciava as costas da mão. Não falou nada por um tempo. O silêncio estava tão bom.

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— É sobre Otto. Ele quer ficar conosco. Ele é um bom garoto, Peeta, só fazia o que lhe mandavam por não ter a quem recorrer.

— Se você quer, ele pode ficar.

Katniss sorriu, aproximando-se dele e lhe beijando nos lábios. Um beijo simples, porém demorado, cheio de sentimentos e saudade. Ele parou o beijo quando sentiu algo molhado em seu rosto.

— Por que está chorando, Kat?

— Só estou feliz de estar em casa novamente. Não falo desse apartamento ou do abrigo. Falo de você. Você é a minha casa.

Ele a observou, mas não sorriu como ela pensava que ele faria. Ao invés disso, tirou a mão que estava sobre o rosto dela, repousando-a sobre sua cintura, antes de dizer:

— Eu quero te dizer uma coisa. — Ao perceber o olhar curioso dela, ele encurtou a pausa para logo continuar. — É sobre Gale, e Annie. E o outro cara. Não quero que se sinta presa a mim pelo que eu fiz a você há alguns meses. Ou pelo que eu fiz a Lily. Ou pelo que eu fiz por você hoje. Não quero que fique comigo só porque é grata a mim. Se você quiser ir e ficar com eles, se lá for seguro e você se sentir bem e quiser ficar, eu vou entender.

Katniss desceu os olhos para a mão dele, observando a aliança em seu anelar.

— Eu te amo, Katniss. Eu já sabia disso, mas nesses dias terríveis eu descobri que a amo mais que a mim. Então não me importo muito em como eu esteja, se você estiver feliz. Você já disse, tudo comigo é complicado. Quero que tudo para você seja simples e bom. Só quero que saiba que você pode ir.

Katniss levantou-se e ficou de costas para ele, pensando. Pensando em Gale, em Finnick, Annie, e em outras pessoas do seu passado que ainda poderiam estar vivas e habitar naquele lugar. Talvez parentes seus. Pensou em tudo que passou ao lado de Peeta.

Pensou em absolutamente tudo, antes de formular sua resposta.