Levanta e Anda

Capítulo Único


Levanta e Anda

Paulo avistou a criança célere brincando com outra garota, perto das escadarias. Do outro lado, duas mulheres mais velhas conversavam sobre a roupa aparatosa que a filha havia comprado no outro dia.

Ele sorriu e sinalizou para Jéssica; a garota petiz correu em sua direção, dando-lhe um abraço apertado e completo de carinho.

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— Tio! Finalmente você chegou — com os olhos brilhando de excitação e as mãos loucas para os novos presentes.

— Como tá tua mãe? — perguntou Paulo, bagunçando os cabelos afro da menina.

— Tá melhor, ela ta com a perna distendida lá no sofá — a garota sorriu e acenou para o vizinho.

Subiram as escadarias com um sorriso no rosto. Paulo sentia efluir uma grande alegria daquela gente, talvez porque o Natal estivesse chegando, ou até mesmo porque estavam ansiosos para a festa que haveria naquela noite.

Aquela era uma das maiores periferias do Rio de Janeiro. Com muitas pessoas de condições difíceis, assim como a família de Paulo.

Paulo sentia que aquele era o Natal, pois era o único final de semana do ano — a não ser o Natal — que podia ver sua irmã e seus sobrinhos.

Trabalhar em um estado desconhecido é um dos maiores desafios para uma pessoa. Ambientar-se, acostumar-se, conhecer, conseguir emprego, viver… Foram meses extremamente complicados para Paulo, mas com ajuda de pessoas bondosas, conseguiu uma quitinete e um emprego. E com isso, conseguia enviar dinheiro para a escola de Jéssica e os remédios de sua irmã.

Desde o acidente com Carla, irmã de Paulo, a vida parecia que havia se tornado ainda mais difícil. Como se estivesse obrigando Paulo a procurar um lugar melhor.

Não que a periferia do Rio fosse ruim, longe disso, ele a amava. Entretanto, não podia recusar uma oferta tão boa de emprego no Rio Grande do Sul, pois sabia que sem aquele emprego, sua irmã poderia estar em uma condição deplorável.

— E aí José, como tá as coisas? — perguntou Paulo, avistando o amigo de infância.

— Paulo, meu irmão! — abraçou-o ligeiramente e deu algumas palmadas nas costas do outro. — Vem na festa de noite, né, cara?

— Vô sim, José — assentiu e continuou caminhando, uma mão segurava a mala e o pacote tolhido e a outra apertava firmemente a mão da pequena.

— Já é! — ainda gritou José.

Quando avistou sua irmã, sentada no sofá pequeno, assistindo a um programa qualquer do sábado, sentiu um imenso calor aconchegar-se, afinal, aquele era o seu lar.

Abraçou a mais velha e deu um largo sorriso. Era quase tangível aquela profunda saudade, cheia de tristeza e tão arrebatadora — talvez fosse por esse motivo que se chamava saudade.

— Como você tá? — questionou, observando as muletas encostadas no móvel.

Ouviu a sobrinha perscrutar, mas estava com toda sua atenção em Carla.

— 'Tamo vivendo — disse ela, sorrindo e passando as mãos no rosto do irmão, como se há anos não o visse.

— 'Cóe, tio! — o garoto entrou na casa e apertou a mão de Paulo. A camiseta janota com uma letra garrafal e o boné virado para trás, eram coisas que nem mesmo meses deixavam de ser moda para Lucas.

— Tu tá grande, hein moleque!

Sentaram-se e passaram a conversar sobre a periferia, a família e o emprego.

Podia ouvir Lucas exacerbar, como sempre, o garoto gostava de exagerar e tornar as coisas mais graves do que o comum. Talvez fosse pela falta de atenção que recebia, afinal, fazia alguns meses que o pai havia morrido em um confronto com a polícia.

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De qualquer forma, Paulo fazia questão de dar todo o carinho possível para Jéssica e Lucas, apesar de ser um homem extremamente emotivo, ele não era tão carinhoso quanto aparentava. Mas quando se tratava dos sobrinhos, era impossível deixá-los de lado.

— Não quero justapor os problemas, Paulo… mas você tem que saber disso — Carla trouxe um olhar preocupado ao irmão.

— Pode 'dize, Carla. O que é que tá pegando?

— Tua filha, Paulo. Ela tá lá com aquela gente… Tu sabe que Andreia é nova demais pra ficar com aqueles caras, mesmo que tu confie neles — Carla viu o irmão suspirar e ignorar o problema.

— Eles são gente boa, Carla.

— Metido tudo com droga, Paulo. São pessoas boas, mas quando colocam aquelas porcarias no corpo viram outra gente, Paulo. Tu não percebe o perigo de deixar ela lá?

— E onde eu deixaria ela? Aqui com você? Tu não tem nem como sustentar essas crianças, Carla. Vai sustentar mais uma menina de dezesseis anos?

Carla olhou para a janela, avistando o céu limpo. Paulo olhou para o chão, sentindo aquela impotência abater novamente.



A música era alta, mas as gargalhadas eram maiores. Viu Carla entoar com as outras mulheres, vizinhas e amigas, enquanto a cerveja nos copos de plástico esvaziava-se aos poucos.

Paulo se viu em um paradigma; não sabia se ainda havia coragem o suficiente para falar normalmente com sua filha, como se nada houvesse acontecido em todos esses anos fora.

— Vai lá, cara. Ela deve tá puta com o teu vacilo, mas é tua filha, tá com saudades — José bateu nas costas do amigo, incentivando-o.

Por fim, bebeu a quarta latinha de cerveja e caminhou até ela.

Era uma menina negra alta e de olhos castanhos, tão bonita que ele tinha até mesmo orgulho, porque fora ele quem fizera.

— Oi, Andreia — não a abraçou, nem mesmo conseguiu olhar em seu rosto, estava envergonhado demais para isso.

Por anos, ignorou a existência de sua filha. E quando finalmente a assumiu e passou a amá-la, teve que ir para o Rio Grande do Sul, deixando-a sozinha. E, pior ainda, fazia meses que não ligava para ela. Tinha medo de ouvir reclamações do outro lado da linha, medo de ouvir o choro da menina que era tão preciosa em sua vida.

— E aí — murmurou, olhando para qualquer um, menos o pai.

— Fiquei sabendo que tu vai prestar vestibular esse mês — Paulo suspirou e finalmente olhou para o rosto ameno da garota.

— É, vou — respondeu, dando de ombros.

— Tu vai conseguir entrar numa boa faculdade. E eu vou pagar. — afirmou.

— Ah você vai? Com que dinheiro? — o deboche era perceptível em sua voz.

— Com o que eu ganho trabalhando, Andreia. Sei que tu tá irritada comigo e tem razão mesmo. Mas tenta ver o meu lado… tua tia perdeu uma perna, teus primos entraram na escola… Eu preciso ajudar nossa família, Andreia.

Nossa família ou tua família? Você nem se importa com tua própria filha, pai.

Andreia não chorou, pois não estava abalada com aquela situação. Sua mãe sempre lhe ensinou a cuidar dos problemas desde pequena, ensinou-lhe a ser maior que seus problemas.

— Nossa família, Andreia. Escuta, tu vai morar com tua tia a partir dessa semana, ouviu? Tu vai poder estudar tranquila lá, sem todos os caras fazendo festa todo dia. Vai tá apertado, mas é só por um tempo.

Andreia não disse nada. Apesar de passar quase toda a semana com a tia, sabia que o espaço era mínimo e mal havia lugar para três pessoas, mas estava feliz por seu pai tomar essa decisão. Amava sua tia, era uma ex-professora cheia de conhecimentos para lhe oferecer e muito carinho para dar.

— Eu vou voltar no Natal, Andreia. Mas dessa vez é pra ficar. — a garota o olhou, não acreditando totalmente.

— Isso é só uma promessa idiota — retrucou ela, recebendo um cutucão carinhoso do pai.

— Não é uma promessa a toa, Andreia. Eu guardei um dinheiro todos esses meses e isso vai dá pra alugar uma casa maior pra gente e eu vou até comprar um fogão novo pra tua tia! Mas não fala nada pra ela, quero que seja surpresa — disse Paulo, sorrindo ao ver a filha sorrir.

— Tá legal então, vou confiar no que você diz!

— Tá brava comigo? — perguntou baixinho, com receio da resposta.

— Um pouco… mas eu sei que você precisava disso — sorriu e abraçou brevemente o pai, sentindo o cheiro da cerveja em sua camiseta.

— Sabe, Andreia, tu é a única representante dos teus sonhos no mundo e se isso não te faz correr atrás… então não sei o que vai.

— Tá me dizendo isso por quê?

— Porque eu quero que você faça a faculdade, é difícil, sei que dá vontade de desistir às vezes. Mas você é inteligente e se persistir, tu vai bem — aconselhou, sentindo-se bem por dizer aquilo que seus pais nunca disseram.

Andreia era uma pessoa resiliente, afinal. Talvez houvesse adquirido isso de seu pai, ou durante seu crescimento.

Apesar de parecerem completos desconhecidos, eles tinham certa conexão. O laço formava-se aos poucos, sempre com brigas, mas repleto de amor.

E apesar de todos os problemas que parecia apenas sufocá-lo, Paulo sempre se reerguia e andava. No fim, Paulo colheu sorrisos e desejou que aquele fosse um novo tempo.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.