Fábulas do Cotidiano

O mágico de Oz


A menina caminhava pelo corredor de azulejos alvos, amparando uma das mãos na parede para se equilibrar. Sentia a brisa gelada através das brechas do avental e encolhia os ombros para cobrir as costas com o tecido. Dorothy costumava explorar o pequeno e restrito mundo asséptico a que estava fadada, cruzando as diversas portas enigmáticas e tentando desvendar os dizeres médicos nos escaninhos. O barulho repetitivo dos monitores poderia ser irritante para a maioria, mas a garotinha gostava da forma como a mesma melodia era reproduzida várias vezes e ao mesmo tempo sem qualquer sincronia ou regularidade. Dorothy nunca admirou a simetria. Havia uma certa formosura no caos.

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— O que foi, menina? — perguntou uma voz rouca e distante, despertando a jovem de seu efêmero transe. — Está perdida?

Dorothy seguiu em direção ao chamado, adentrando pela porta entreaberta com um certo receio. Sua mãe ensinara a não falar com estranhos, o que diria de entrar em seus quartos sozinha? Eram outros tempos, todavia, e sua mãe não estava lá para repreendê-la.

— Não, senhor — respondeu Dorothy, contemplando a variedade de máquinas no aposento do desconhecido. — Não estou perdida.

O homem ergueu uma sobrancelha, desconfiado.

— O que a mocinha faz perambulando pelo hospital a essa hora? — questionou, embora não parecesse se importar de verdade com a breve escapada da criança.

Dorothy não conseguia compreender perfeitamente as palavras abafadas — proferidas com tanto esforço pelo homem — devido à máscara de plástico em seu rosto. Além disso, estava distraída demais com a quantidade de aparelhos que se ligavam a ele. Observava os tubos com líquido translúcido atravessando a pele enrugada ou escorregando para dentro de seu nariz, as dezenas de fios conectados a seu peito por eletrodos e a pequena sanfona que se contraía e expandia dentro do cilindro transparente. Era tudo ao mesmo tempo curioso e assustador.

— Por que o senhor está aqui? — Ela quis saber. — O que são todas essas coisas?

O idoso acomodou melhor as costas ao travesseiro a fim de manter o contato visual.

— Meu coração já não funciona tão bem, minha jovem. Essas máquinas estão me mantendo vivo enquanto não encontram um coração novo para mim.

Dorothy entortou a cabeça para o lado, absorvendo com calma toda a informação.

— Quer dizer que sem essas máquinas... — Hesitou. Estava perplexa demais, encarando as várias caixas de metal que circundavam o leito, se perguntando como elas podiam significar tanto para alguém. — Sem essas máquinas o senhor vai morrer?

— Ah! Não esquente a cabeça com esse velho moribundo aqui, eu estou bem — garantiu o senhor, abrindo o que Dorothy acreditou ser um sorriso por trás da máscara de oxigênio. Em seguida, fez uma longa pausa para aspirar mais ar do que parecia caber em seus pulmões e prosseguiu: — Eu vivi uma vida longa... E muitos aqui estão piores do que eu.

Involuntariamente, o homem dirigiu um olhar de condolência ao leito vizinho, fazendo Dorothy finalmente notar sua existência. Nele, havia um rapaz bem mais jovem e debilitado que o homem do coração defeituoso. A garotinha se aproximou com os mesmos passos vacilantes que dera para adentrar o quarto e observou mais atentamente o paciente do leito vizinho. Parecia acordado e, ao mesmo tempo, ausente. Os olhos vazios contemplavam o nada e sequer se moviam quando Dorothy acenava à sua frente. Apesar de sua pouca idade, a pele era pálida e ressecada como a de um espantalho. O único sinal de vida eram os bips do monitor, que a menina já havia descoberto serem as batidas do coração.

— O que aconteceu com ele? — questionou a pequena, ainda balançando a mão erguida no ar a fim de chamar a atenção do rapaz. — Por que não pode me ver?

— Ele não pode vê-la ou ouvi-la, querida. É como se estivesse dormindo.

Dorothy levou as mãos à boca em espanto, tentando decifrar como aquele homem podia dormir sem fechar os olhos.

— E quando ele vai acordar?

O silêncio que recebeu como resposta foi mais do que suficiente para que Dorothy compreendesse.

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— Oh! Ele não vai...

— Você é uma menina muito esperta para a sua idade — o velho admitiu com certo ressentimento. — Não, ele não deve acordar. Seu cérebro já não funciona mais.

A garotinha encarava o peito do homem, que contraía e expandia como a sanfona no cilindro transparente. Percebeu — ou talvez tenha lhe sido dito uma vez — que as máquinas respiravam por ele, soprando de tempos em tempos o ar através do tubo que adentrava sua garganta.

— Então esse moço precisa de um cérebro e o senhor, de um coração... — constatou Dorothy, pensativa. — Onde se pode encontrá-los?

O velho deixou escapar uma gargalhada sonora seguida de uma descontrolada crise de tosse. Teve certa dificuldade para se recompor da falta de ar momentânea antes de conseguir explicar:

— As coisas não funcionam assim, jovenzinha. Já estão procurando um coração novo para mim e, quando o encontrarem, o Dr. Oz vai... hm... substituir o antigo por ele.

Dorothy ponderou, coçando o queixo num gesto que provavelmente assistira na TV.

— Quer dizer que esse Dr. Oz pode dar um coração novo às pessoas? — questionou boquiaberta e, após a confirmação de seu mais novo amigo, prosseguiu: — Ele é como... como um mágico?

Desprevenido, o velho estampou o que seria o sorriso mais autêntico e genuíno que dera em anos, se divertindo com a ingenuidade da pequena. Em seguida, bagunçou os fios do topo da cabeça de Dorothy e recitou as palavras que, em sua avaliação, necessitavam ser ditas:

— Sim, querida. Como um mágico.

Naquele instante, alguma ideia repentina preencheu a mente inquieta da garota que disparou pela porta do quarto como um foguete. Sequer pensara em se despedir do homem que acabara de conhecer e já conquistara a afeição, estava concentrada demais em seu objetivo, dedicada a encontrar uma única pessoa.

Correu em direção ao departamento oposto ao que se encontrava, onde conhecia cada corredor como a palma de sua mão. O ar foi se tornando mais escasso e, de vez em quando, os pés a desobedeciam. Dorothy precisou interromper os passos bruscamente ao perceber que tudo estava girando e seus pulmões queimavam a cada inspiração. Contudo, ela já estava quase em seu destino e se permitiu continuar o percurso num ritmo mais tranquilo.

A ala pediátrica tinha o piso revestido de azulejos coloridos e desenhos de personagens da TV espalhados pelas paredes, mas aos olhos de Dorothy era tão cinza quanto o restante do Hospital. Ela engoliu a saliva espessa que se acumulara na boca seca e fitou os dizeres “Isolamento respiratório” estampados na porta. Adentrou o aposento sem qualquer cautela ou sutileza e escalou o único leito ocupado.

— Já sei como nos ajudar! — esbravejou, sacudindo o garoto sob as cobertas — Acorda! Acorda! Eu tenho uma novidade!

Quando seu amigo desabrigou o rosto do travesseiro, Dorothy arregalou os olhos em surpresa. O cabelo cheio que costumava encobrir a testa e cair em ondas na altura do queixo não estava mais ali, apenas a careca lisa, quase brilhante de tão polida.

— O que você descobriu? — perguntou o menino, ainda esfregando os olhos de cansaço.

— Existe um mágico aqui no hospital — cochichou perto do ouvido do amigo, decidindo não comentar sobre sua mudança repentina de visual. — Ele pode nos ajudar!

— Verdade? Um mágico? — Os olho do menino brilharam de tal forma que lembrava a Dorothy os corredores enfeitados com luzinhas na semana do Natal. — Mas como ele pode nos ajudar?

— Não sei, talvez realize algum desejo nosso — pondera, ainda pensativa. — O que você pediria?

Seu amigo não precisou de sequer um segundo para responder:

— Eu não quero mais sentir medo.

A garotinha pensaria em pelo menos outros dez pedidos mais pertinentes a se fazer no lugar dele, porém julgou correto não contestar. Lembrava-se das vezes que vira o amigo chorar e gritar pela dor das espetadas de agulha ou se esconder para não tomar os remédios que o faziam se sentir mal. Ambos compartilhavam dos mesmos infortúnios de viver em um hospital, mas Dorothy sempre os suportara melhor. Seu colega não era um covarde, longe disso, somente quem vivencia uma situação tão debilitante pode compreender. No entanto, um pouquinho a mais de coragem não faria mal nenhum...

— Ei, você não devia estar aqui! — alguém repreendeu, sobressaltando os dois jovens ao mesmo tempo. Talvez o rebuliço causado por Dorothy ao chegar tenha atraído a atenção da equipe de enfermagem do lado de fora. — Estou procurando você por toda a parte!

A menina sabia que se referia a ela e que — é claro — se esconder não funcionaria mais.

— Elphaba está furiosa — dizia o rapaz enquanto a conduzia gentilmente de volta à sua ala —, você tinha uma sessão marcada para quatro horas atrás.

— Mas... Mas... Eu preciso encontrar o mágico! — pediu ela, tentando se desvencilhar do aperto em sua mão. Como resposta, recebia o mesmo olhar de compaixão que costumava lhe ser dirigido. — Por favor, me deixe encontrar o mágico!

Não se permitiu chorar enquanto a acomodavam em seu leito na ala oeste da pediatria. Sempre lhe diziam que “era para o seu bem”, mas parte de Dorothy acreditava que todos eram impreterivelmente indiferentes. Indiferentes ao seu bem-estar, indiferentes à sua dor. Ela mordia o lábio inferior para suprimir os gemidos enquanto a mulher de avental cirúrgico a perfurava novamente. Já estava acostumada ao sofrimento, ainda assim, o pescoço era um lugar que incomodava mais do que o habitual. Preferia ter a agulha comprida enfiada em seus braços ou na dobrinha entre a virília e a coxa.

— Droga! — exclamou Elphaba em direção ao companheiro de profissão. — Outro acesso trombosado.

Dorothy não entendia muito bem o que aquilo significava, apenas que era um mal sinal. Uma vez ouvira que cada acesso perdido lhe custaria dez anos de vida. Pelas contas dela, não restavam tantos então.

— Você sabe onde posso encontrar o mágico? — atreveu-se a perguntar e, ao perceber que era ignorada, continuou: — Eu queria conhecer o mágico...

— Fique paradinha, está bem? — impôs a mulher, perceptivelmente impaciente. — Nada de mexer o pescoço. Estou tentando pegar sua veia aqui.

Ela se manteve o mais imóvel possível, limitando até a frequência de sua respiração. Algumas teimosas gotas de lágrima traçavam caminhos em sua bochecha, deixando um gosto salgado quando alcançavam a boca. Dorothy, no entanto, não ousara se mover. Tinha medo daquela mulher horrível que, apesar da aparência agradável, lhe lembrava uma bruxa má.

A menina já havia perdido a conta de quantas vezes sentira a espetada aguda do metal no músculo remexido quando ouviu o tinido das pinças na bandeja. Atreveu-se a abrir os olhos e percebeu que havia um tubo transparente em seu pescoço.

— Pronto — Elphaba anunciou aliviada, retirando as luvas com certa urgência. — Já fiz minha parte aqui. Agora é com o pessoal da nefro.

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Dorothy sabia o que vinha a seguir, passava por isso desde que se entendia por gente. As espessas cicatrizes nos braços e hematomas pelo corpo a lembravam toda vez que tentava esquecer. Por sorte, com o cateter no pescoço, a menina não possuía ângulo para ver o próprio sangue ser drenado de suas suas veias para fora do corpo... E, não importava quantos anos se passassem, aquilo continuaria sempre sendo um pouco assustador.

Cada sessão de hemodiálise demorava horas, Dorothy nunca parou para contá-las de fato, mas conseguiu assistir Procurando Nemo até o final e os primeiros 40 minutos de Toy Story 2 desta vez. Os brinquedos haviam acabado de encontrar o Woody quando uma pediatra veio desligar a máquina e desconectar os cateteres.

— Esse tubinho aqui vai ficar um tempo em seu pescoço, está bem? — explicou a médica.

A menina concordou com um aceno, embora já tenha passado por isso um milhão de vezes. Eles sempre encontravam um lugar novo para deixar os tubos e, quando eles paravam de funcionar, os médicos precisavam encontrar um diferente. Braços, pernas, barriga, ombros... Todos inutilizados. Dorothy se perguntou onde colocariam o próximo quando aquele em seu pescoço se perdesse. Preferia não pensar.

Aliviada por usufruir do prazer de mover a cabeça novamente, a garotinha mergulhou no travesseiro macio. Estava abatida demais para procurar o mágico naquele momento: a hemodiálise a deixava exausta, sacudindo seu estômago como um liquidificador. Ela se deu a liberdade de terminar o filme e descansar um pouco antes de sair em sua busca. Não contava, entretanto, com a pequena surpresa da voz nos alto-falantes:

Chamando Dr. Oz na enfermaria quatro”

Todo o corpo da menina se eriçou em ansiedade. A enfermaria em questão ficava no mesmo andar, a dois corredores de onde estava. Perto... Perto demais. Indagava-se sobre quando teria outra oportunidade assim. “Mágicos não devem ser fáceis de encontrar”, pensou ela. Em seguida, levantou-se da cama com dificuldade, se apoiando nas barras da lateral para ficar de pé. Estava um pouco tonta e esperou as paredes pararem de girar antes de deixar discretamente o local.

Caminhou a passos largos — o mais próximo que conseguia de uma corrida — através do corredor comprido. Já cruzara a entrada da terceira enfermaria quando sentiu o gosto amargo de vômito em sua boca. A comida do hospital conseguia ser ainda pior depois de alguns minutos sob a ação do suco gástrico. No entanto, Dorothy resistiu e engoliu novamente o seu almoço, sentindo a queimação arder em suas narinas e descer aos poucos por sua garganta. Ela apoiou os dois braços no guichê mais próximo da equipe de enfermagem enquanto encarava seus pés descalços no chão. O suor que se formava no topo da testa escorria e salpicava o piso com gotas espessas.

— Está tudo bem com você? — perguntou uma enfermeira, afagando as costas da menina.

A garotinha ergueu a cabeça e separou os lábios para responder, mas, em vez de palavras, cuspiu o que sobrara do cozido de legumes de mais cedo. Ela conseguia distinguir os pedacinhos de cenoura no assoalho de azulejo enquanto vomitava o restante de sua refeição.

— Está melhor? — A enfermeira afastou o cabelo do rosto da garota, com o cuidado redobrado devido ao cateter em seu pescoço. — Precisamos voltar até o seu quarto, querida...

— Não! Nao! Por favor! — Dorothy implorou. Ela chegara tão perto, tão perto... Não poderia desistir agora. — Por favor, me leve até o mágico!

— Mágico? — questionou a moça, receosa. Estava preocupava demais com o estado da garotinha para se divertir com sua inocência.

— O Dr. Oz, você conhece?

A enfermeira concordou com a cabeça e apontou para o final do corredor. Dorothy contemplou, confusa, o homem franzino de óculos desajustados e cabelos desgrenhados. Aquele não parecia o mágico que ela imaginava: nada de cartolas, sobretudos, varinhas ou feitiços. Ele era apenas um rapaz, mais jovem do que seus pais e que a maioria dos médicos que conhecia. Usava um jaleco amarrotado por cima do pijama cirúrgico e equilibrava, atrapalhado, os papeis de prontuário e o copo térmico de café. Sequer aparentava ser alguém à parte da extensa parcela da mediocridade, ainda assim, era em quem Dorothy depositava todas as suas esperanças.

— Venha — encorajou a enfermeira, conduzindo a menina pelo braço —, vou levá-la até ele.

Seu passos foram vacilantes e o frio em sua barriga não tinha nada a ver com as náuseas da medicação. Dorothy finalmente realizaria seu desejo e o de todos os seus amigos, mal podia conter a agitação.

— Ei, doutor! — chamou a moça, com um aceno. — Essa garotinha aqui quer falar com você!

O jovem médico apoiou o copo e os prontuários numa bancada próxima e caminhou até as duas um pouco confuso. Limpou a espuma de café acima do lábio e endireitou o colarinho do jaleco.

— Tudo bem, mocinha? — saudou ele, esfregando os cabelos da própria nuca com uma das mãos. — Em que posso ajudar?

Dorothy não sabia muito bem por onde começar. Achou mais pertinente confirmar os boatos que ouvira primeiro.

— É verdade que... o senhor é um mágico?

O homem sorriu e trocou olhares com a enfermeira, curioso sobre onde aquilo chegaria.

— Depende do tipo de magia em que acredita — brincou, agachando-se para ficar da altura da menina. — Como se chama?

A garotinha aproximou os lábios do ouvido do homem e, como se estivesse prestes a contar o segredo mais precioso do mundo, sussurrou:

— Dorothy, senhor.

— Ah sim... Olá, Dorothy. É um prazer — saudou ele, estendendo a mão para um aperto amigável. — Agora me diga: por que está me procurando?

Ela ponderou durante um tempo antes de prosseguir. Sentia-se segura ao lado do mágico, por mais que tenha acabado de conhecê-lo. Contou-lhe suas aventuras no hospital e como conhecera o homem de lata de coração defeituoso e o espantalho que não possuía cérebro. Falou sobre o jovem leão que perdera a juba e desejava apenas ter coragem para enfrentar seus medos...

As coisas saíram um pouco do controle e, de repente, a menina se pegou narrando uma história mágica sobre cidades de esmeraldas, estradas de tijolos amarelos e bruxas más — de modo que fantasia e realidade estavam tão embaralhadas em sua mente que já não sabia mais em que acreditar. Poderia ser um efeito colateral dos analgésicos ou o fruto de uma mente pueril, mas era apenas Dorothy desejando viver em um mundo melhor do que o que lhe foi destinado.

— Certo. Você me falou o que seus amigos mais precisam — interrompeu o doutor, intrigado com a imaginação da pequena sonhadora. — Mas e quanto a você, Dorothy? O que deseja de mim?

A menina abriu o mesmo sorriso genuíno que roubara do senhor cardiopata na madrugada anterior. Deleitou-se brevemente com o pensamento e enfim revelou o seu pedido:

— Eu só quero voltar para casa!

Talvez fosse pelo cansaço — ou talvez pela sensação de dever cumprido — que Dorothy tenha renunciado logo após conquistar seu pequeno objetivo. Ela despencou sobre os joelhos, desmantelando a própria estrutura como os bloquinhos que costumava empilhar e, caída no chão gelado, cercada por todos aqueles que nunca demonstraram se importar, mantinha os lábios esticados no sorriso mais longo que dera em anos. No final das contas, ela voltaria para casa.

— O carrinho de parada! — gritava o médico, enquanto comprimia o peito da criança com as mãos unidas. — Alguém traga o desfibrilador!

As pessoas corriam de um lado para o outro, seja realizando alguma tarefa, berrando ordens umas às outras ou as acatando. Uma enfermeira conectou uma bolsa de soro no tubo em sua mão enquanto mais duas injetavam uma seringa de adrenalina no cateter em seu pescoço... Todos se mobilizavam com tanto afinco para trazer a garotinha de volta que, se Dorothy pudesse enxergar a cena toda de longe, talvez se desse conta de que eles não eram tão indiferentes quanto acreditava.

— Depressa! Coloquem-na na maca! — ordenou Oz, posicionando as pás do aparelho em dois pontos de seu tórax. Pediu para que todos se afastassem, mas a linha reta e contínua do monitor o impediu de prosseguir com o choque. Mais duas ou três tentativas e ele finalmente recitou um conjunto de sílabas incomuns que, é claro, fazia completo sentido para todos ali presentes: — Assistolia.

Por mais estranha que a palavra fosse, não se tratava de nenhum feitiço ou encantamento e, pela expressão no rosto de seus companheiros de trabalho, qualquer leigo era capaz de perceber que aquela era uma sentença. O médico, no entanto, continuava a pressionar o corpo flácido da menina contra a maca a fim de estimular seu coração. Repetiu uma, duas, dezenove, quarenta e cinco vezes... Até que seus braços estivessem cansados o suficiente para não parecerem mais lhe pertencer. As lágrimas escapavam por seus olhos e Oz sentia repúdio de si mesmo por se deixar levar daquela forma. Ele era um médico, não poderia agir assim! A impotência, entretanto, é uma das piores sensações a serem experimentadas e não há faculdade ou residência que ensine melhor do que a vida é capaz.

Todos já se entreolhavam hesitantes quando o jovem médico, por fim, julgou sensato interromper a reanimação. Ele relaxou os ombros em renúncia, retomou a postura de autoridade e conferiu o relógio de pulso para declarar as horas. Respirou fundo uma última vez e, por mais que fosse doloroso, aceitou humildemente a derrota. Não era um mágico, afinal.