A Raposa

Capítulo 10


Fox não olhou mais para mim desde aquela noite, onde me revelara um de seus dilemas. Na verdade, ela não direcionou seus olhos castanhos para grande parte dos marujos desde então, saindo de seu quarto apenas quando necessário. Até Mohra sentiu a diferença, murmurando incomodado de vez em quando para Garra.

Realmente, o que ela havia dito tinha me deixado desconsertado, afinal, sentir medo é algo natural. Infelizmente, ela estava certa, sua posição não permitia. Ela já não passava de uma menina, qualquer sinal, qualquer falha que demonstrasse que ela podia se quebrar, todos os anos onde havia construído sua imagem de indestrutível simplesmente ruiria.

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Passei a mão por meus braços, incomodado com o vento gelado completamente fora de época. Quando eu havia acordado logo cedo, o sol brilhava inutilmente, pois só beleza não poderia aquecer nossos corpos. Os contrastes estavam esquisitos, em pleno verão da costa de Hiah, com o Metal Curse adentrando o Mar Branco… Algo apenas parecia errado. Balancei a cabeça, espantando a sensação.

— Quem é o próximo? - Tubarão sibilou, levantando os braços em desafio. Não havia grande variedade de atividades para passarmos o tempo, uma das únicas coisas que fazíamos era lutar. Bem, não que eu gostasse de ir enfrenta-los por diversão, eu sabia que tinha uma desvantagem, portanto apenas observava na grande maioria das vezes.

— Vou calar sua boca, convencido - Garra levantou-se, sentado ao meu lado, me fazendo sair de meus pensamentos para olhar de relance enquanto a figura loira esticava as mãos, se preparando.

— Você pode tentar - desafiou, mostrando os dentes metálicos, e eu cruzei os braços, me encolhendo no chão.

Eu realmente não sabia quais eram os pensamentos que ficavam rondando minha mente, eles apenas vinham, começando pequenos e logo me conduzindo a uma trilha mais profunda, e de uma maneira ou de outra meus pais sempre apareciam, fazendo-me chacoalhar em busca de ajuda. Minha infância não havia sido o momento mais feliz da minha vida, e eu preferia manter as memórias longe.

Um grito de Jaguar chamou minha atenção, mas era apenas uma reação ao golpe de Garra em seu oponente. Eles se esquivavam e atacavam com tamanha rapidez que me impressionava, e aquilo levou-me a lembrar de quando Fox me questionara sobre o modo de lutar do loiro, e eu havia respondido agilidade, e realmente, não era mentira. Se eles já eram letais dessa maneira apenas com o intuito de passar o tempo, me dava calafrios imaginar como seria se realmente quisessem matar. Nossas pequenas invasões em navios mercadores não passavam de uma brincadeira.

Em dado momento, Tubarão desarmou seu oponente e chutou sua espada através do deque, deixando-me incomodado com o som áspero resultante, arrepiando os pelos da minha nuca. Garra deu de ombros, abrindo um sorriso de canto de boca:

— Posso te vencer sem uma espada - desafiou.

— Quero vê-lo tentar - Tubarão se divertiu, cerrando o olhar. Pegou sua espada e jogou-a longe, partindo com o punho e o braço metálico para cima do outro, com as garras já em posição.

Eles rodopiavam como em uma dança maligna, Garra indo de um lado para o outro com as mãos apontadas, desferindo golpes, enquanto Tubarão desviava, tentando intercepta-lo.

Meu olhar se perdeu depois de um tempo, onde eu fiquei encarando o horizonte. O dia tinha ficado nublado, os raios de sol lutando para aparecer por entre as nuvens daquele fim de tarde, mas sem sucesso. O vento úmido e gelado fez-me tremer dentro das vestes compridas, mas o que mais me intrigava era a neblina, que cobria vagarosa e suavemente o navio. Torci o nariz, procurando entender de onde tinha vindo aquilo. Será que havia ocorrido um erro na rota do Metal Curse?

O clima estranho me lembrou uma manhã na minha casa, ainda em Tiga, quando eu estava nos meus quatorze anos provavelmente. O clima sempre havia sido chuvoso para o Norte, mas nunca no verão, o que tornava aquele dia incomum. Eu estava caminhando de volta para casa, passando pela orla da floresta que rodeava minha vila, um lugar velho, que como dizia minha mãe, guardava história de toda a minha família, com as pequenas construções de pedra e ruas de terra. Eu morava seguindo a estrada, a casa com dois andares, uma das únicas da pequena cidade. Minha mãe atendia no único cômodo encontrado no andar superior, uma sala pequena, com a mesa de madeira redonda com o pano roxo enfeitando, o grande globo de cristal em cima para completar. Ela dizia que era uma maneira de se conectar com outros mundos, mas eu nunca dei importância.

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Foi quando eu abri a porta que eu pude ouvir os gritos, e meu instinto me dizia para sair de lá, mas era apenas rotina. Toda vez… Sempre que ela começava a gritar, o calafrio subindo pela minha espinha, eu já sabia. Contudo dessa vez, algo mais aconteceu. A porta do andar de cima abriu-se com um estrondo, e meu pai irrompeu escada abaixo.

— Você está louca! - ele gritou,a voz forte levantando-se pela primeira vez, saindo completamente da calma costumeira.

— Não faça isso! - minha mãe implorou, chorando, agarrando-se a porta escancarada - pretende acabar com tudo o que construímos?

— Não fui eu quem destruiu tudo - ele respondeu, nervoso, negando com a cabeça. Assim que ele virou o corredor e deu de cara com um Tomeh jovem de olhos arregalados, procurando respostas, seu semblante suavizou.

— O que está acontecendo? - eu sussurrei, assustado.

Ele abriu a boca, procurando uma explicação, mas a voz de minha mãe o fez olhar para trás, como se calculando o tempo que tinha antes de ela chegar:

— Você não se atreveria! - ela gritou, os passos altos na escada.

— Tom - ele disse, colocando a mão em meu ombro - você pode não entender agora, mas algum dia eu vou te explicar direito - falou, os olhos castanhos como os meus brilhando com a tristeza - o Destino vai te trazer de volta para mim.

E com isso, ele me deu um beijo na testa e correu porta afora, dando apenas um intervalo de dez segundos até minha mãe aparecer arrasada na minha frente.

— Quando eu cheguei ele já estava… - comecei, mas ela me ignorou, empurrando-me para o lado, correndo para a rua e olhando para todos os lados em desespero. Caiu então de joelhos, as lágrimas correndo pelo rosto, o cabelo uma bagunça e seu emocional mais ainda. Seu olhar… Eu nunca esqueceria aquele olhar.

— Qual seu problema? - Garra gritou, e eu tive de esfregar os olhos para garantir que estava bem. Eu tinha mergulhado de cabeça nessa memória, a que eu mais procurava esquecer, e senti o coração se despedaçando mais uma vez, o que sempre acontecia quando eu me lembrava daquele dia.

Prestei atenção no que tinha acontecido, e me deparei com os dentes metálicos de Tubarão cravados na prótese de Garra, o que me fez estreitar os olhos, mas era aquilo mesmo. Ele abriu a boca e deu de ombros, e a luta deu-se como empatada.

Logo em seguida, Cabeça chamou-nos para comer. Bat ajudou-me a levantar, e eu estava tão absorto no passado que senti que poderia cair.

Não demorou muito e Fox desceu as escadas de seu quarto, vindo até nós. Ela sorriu vagamente, sentando-se na cadeira acetinada no lado oposto a minha, dando-me a visão de frente perfeita. A ruiva balançou a mão suavemente, como que nos dando permissão para comer, mas nem ela e nem eu encostamos na comida, olhando para os pratos vazios, perdidos em algum outro lugar.

— Você está esquisito hoje - Tobias falou, um pouco de comida caindo de sua boca cheia.

— Eu ando pensando demais - murmurei, com o instinto de entrega-lo o guardanapo que não havia naquela mesa.

— Algum dia sua mente vai ser sua maior inimiga - Batata completou, dando um gole em sua taça logo em seguida.

Tive o ímpeto de responde-lo que ela já era o motivo dos meus pesadelos, mas preferi calar-me.

O tempo passou devagar, as conversas ecoavam como que em outra realidade, e eu me encolhia do frio na cadeira, enjoado demais para beber ou comer qualquer coisa. Quando as gotas começaram a molhar meu braço, eu não me incomodei, aquele suave chuvisco condizia ao dia estranho.

— Saiam da minha mesa - bradou Cabeça irritadamente, pretendendo guardar tudo devido à chuva que tinha começado.

E naquele momento um trovão ecoou.

Meus olhos voaram imediatamente para a capitã, que já estava se levantando, mas com o susto caiu de joelhos no chão, cobrindo os ouvidos. Ninguém reagiu, até que o próximo trovão ecoou, e eu já pude vê-la chorando em minha mente. “Eu não posso sentir medo, ou eles vão perceber que sou apenas uma pessoa” foi o que ela havia dito. Demonstrar fraqueza na frente deles a mataria. Andei rapidamente até ela, mas Ello chegou antes de mim. Ajoelhou-se perto dela, fazendo-me travar onde eu estava, a dois metros de distância.

— Precisa de ajuda, Fox? - ele perguntou, mas ela logo empurrou-o, brava, passando a palma da mão sobre os olhos, apenas garantindo que ainda estavam secos. A água começou a vir com maior intensidade, e vê-la sofrendo no chão era como tortura.

Ello não deu-se por vencido, até um pouco irritado pelo fracasso, e dessa vez segurou seu braço.

— Venha capitã, eu só quero ajudar.

Sua intenção poderia até ser boa, mas não estava surtindo efeito nenhum.

— Pode ajudar deixando-me sozinha - ela sibilou, encarando seus olhos com firmeza, o que o fez larga-la, decepcionado.

Eu me aproximei devagar, como se pedindo permissão, e a ruiva trocou olhares comigo. Ela assentiu suavemente com a cabeça, e eu estendi a mão para ajuda-la a levantar. Todos ficaram em silêncio quando ela pegou-a, apoiando-se em mim silenciosamente. Com o próximo estrondo ela perdeu o equilíbrio, apertou forte meu braço, mas não perdeu a compostura.

— Você está indo bem - eu sussurrei, enquanto caminhávamos vagarosamente até seu quarto, e eu pude sentir o peso do olhar de todos eles sobre mim, mas sinceramente, eu não me importei.

Bem, pelo menos até o trovão que se seguiu, o raio iluminando sombriamente o convés. Fox parou, arregalou os olhos e apertou tanto meu braço que eu senti que poderia arranca-lo.

— Tudo bem, foi só um…

Ela negou com a cabeça, murmurando coisas que não pude compreender, interrompendo-me. Mais um trovão, e eu estranhei que veio tão seguido do último. Com este, ela desembainhou sua faca e virou rapidamente para os marujos, que nos encaravam estranhamente.

— O que foi? - eu perguntei, confuso. Ela me ignorou, esperando pelo próximo som em silêncio, e quando ele veio, sua reação foi cerrar os olhos em desgosto, mas logo olhar para todos ali presentes.

— Quem ousa chamar meu nome? - bradou.

— Fox, ninguém te chamou - eu respondi, virando a cabeça.

— Calado, Tomeh - ela sibilou. O próximo trovão já nem a surpreendeu, apenas a fez perguntar novamente - eu perguntei quem me chamou! - berrou, olhando todos nervosamente. A faca apontada, ela desceu os dois degraus em que nos encontrávamos e correu para o meio dos Sailors - eu quero saber quem gritou por mim! Apareça e me enfrente, se tiver coragem!

Encarei tudo aquilo assustado. Ninguém havia gritado por Fox.

Foi quando o trovão seguinte ecoou que eu ouvi. O som, como um sussurro, seguiu pela minha espinha e nuca, como se percorrendo meu corpo, e de maneira nenhuma eu havia sentido algo tão ruim antes. Nenhum corte de espada, nenhum osso quebrado, nada podia se equiparar a agonia daquelas sílabas pronunciadas. Parecia vidro se quebrando, ou foi apenas uma impressão, quando tudo mais se silenciou, e ao invés daquele trovão, a única coisa que eu tinha ouvido era um nome. Belena.

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— Eu ouvi - respondi, sussurrando, perplexo.

Fox ignorou completamente, gritando, olhando para os céus, esperando o próximo, e quando ele veio, berrou mais uma vez:

— Eu quero saber quem… - mas Mohra a interrompeu, os olhos arregalados, apontando para a escada onde eu estava. Ela se virou mais rápido do que eu pude raciocinar, e aquela reação… Ela me quebrou.

As pernas baquearam, e a ruiva procurou por um apoio que não tinha. Sombra correu para da-la uma mão, que ela recusou. Um raio cortou os céus, iluminando sua face horrorizada. Ela não reagiu, mexendo-se apenas para cobrir a boca com o intuito de impedir que o queixo alcançasse o chão, tamanho o choque.

Virei-me então, e pude sentir minha alma deixando meu corpo. Todo o ar que tinha em meus pulmões simplesmente evaporou, e eu encarei horrorizado, a criatura que se encontrava no topo dos degraus, encarando todos nós.

Era um menino. Não devia passar de seus 10 anos, baixo, magro, com as roupas esfarrapadas. Se o fato de ter um garoto no nosso navio já erra estranho, o que tornava tudo muito mais bizarro e assustador, era que ele não estava realmente ali. Era um espírito.

A presença fantasmagórica imediatamente tornou tudo muito mais gelado. Quando ele abriu um sorriso suave, todo o calor esvaiu, como se nunca houvesse existido sol. A chuva não interferia em sua forma, e eu podia jurar que seu cabelo estava até se molhando com as gotas d’água que caiam fortemente do céu. Eu baqueei, andando rapidamente para trás, sem controle de meu próprio corpo, e acabei escorregando.

— Proi? - Fox gritou, tremendo.

Proi? Ela conhecia o garoto?

— Fox, não pode ser… - Mohra tentou, colocando a mão em seu ombro, que ela ignorou.

— Proi! - gritou novamente, se aproximando. Tentei me erguer, mas tudo o que estava acontecendo parecia demais para eu me recompor.

O vulto permaneceu em silêncio, um sorriso suave brincando em seus lábios, a cabeça levemente deitada. O silêncio naquele navio nunca foi tão ensurdecedor, e até a água da tempestade que ricocheteava o deque furiosamente parecia vir de outra realidade. A nossa realidade era Fox, o espírito e os marujos horrorizados.

Ela alcançou o primeiro degrau, subindo cautelosamente. Seus olhos podiam estar derramando lágrimas de pânico, mas ninguém saberia dizer. A capitã deu mais um passo, esticando a mão levemente, o dedo indicador levantado.

— Cuidado - eu disse, alto o suficiente para tentar tira-la do transe, mas ela simplesmente não ouviu. Ou não quis ouvir. Bem ali, na minha frente, uma chave para o passado de Fox. Eu já havia descoberto que seu nome era Belena, e não me era estranho.

— Proi - ela disse, mas a voz tão baixa que provavelmente o único a escutar tinha sido eu - sou eu, Proi, a Bel.

Ela ficou cara a cara com ele, e sua voz simplesmente morreu. Pela maneira que seus ombros tremiam, eu pude comprovar que sua barreira tinha sim se partido, e que ela se permitiu chorar na frente de todos. Soluços eram a única coisa que vinham dela, e eu me perguntava quem diabos era Proi.

Então ele abriu os braços, como se para envolve-la em um abraço. Mas o intuito não era aquele.

Uma chama verde começou a queimar na ponta de seus dedos, espalhando-se instantaneamente até seus ombros. Ele deu um grito, alto, agudo, e era a sensação de uma pedra que atravessava uma grande janela de vidro, ou como uma faca cortando meus membros. Fox caiu com o susto, escorregando pelos degraus e batendo a cabeça no chão. Eu me arrastei para puxa-la mais para perto, envolvendo-a em meus braços enquanto seus soluços eram a única coisa que eu me preocupei.

Jaguar gritou um palavrão atrás de mim, e os gritos de desespero dos homens chamaram minha atenção. Todos corriam para pegar armas, e eu me perguntei como eles matariam um espírito com a lâmina de uma espada.

Foi então que eu olhei para Proi. De sua boca aberta, fumaça negra se espalhava pelo convés, tomando a forma de diversas criaturas monstruosas, negras, que guinchavam em agonia. Quando uma delas acertou Magma e ele foi jogado para o outro lado do navio, eu vi que de espírito elas nada tinham. A ruiva em meu colo apertou a faca em sua mão, e fez um movimento para levantar-se todavia eu a segurei.

— Fox, você não pode lutar - eu respondi, enquanto lágrimas corriam de seus olhos e ela tremia de maneira insana.

— Eu tenho que lutar, Tomeh! Me solte! - ela gritou, mas seus olhos pediam outra coisa.

Arrastei-a até o corredor de seu quarto, apesar de estar se debatendo em meus braços. Abri a porta rapidamente e a empurrei para dentro, e ela foi incapaz de fazer qualquer outra coisa senão correr escada acima, sem forças.

Voltei para o campo de batalha e observei minha situação. Meus olhos encararam com tristeza, e até certa urgência, um conflito entre meu passado e aquele momento.

Aquela foi a nossa primeira luta contra demônios.