A escolha

O rio


Brady ligou para Sam convidando-o para passar o final de semana flutuando de caiaque no Rio Kaw. Sam não ficou nem um pouco tentado. Ele poderia pesar numa balança: andar de caiaque com Brady versus ficar no silêncio e escuridão do seu quarto, iluminado apenas pela luz do tablet, enquanto interagia com bots e outras inteligências artificiais na internet. Ele preferia ficar fora do planeta terra durante dois dias seguidos, alimentado a pão e água, quero dizer, Salada César e água flavorizada, em vez de queimar ao sol do fim do verão, conversando com uma pessoa de carne e osso, e ficando inteiramente encharcado com água de rio. Pensando bem, talvez não fosse tão ruim assim. Foi com certa relutância e irritação que Sam aceitou o convite, já se arrependendo disso no momento em que desligou o celular.

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Foram de carro até a parte mais ocidental do rio, para descer de caiaque. Apesar da temperatura quente, usaram camiseta, calções, bonés e óculos de sol, não dispensando o salva-vidas. Durante sua viagem até lá, jogaram conversa fora e botaram as fofocas em dia. Não é que Sam morresse de curiosidade sobre a vida de seus familiares. Ele poderia passar sem isso tranquilamente, mas Brady tinha um modo de envolvê-lo em todo aquele melodrama, que era a estória de seus familiares, que Sam acabava rindo da desgraça alheia, sem se importar em parecer educado e sensível. Brady ria também, e nesses momentos ele olhava para Sam com tanto calor e intensidade que Sam sentia o rosto aquecer sob aquele olhar, e ele chegava a se perguntar se Brady não era pior do que a porra-louca da irmã dele.

No fim do dia resolveram ir para a margem do rio e andaram até um posto de turismo, onde conseguiram transporte até seu carro. Pararam em um albergue onde havia muitos turistas ao redor de fogueiras, admirando o cair da tarde e o anoitecer. Trocaram suas roupas por outras mais leves e resolveram se juntar àquele pessoal. Deram-lhes gravetos com marshmellows e Sam resolveu deixar o seu virar carvão por pura birra. Ele chegou mesmo a se sentir como Tuesday Adams. Isso não passou despercebido de Brady que ria com o canto da boca, e em dado momento trouxe cervejas para Sam. Este até pensou em recusar, mas ... quem liga se ele era de menor e não deveria estar ali, tomando bebida alcoólica? Ninguém. Isso o encheu de tristeza e ele nem sabia porquê. Quando deu por si, tinha tomado três garrafinhas e havia uma quarta em sua mão.

Brady o chamou para irem dormir, mas Sam não conseguiu se levantar do tronco caído no chão, onde se sentara. Brady riu dele e lhe deu a mão para ajudá-lo. Isso foi pior, pois assim que ficou de pé, Sam percebeu que era incapaz de ficar ereto sem sentir a força gravitacional da terra tentando puxá-lo para seu core. Brady ria ainda mais. Ele teve que literalmente ser arrastado pelos sovacos, e seu pescoço era incapaz de sustentar sua cabeça, como também seus enormes pés não conseguiam dignidade e força de vontade suficiente para plantarem-se firmes e fortes no chão, sendo ao invés, arrastados malemolentes como uma marionete. Brady depositou-o em sua cama com algum trabalho e limitou-se a retirar suas botas, e cobri-lo com uma manta. então ele fez algo inesperado no que tinha de gratuíto e sem sentido: deu um beijo de língua cheio de saliva em Sam. Então foi para sua cama e dormiu.

Pela manhã não falaram sobre isso e Sam chegou a imaginar que teria sonhado tudo aquilo, o que não seria de todo impossível. Tomaram café da manhã e Brady insistiu em que deveriam tentar pescar algum peixe, como troféu de sua aventura no rio. Hã? Sam havia baixado Left for the dead em seu PC, e não havia ganho nenhum troféu por isso, e na opinião dele isso era bem mais significativo. Alugaram material de pescaria e foram para a margem do rio Kaw novamente. Enquanto esperavam refestelados em cadeiras de camping que um peixe mordesse a isca, voltaram a falar sobre a família.

"Tem lembranças de sua mãe, Sam?"

Então o alvo da fofoca agora era Sam. Ele não se importou. Na verdade ficou até curioso em saber o que o resto da família falava sobre ele. "Não, não mesmo. Eu era muito pequeno quando ela nos abandonou."

"Deveria lembrar-se, afinal você já tinha quatro anos. Você nunca se indagou do porque que sua mãe não processou seu pai em um divórcio milionário, uma vez que seu pai tem muitos bens e posses?"

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"Não. Deveria?"

"Seu pai contou à família e à polícia que sua mãe fugiu na calada da noite, deixando apenas um bilhete de despedida, no melhor estilo do teatro de Ibsen. Pois bem, se sua mãe realmente estivesse atrás de seus sonhos perdidos, e desejos de auto-afirmação, então por que nunca mais ouvimos falar dela?"

"O que você quer dizer com tudo isso, Brady?"

Brady olhou-o com a face impassível e apenas arregalou os olhos e respondeu "Nada."

"Pelo que sei minha mãe pode estar casada e com outros filhos, não se importando com o dinheiro de meu pai ou comigo." Sam falou num fio de voz.

"Ou talvez ela esteja morta." Brady falou sem olhar para Sam.

Sam olhou para o outro jovem com desconforto e tristeza crescentes. Talvez se ele não falasse mais nada e se ele não olhasse mais para o primo ... talvez tudo aquilo fosse embora, carregado pelo vento, indo na correnteza do rio, para bem longe dele, deixando-o sozinho, imerso em redes sociais, no silêncio e vazio de seu quarto, com seu pai trabalhando arduamente para não lhe faltar nada, enquanto sua mãe estava em outra cidade, talvez em outro país, com um novo marido e outros filhos que eram infinitamente mais felizes do que Sam, mas ela estava viva e feliz, então estava tudo bem. Ou talvez não.

Uma águia gritou ao longe, fazendo com que os jovens se assustassem. Sam levantou-se e ficou acompanhando com o olhar o vôo da águia que se dirigia à imensidão da vegetação rasteira ao longo do rio.

"Minha família acha que seu pai mandou matar sua mãe. Ninguém acreditou na armação dele, e acredita que ele tenha comprado a polícia também. Sua mãe nunca teria lhe abandonado, Sam. você era novinho demais. Nenhuma mãe abandona os filhos pequenos em busca de potes de ouro no fim do arco-iris. Isso é besteira." Brady o encarava, também de pé, todos os dois esquecidos da pescaria.

Sam sentiu o peito fechando e o ar ficando escasso. Ele colocou as mãos no peito e tentava respirar com a boca aberta, enquanto a agonia o martirizava. Começou a chorar e a convulsionar. Brady o abraçou e passou a lhe dizer palavras de consolo para acalmá-lo. Como nada adiantasse, resolveu levá-lo ao albergue e pedir ajuda médica. Uma ambulância veio buscar Sam, mas após um exame sumário, constataram que fora uma crise de pânico, mas que agora ele estava melhor. O pai de Sam foi avisado, e antes que qualquer um dos rapazes pudesse fazer alguma coisa, o Sr.March chegou ao local e levou seu filho para casa, dispensando a ajuda de Brady.