Entropia

LXI - O Navio Voador


LXI

O Navio Voador

Annik ficou extremamente mal após ouvir o veredito do Mestre Alexander. Ela, no primeiro momento, chegou a vomitar no chão após ouvir aquilo. Alguns breves tempos depois, ela se isolou na varanda na cabana do velho e não conversou com a Menina, mesmo esta constantemente tentando iniciar uma conversa com ela.

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Annik queria ser deixada a sós consigo própria, com sua mente, e a Menina, apesar de querer conversar com ela, tinha que aceitar aquilo. Annik era uma parte de si — sempre tinha sido, na verdade — e se ela não estivesse bem, Alice também não estava. Alice que, agora, era Annik.

Era estranho pensar que ela era Annik e vice-versa. Eram a mesma pessoa, mas às vezes pareciam tão diferentes...! Alice tinha um ânimo um pouco mais elevado do que o de Annik e era mais afetuosa. Já Annik parecia estar constantemente para baixo e não demonstrava seus sentimentos a não ser que eles estivessem a sufocando muito, como nos dias em que conversaram no acampamento dos Nômades.

Passou a mão no pingente do colar que Annik lhe dera, sentindo suas inscrições. Nunca havia lhe perguntado o que significavam e não poderia lhe perguntar tão cedo por causa daquilo. Por que Annik tinha ficado tão abalada com aquela revelação de que, no fundo, eram a mesma pessoa? Para a Menina, não havia motivo para ela ter ficado daquele jeito.

Mas, pensando bem, realmente era muito esquisito. Eram a mesma pessoa, separadas por mundos, universos diferentes. Mas o que mais as separava? Será que pensavam diferentemente ou as discrepâncias paravam ali? Será que tinham personalidades diferentes, como a Menina imaginava, ou tudo aquilo tinha sido uma ilusão de sua mente para fazê-la pensar que sim, que eram pessoas diferentes? Por muitas vezes, Alice via suas atitudes e seu modo de pensar refletidos em Annik, mas não se via por completo neles. Talvez o seu modo de enxergar as coisas tivesse sido parcial demais, afinal, como alguém iria querer se ver refletido em Annik, a escória do Mundo? Mesmo a Menina, em seu subconsciente, quisesse evitar comparações excessivas com ela para não se enxergar como um monstro.

Poderia ir até à varanda onde Annik estava; o velho provavelmente não iria reclamar, mas Annik ficaria chateada, e Alice não queria deixá-la ainda pior do que já estava. Mesmo assim, sua vontade de querer cuidar dela era maior que deixá-la a sós, com pensamentos que eram como uma roleta russa.

Seguiu os conselhos de sua própria mente e caminhou discretamente para a varanda. Sabia que Alexander não iria se importar, mas gostaria que ele também não a visse para evitar sermões.

Caminhou praticamente na ponta dos pés, tentando fazer a porta ranger o mínimo possível. Ela observava o deserto apoiada numa amurada de madeira toscamente construída e que parecia se fundir com os galhos da enorme árvore que servia como pilar para a cabana. Lembrou-se de quando estavam na casa de Isaac, e ela se sentara no chão, olhando pela janela, também observando a paisagem árida e desolada. Porém, ali não havia janelas. Ver toda aquela imensidão de areia por uma janela era como olhar para a tela de um computador: não parece real enquanto você não estiver lá para sentir a atmosfera do lugar, sentir o vento frio da noite, as areias que eram levadas pelo sarlik fazendo cócegas no rosto, o cheiro de “deserto”... Tudo isso só poderia ser sentido em contato com o ambiente, o Deserto. E realmente, não havia como sentir o Deserto sem estar nele. Toda a atmosfera que havia ali era indescritível com palavras normais. Talvez o kra’vstan ajudasse, já que era uma língua sem fim. Aproximou-se dela calmamente e se sentou ao seu lado, olhando-a bem nos olhos. Seus olhos estavam vermelhos e inchados. Parecia que ela havia chorado muito nos momentos em que se isolara.

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— Você tá bem? — a Menina perguntou, acariciando os cabelos de Annik lentamente. Ela não se afastou nem recusou o afeto. Aquilo era um bom sinal, um sinal de que ela estava disposta a dialogar.

— N-não... — Ela estava muito letárgica, parecia até mesmo um paciente dopado após uma crise. Suas feições estavam pálidas, os olhos fundos e a face úmida de lágrimas que começavam a se secar, formando uma crosta de tristeza sobre seu rosto. Ela enxugou uma lágrima e enfiou o rosto no meio de suas mãos, como sempre costumava fazer. Aquilo acontecia com cada vez mais frequência, e a Menina agora tinha certeza de que havia algo errado com Annik.

— O que tá acontecendo com você? Você tem ficado assim o tempo todo!

— Assim como?

— Meio... pra baixo, sabe? Tipo, por que você ficou tão mal quando o Alexander falou que eu e você...

— Por favor, não termine a frase. Não quero ouvir isso de novo. Me recuso a acreditar que isso seja verdade.

— Por quê?

— Você e eu... não podemos ser a mesma pessoa. Você não merece ser comparada a alguém como eu. Você não merece ser eu.

— Que besteira, Annik. Eu prefiro ser você do que ser qualquer outra pessoa que já conheci aqui. Quer dizer, eu... eu sinto que tenho uma espécie de laço com você.

— Você não ouviu o que o Mestre Alexander disse? — ela parecia um pouco irritada. — Isso é o resultado de sermos a mesma pessoa!

— Ele não disse isso. Você tava completamente alterada quando ele falou aquelas coisas, nem mesmo prestou atenção no que ele disse!

— Eu duvido que você gostaria de mim se não fosse por isso.

— Aquele cara, Adam, gostava de você.

Annik ficou em silêncio.

— Talvez... Talvez você esteja certa... — ela balbuciou. — B-bom, seu raciocínio faz sentido...

— Eu sei que faz. — A Menina abraçou Annik. Sentiu-se inflamada, em chamas, por dentro, e algo parecia se remexer dentro dela tal como uma massa de bolo ao ir numa batedeira. Ficaram daquela forma por muitos tempos, até a Menina perceber que já estava cansada de ficar naquele lugar por tanto tempo. Annik a puxou para mais perto, aninhando-se nela. A Menina, a princípio, não mais sentiu o coração dela batendo. Depois percebeu que ele batia muito rápido e muito forte dentro de si. — J-já tá na hora da gente ir, não? — avisou após alguns tempos.

— Ahm... V-você tem razão. Mas antes de irmos, eu... eu preciso falar algo. Eu não posso continuar omitindo isso de você. Mais cedo ou mais tarde, você vai ter de saber.

— Ai, você tá me deixando preocupada, fala logo o que é!

— Você não pode ir ao Fim comigo, Alice.

— O quê?! M-mas você prometeu...!

— Eu não posso cumprir essa promessa. Me desculpe. Eu... Eu queria cumprir a promessa, eu queria que você ficasse aqui, é o que eu mais quero, mas... Mas eu tenho de deixar você.

Houve um silêncio pesado. O ar pareceu sumir, o local pareceu ficar mais abafado, o tempo pareceu se congelar. Durante aqueles breves longos tempos, a Menina conseguiu absorver o porquê por trás daquelas palavras. Aquela ideia deixou a Menina tão consternada que até mesmo parou de sentir raiva de Annik.

— Você tá com medo — Alice disse aquilo sem olhar para seu rosto. Após um breve silêncio, a Menina levantou seu olhar para Annik e prosseguiu: — Não é isso?

— É. É exatamente isso... — Ela suspirou e fitou Alice com um olhar tristonho, digno de pena. E se havia uma coisa que conseguia deixar Alice profundamente abalada e impossibilitada era sentir pena de Annik. Mas daquela vez, não havia nada que poderia fazer. Nunca fizera nada, na verdade, mas daquela vez, não havia alternativa, não havia respostas pelas quais procurar.

— Eu... eu sinto muito, Annik... — era a única coisa que era capaz de dizer naquele momento. Em todos os outros momentos em que se sentira mal por Annik, não fora capaz de falar nada, não tivera a coragem suficiente. Naquele momento, tinha a coragem, mas não havia o que dizer.

— Tudo bem. Além disso, eu já estou pronta.

— Pronta pra quê?

— Para o que vier depois. Agora vamos. Sinto que estamos muito, muito perto do Fim.

As duas saíram da varanda e voltaram à entrada da cabana de Alexander. O velho continuava a adicionar ingredientes na sua poção verde fluorescente. Naquele momento, a poção parecia ainda mais brilhante para a Menina. O Mestre pareceu não percebê-las a princípio, mas levantou a cabeça, parecendo ouvir algo — provavelmente o ranger da porta se abrindo ou os passos delas fazendo toc, toc no piso de madeira. Virou-se para trás e as viu. Ele abriu um sorriso desdentado e disse:

— Já estão de saída?

— Sim — Annik respondeu pelas duas. — Temos que continuar nossa viagem.

— Neste caso, senhoras, mraivenir. Boa sorte em sua jornada. — O velho deu um sorriso largo, e as duas saíram de sua cabana para prosseguirem ao Fim.

A viagem seguiu-se silenciosa. À medida que caminhavam, mais o céu noturno do Deserto se iluminava com estrelas, cometas e planetas ao longe. Cada estrela parecia ser um microfuro no tecido do céu, e aquilo dava a impressão de que, a qualquer momento, o céu como conheciam iria se rasgar, dando espaço a uma claridade ainda maior que a da manhã.

A cada passo, mais pesado era para ambas suportar a longa jornada. Cada passo em direção ao fim da jornada de ambas. Annik novamente voltaria ao seu solitário deserto, e a Menina voltaria a ser a Annik de outro universo. Nenhuma queria dar passos à frente; a vontade delas era de parar no meio do caminho, dar meia-volta e voltar para onde começaram. Voltar para aquela manhã sem fim no deserto, Saar, em que as areias estavam agitadas. Muitos tempos atrás, a história se iniciava, e agora, ela chegava perto de sua conclusão. “Tudo tem um fim”, dissera Annik havia muitos tempos, e agora ele se aproximava a passos largos. A Menina só gostaria de ter tido tempo suficiente para fazer com que aquelas palavras penetrassem em sua mente para finalmente absorver seu significado. Talvez aquilo tornasse a situação suportável.

Mas não havia mais tempo. Haviam chegado ao navio voador, o ponto final de Alice.

— É verdadeiro...! — Annik não conteve a exclamação ao ver aquilo. A Menina aproximou-se dela para ver melhor aquilo.

— É incrível! — respondeu ela.

Um enorme navio de madeira pairava a alguns palmos da areia do deserto, flutuando nos céus azuis da noite iluminada. Uma âncora fora jogada no chão, sendo submersa pelo Mar de Areia. Suas velas eram enormes, brancas, e havia mastros tão grossos quanto troncos de árvores espalhados por toda a embarcação. Havia vários homens lá dentro, muitos vestidos de bandanas, botas, roupas sujas e chapéus de três pontas, feito marinheiros de um navio pirata. Caminhavam de um lado para outro, carregando balas de canhão, barris, caixas e cordas.

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— Annik... — A Menina começou. Mal dissera aquilo e já tinha lágrimas transbordando em seus olhos.

Annik olhou profundamente em seus olhos. Sua face aparentemente não demonstrava expressão alguma, mas conseguiu perceber muito atentamente que também havia lágrimas teimando em escorrer pelas suas bochechas. Ela não conseguiu segurá-las por muito tempo, e algumas escorreram. No entanto, suas feições se mantinham impassíveis. Parecia até mesmo natural, mas Alice imaginava que ela estivesse se forçando ao máximo para manter o rosto limpo de emoções daquela forma.

— É o fim, não é? — Alice perguntou.

— Não — Annik sussurrou, balançando a cabeça rapidamente. — Não é o fim.

— Você tinha dito que tudo tinha um fim. Não mente pra mim, Annik.

— Eu menti, mas não agora. Menti quando disse aquilo para você. Tudo tem um fim, Alice, mas tudo também tem um recomeço. Nossa história pode acabar aqui, mas talvez tenha um recomeço em outro lugar.

Annik abraçou Alice. Pôde ouvi-la choramingando em seu ouvido.

— Annik, não... Não chora... — Alice disse, mas aquilo pareceu deixá-la pior. Ouvia-a soluçar, fungar e tremer. Aquilo fez a Menina chorar também. Depois, ela se acalmou, mas ainda ficou abraçada com a Menina. Ela se movia lentamente, fazendo parecer com que estavam dançando a uma música calma. Sentia a respiração dela agitada, muito rápida, e assim também estavam seus batimentos cardíacos. Depois, ela se afastou, com seu rosto impassível, mas pegajoso por causa das lágrimas secas.

— Alice... — ela disse, segurando o rosto da Menina com as duas mãos. — Se o que o Príncipe Alexander disse for verdade, se nós formos realmente a mesma pessoa, você não precisa se sentir triste em partir. Eu e você somos Annik. Então, vou estar com você. — E ela sorriu em meio a mais lágrimas que caíam sobre sua face. Alice a abraçou, encharcando as roupas de Annik de lágrimas também. — Antes de ir, fique com isto. — Annik tirou os outros colares que usava e os entregou para a Menina. — Se lhe pedirem algo em troca, entregue isso.

A Menina analisou os pingentes. Havia vários, dos mais variados tipos. Havia outros pingente como aquele que ganhara de Annik no acampamento dos Nômades, todos com inscrições as quais não conseguia entender, e havia mais um pingente no formato de uma palheta de guitarra. Alice fechou a mão com força e depois os guardou dentro de seu sobretudo.

— Ah, e também fique com meu bastão de baseball — Annik lembrou-se e entregou o objeto nas mãos da Menina. — Não vou mais precisar dele.

— M-mas e se alguma coisa acontecer com você?

— Não se preocupe. — Annik afastou seu sobretudo, deixando à mostra uma coronha de revólver. A Menina soltou um “ah...” de compreensão.

— Então, é isso... — voltou a dizer Alice. Ela abraçou Annik mais uma vez, antes de se despedir totalmente. — Adeus, Annik... — A Menina se afastou de Annik dando alguns passos para trás. — Espero poder te ver de novo algum dia.

Tel, Annik. E você não vai precisar me ver de novo. Lembre-se de que eu estarei com você. — Annik levantou a mão e acenou devagar. A Menina estranhou o fato de ela usar o próprio nome, mas não fazia diferença. Annik era Alice e vice-versa. Seus nomes não importavam, apenas suas essências. Annik olhou de soslaio para o navio e depois para a Menina e avisou: — É melhor você ir logo. Eles já estão puxando a âncora para partir.

Alice assentiu e foi se afastando pouco a pouco de ré, ainda sem coragem de dar as costas para Annik, com medo de olhá-la uma última vez para nunca mais poder vê-la. Numa súbita golfada de coragem, a Menina virou-se e correu em direção ao navio flutuante. Apenas quando o alcançou, olhou para trás, e viu que Annik não mais a observava. Ela caminhava, ainda seguindo a Rodovia, para longe dali, para o Fim do Mundo.

Quando Alice viu que ela se distanciava sem olhar para trás, uma lágrima escapou de seus olhos, e ela se arrependeu de ter-lhe dado às costas. Deveria tê-la convencido a ir embora com ela ou de poder ficar com ela. Ela se arrependeu ainda mais de não ter dito tudo o que queria dizer, de não ter aproveitado todo o tempo que ficara com ela. Se tivesse uma chance de voltar atrás, era naquele momento. Mas aqueles milimomentos, por mais insignificantes que parecessem, eram fugazes e valiosos. A cada milimomento daqueles, Annik estava mais distante. A cada milimomento, Annik dava um passo que a distanciava ainda mais da Menina. Se tivesse que decidir entre ir atrás de Annik ou não, só poderia fazê-lo naquele momento.

Ao longe, nuvens negras se reuniam e disparavam raios pelos céus escuros do Deserto numa ira digna de um deus, e um trovão anunciava a chegada de uma tempestade caótica, que encharcaria até o mais árido e áspero dos desertos.

Que se danasse o navio voador. Com aquela tempestade que estava por vir, eles não iriam a lugar algum, e nem a Menina. Se ela era Annik, ela também pertencia àquele lugar. Aquele Deserto também era sua casa tanto quanto era de Annik. Não deveria ter sido tão difícil optar por voltar até ela. Se fosse embora, não saberia como seriam as coisas para onde iria. Não saberia nem mesmo para onde iria. Iria para casa, ou melhor, para o lugar de onde viera? Iria para o espaço? Ficar no Deserto era uma garantia de que pelo menos teria alguém consigo e de que sabia como as coisas — pelo menos as mais básicas delas — funcionavam. Na verdade, nunca quis partir, apenas o fez para não magoar Annik. Mas ela não lhe pareceu tão bem quando estavam se despedindo. Na verdade, parecia ainda mais magoada do que se tivesse ficado com ela.

Deu meia-volta e cruzou todo o trecho de deserto que havia percorrido novamente, seguindo suas próprias pegadas. Célere, mal sentiu suas pernas quando chegara à Rodovia correndo em direção de Annik, que agora havia desaparecido na imensidão sem fim do Deserto.

“It’s all over but the crying

And nobody’s crying but me…”¹

— The Ink Spots; It’s All Over But the Crying.