Entropia

LIV - Os Nômades


LIV

Os Nômades

Ao longe, a Menina avistou uma estranha movimentação no meio do Deserto. Via algumas tendas, luzes e pessoas bem pequenas os observando à distância.

— O que é aquilo? — perguntou ela, apontando para aquela movimentação.

Annik apertou seus olhos em direção aonde a Menina apontada e respondeu-lhe:

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— São eles. Estão mais próximos do que eu imaginava. Dusk — ela voltou-se para o cavalo —, apenas siga as luzes mais à frente. É para lá que devemos ir.

Dusk confirmou com um apressar de passo e galopou até lá na maior velocidade que conseguia.

Alice sentiu Annik respirar fundo atrás de si.

— Tá tudo bem? — ela perguntou, olhando para o rosto de Annik. Ela tinha um olhar distante, o que deixou a Menina ainda mais preocupada. E se ela estivesse pensando nas coisas que a deixavam mal?

— Sim... Só estou pensando em algumas coisas.

— Não tá pensando naquilo, tá?

— Quê? — Ela franziu as sobrancelhas. — Ah, sim, digo, não, não estou. Estou pensando em outras coisas. Talvez... Talvez eu conte a você mais tarde. — Ela sorriu timidamente para Alice, que sorriu de volta. Mesmo tímida, pôde perceber que o sorriso de Annik era sincero.

Quando chegaram às redondezas do que parecia ser um grande acampamento, Annik tampou seu rosto com a bandana que costumava usar quando não queria que ninguém a reconhecesse. Alice imaginou que ela não devia estar em bons termos com aqueles tais Nômades, visto que um deles a procurara havia muitos tempos, falando que Seth queria vê-la novamente. Na verdade, aquele Seth estava mais interessado em saber quem era a acompanhante de Annik, ou seja, a própria Menina. Aquilo lhe deu um frio na barriga. E se aquele homem fosse cruel? Ficou desconfortável com aquilo, como se tivesse levado uma pancada na cabeça.

Não havia ninguém em bons termos com Annik a não ser Ahmed, que cuidara dela enquanto ela estava dormindo. Annik, ou pelo menos a antiga Annik, que a Menina felizmente não chegou a conhecer, parecia uma pessoa excelente para comprar briga com os outros. A Annik que conhecera já era uma pessoa mais moderada, não uma pessoa beligerante.

Talvez Annik não fosse um vaso feio como tinha imaginado. Talvez ela fosse apenas um vaso bonito, mas quebrado e difícil de se consertar. Mas aos poucos cada pedaço do vaso quebrado ia sendo colado, e ele ia se recompondo e voltando a ser o que sempre tinha sido antes de ser destruído. De qualquer forma, era um vaso caro de ser consertado, mas pelo qual Alice pagaria qualquer valor para tê-lo do jeito que ele era antes.

Imaginava o porquê daquela mudança. Além do arrependimento, imaginava que ela própria fosse uma forma de Annik ser mais controlada. Ela não gostava de explodir diante da Menina, como Alice já a tinha visto fazer duas vezes. Aquilo a colocava numa posição muito importante na vida de Annik, que exigia muita responsabilidade que Alice não imaginava ser capaz de ter.

Dusk parou antes de entrarem na região pertencente aos Nômades.

— É aqui que vou deixá-las — ele disse, parando para que Annik e Alice descessem de seu dorso.

Era maravilhoso poder finalmente andar. As pernas da Menina já estavam quase tendo câimbras de tanto ficar sentada sobre Dusk, além de estarem machucadas pelo constante contato com a sua pelagem grossa. Annik também parecia sentir o mesmo alívio, pois estava esticando os braços, as pernas e a coluna, quase como se estivesse se espreguiçando. Depois do ritual, Annik seguiu em direção ao acampamento, e Alice foi logo atrás dela.

Annik parecia que iria arrumar briga com alguém ali, porque estava com um jeito ameaçador: a bandana amarrada ao redor do rosto, o taco de baseball nas costas e um olhar fuzilante, de poucos amigos.

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— Coloque isto sobre o rosto. — Annik também lhe entregou uma bandana, e Alice a vestiu. Provavelmente era para que Seth não a reconhecesse também.

Mesmo Alice já conhecendo Annik bem — não podia dizer muito bem, visto que sabia pouco sobre alguns detalhes de sua vida —, não pôde deixar de voltar a sentir um pouco de medo dela. Era uma sensação estranha e desagradável. Fazia tanto tempo que não sentia medo de Annik que voltar a ter aquele sentimento fazia-a se sentir traindo-a e perdendo a confiança nela, o que não era verdade. Nunca havia confiado tanto nela quanto agora. Antigamente, se lhe ela lhe pedisse para confiar sua vida nela, teria saído correndo. Agora, iria fazê-lo prontamente, sem questionar. Ou talvez questionando, mas apenas uma vez.

Para seu consolo, sabia que aquela aparência ameaçadora que Annik fazia naquele momento era apenas aquilo: aparência. Annik era muito mais que uma figura com cara de má. Na verdade, nem cara de má ela tinha. Quando ela estava normal, sem forçar um semblante de raiva como aquele, ela parecia quase um anjo, de tão serena e bondosa ficava sua expressão. Lembrou-se do sorriso que ela tinha lhe dado havia poucos momentos e em como ele havia lhe parecido tão verdadeiro. Sorriu sozinha lembrando daquilo, mas logo percebeu que estava sendo ridícula e tirou o sorriso do rosto.

— Quero ver Seth — Annik disse a um dos Nômades que vigiavam a entrada do acampamento. O homem apenas continuou a observá-la, inexpressivo, mas era possível notar que ambos se olhavam bem nos olhos um do outro. O homem, então, assentiu com a cabeça e pediu a uma mulher ao seu lado procurar o chefe apenas olhando para ela. A mulher também meneou com a cabeça em resposta e saiu dali, voltando logo depois junto de um homem alto, corpulento e barbudo.

— Ora, ora... — Seth sorriu, caminhando lentamente em direção a Annik. Ele era tão largo que até esbarrou levemente nos guardas. — Não faça essa cara pra mim. — Ele olhou bem nos olhos de Annik sem nem precisar levantar ou abaixar a cabeça: os dois tinham a mesma altura. Seth tirou a bandana do rosto de Annik com violência, e a sua cara ameaçadora sumiu junto com o pedaço de pano. — Annik — ele disse confortavelmente. — Eu reconheceria seus olhos, essa carinha de má e esse taco de baseball em qualquer lugar desse deserto. — Ele deu uma gargalhada. Annik, no entanto, estava revirando os olhos tal como um filho revira os olhos quando o pai fala alguma besteira. — Entre, eu tenho algumas coisas pra falar contigo. E ela — Seth apontou para Alice, que gelou instantaneamente — pode vir também. Aliás, garota, pode tirar isso da cara. A gente já sabe quem você é... Ou o que não é, não é mesmo? — E riu novamente. Alice, no entanto, não iria retirar a bandana do rosto enquanto Annik não a pedisse. Alice não obedecia a ninguém a não ser ela. Porém, Annik a olhou e assentiu, como que dizendo para que ela cumprisse o que Seth tinha lhe pedido, e a Menina não teve escolha senão retirar a cobertura de seu rosto e guardá-la dentro dos bolsos do seu sobretudo.

Seth foi à frente, e Annik e Alice o seguiram, as duas lado a lado. O acampamento dos Nômades parecia ser bem confortável. Havia duas fileiras de tendas bem grandes dispostas lado a lado. No centro, havia algo que parecia ser uma espécie de rua ou avenida, por onde as pessoas trafegavam. Também havia muitos animais, tais como camelos e cavalos presos em pilares que deveriam pertencer aos Nômades que ali viviam. Muitas pessoas andavam ao redor, todas parecendo estar muito atarefadas porque andavam rapidamente, carregando objetos, mas mesmo a pressa não os impedia de lançar olhares para Annik e Alice. Alguns olhavam de modo curioso, outros de modo ameaçador, outros até com medo, mas nenhum, nenhum, abria a boca para falar uma palavra sequer. Quando Annik disse que eles não costumavam se comunicar com palavras, não imaginava que eles levassem aquilo tão a sério.

Os três entraram numa tenda que, a princípio, parecia ser como todas as outras, mas ao entrar, a Menina percebeu que ela era muito luxuosa e confortável. No centro, havia um tapete com uma belíssima costura estendido sobre o chão de lona, com algumas almofadas sobre. No canto direito, havia uma mesa redonda de madeira com três cadeiras ao seu redor, e no canto esquerdo, uma enorme estante vazia.

— Desculpe pela falta de organização, eles ainda estão arrumando tudo aqui — Seth justificou.

— Vocês estão muito mais perto do que eu imaginava que estariam — disse Annik, sussurrando. Alice imaginava o porquê; naquele lugar, falar não era muito bem visto, então ela se esforçava para falar baixo para que os outros não a ouvissem. Já Seth, como parecia ser o líder dali, não tinha aquela preocupação. — O que aconteceu, por que estão recuando tanto?

— O Caos, Annik. Ele está vindo. Ah, por favor, sentem-se. — Ele indicou dois lugares à mesa de madeira para Annik e a Menina e sentou-se na cadeira restante.

— O Caos? — inquiriu Annik, sentando-se. A Menina a imitou e sentou-se na cadeira ao seu lado.

— Você sabe a história, eu não preciso te contar tudo de novo, não é?

— Eu sei, mas... é real? — Annik perguntou aquilo com uma curiosidade quase infantil.

— Eu o senti, Annik. É real. Eu... não sei como explicar. Mas não estava nos fazendo bem, é o que eu digo, então recuamos. Mas isso também é algo que hesitei em fazer.

— Por quê?

— A Organização está vindo para atacar todos aqueles que são contra o Faraó. Não sei se você reparou, mas temos muitas pessoas aqui no acampamento, mais do que o normal.

— Sim, eu percebi. As pessoas estão gostando dos ideais nômades, pelo visto.

Seth gargalhou.

— Não é por causa disso. O exército da Organização atacou o Império.

— Quê?! — Ela arregalou os olhos.

— Sim. O Império agora virou história. O Imperador está morto, e quem conseguiu fugir veio pra cá.

Annik pôs a mão na cabeça.

— Não consigo acreditar nisso... O Imperador...

— Você o conheceu, não é?

— Sim, mas... é inacreditável que ele tenha tido esse fim... — Pôs as mãos sobre o rosto, escondendo-o.

— Foi o último golpe na Legião, se quer meu ponto de vista.

— Com certeza... — o jeito com que Annik deixava as palavras no ar ao final das frases indicava que ela estava realmente abalada. O fato de colocar as mãos sobre a cabeça e o rosto também, reparou a Menina. Ela tinha agido assim quando Dusk perguntara sobre detalhes de sua vida que ela não estava muito a fim de se lembrar. Annik respirou fundo, se recompôs, e logo tornou a falar: — Mas, bem, eu estou aqui, o que você quis de mim?

— Nós queríamos saber sobre essa menina que está com você, mas as notícias da Pirâmide vieram antes, portanto nós já sabemos quem ela é.

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— Por que queriam saber sobre ela? — Alice sentiu-se como um alvo prestes a ser alvejado ao ser o tema daquela conversa.

— Eu senti algo em relação a ela.

— Você sente muitas coisas, Seth.

— Realmente. E meus pressentimentos estavam certos: ela é a Kra’vstanlas, assim como eu tinha imaginado. Mas isso não me impede de te pedir outra coisa, Annik.

— O quê?

— Lute com a gente. Se a guerra vier até a gente, o que certamente vai acontecer, vamos morrer lutando. Não vamos dar conta de acabar com o exército do Hasir sozinhos, nossos números são menores. Já enviamos cartas aos Lobos da Tundra para nos ajudar, mas eles ainda não nos deram uma resposta.

— E você acha que eu, sozinha, vou ajudar com os números de vocês?

— Claro que não, mas acho que vai ajudar a levantar o moral dos soldados.

— Não sei se vou ser de grande ajuda nesse ponto, também. Não sei se você reparou, mas as pessoas me olhavam como se me quisessem fora daqui.

— Elas não têm o poder de te mandar pra fora daqui, e foi por isso mesmo que eu te requisitei aqui. Se alguém aqui pode te mandar embora, esse alguém sou eu, e a última coisa que quero é que você vá embora.

— Então você quer dizer que eu estou presa aqui, é isso?

— Argh. Não. Você pode ir embora, mas aí minha vontade de esmurrar sua cara vai aumentar ainda mais.

— Ah... — Ela riu de modo esperto. — Então vamos fazer o seguinte: você me ajuda com algo, e eu também o ajudo, o que acha?

— O que você quer?

— Chegar ao Fim.

— Ah, você não iria ser burra pra fazer uma coisa dessas, não é?

— Por quê, qual o problema?

— Annik, a Rodovia leva ao Fim. O problema é que quanto mais longe a Rodovia te leva, mais você sente o Caos. O Caos vem das Beiras do Mundo, Annik. Imagine... — Seth olhou para os lados, tateou os bolsos do seu próprio sobretudo e tirou de um dos bolsos internos uma folha de papel meio amassada e amarelada. — Imagine que o Mundo é uma folha de papel. Imagine que a gente está no centro, mais ou menos, dessa folha de papel. — Ele pôs o dedo indicador num ponto invisível no meio da folha. — O Caos vem das bordas do papel em direção ao centro, aqui onde a gente está. E quando mais longe do centro, pior. O Fim, ou melhor, os Fins são os lugares onde o Caos já está completamente alastrado. Eu não sei o que vai acontecer com você se você chegar até lá, mas eu não imagino que seja coisa boa.

— Como você sabe de tudo isso, você viu alguma coisa?!

— Eu apenas senti, Annik. Nós temos que parar isso, ou no final, o Mundo inteiro vai ser... contaminado por isso. — A ideia de o Mundo inteiro ser “contaminado” por um caos dava calafrios à Menina. Pior ainda era a ideia de correr, correr e jamais conseguir se esconder daquilo, porque mais cedo ou mais tarde, todo o Deserto seria afetado. E também o medo do que aquilo poderia lhe causar, o medo do desconhecido, o medo de também perder Annik de novo.

— E como vamos fazer isso? — apesar da gravidade do assunto, Annik não parecia nem um pouco chocada, pois perguntou aquilo com a maior naturalidade do mundo.

— Eu não sei. Pergunte a ela. — Ele apontou para a Menina.

— Eu?! — Alice apontou para si mesma. — Espera, o que eu fiz?

— A questão é: o que você vai fazer?

— Nada — Annik respondeu por ela. — O que ela pode fazer? — Annik disse, dando de ombros ao mesmo tempo. — Como ela vai parar algo que nem mesmo podemos ver ou tocar fisicamente? Não tem como. Aceite, Seth, este Mundo não tem salvação. Você tem alguma bebida, aliás? Falar sobre isso está me dando sede.

— Ah! Agora sim você tocou no meu assunto preferido! — Seth levantou-se e foi até o lado de fora da cabana. Quando voltou, tinha em suas mãos uma garrafa e três copos. — Acredita que minha boca também está ficando seca? Eu não falava assim há tempos.

— É, eu imagino. As pessoas aqui continuam silenciosas. Imagino como foi para os novos Nômades se adaptarem a isso. — Seth colocou um pouco de bebida, que parecia vinho, para Annik, para ele próprio e quase pôs para a Menina, mas esta recusou. — Enfim, você vai me ajudar a chegar ao Fim?

— Se você quer se suicidar, o problema é seu. Só peço que nos ajude em troca. Diferente de você, Annik, eu não sou egoísta.

Annik parou de beber. Subitamente, ela jogou o que restava de vinho no seu copo no rosto de Seth e se levantou.

— Eu não sou mais desse jeito, seu desgraçado — ela falou ainda sussurrando, apontando o dedo para ele ameaçadoramente.

— Annik, por favor... — a Menina tentou acalmá-la, mas ela não lhe deu ouvidos.

Mas Seth não se sentiu ameaçado. Ao invés disso, ele caiu na gargalhada.

— Eu já estava sentindo falta dessa Annik! — Ele riu mais. — Annik, se você quiser, agora eu te ajudo até a cortar a cabeça daquele filho da puta do Faraó ou viajar pro espaço! Você me convenceu depois dessa!

— Você vai cumprir sua parte no nosso trato? — ela ainda soava ameaçadora.

— Eu já cumpri! — e Seth ainda soava como se tivesse ouvido uma piada excelente, porque ainda gargalhava. — Só falta você cumprir a sua parte agora, Annik! Enquanto esperam a batalha, vocês duas podem ficar nesta tenda. O resto da decoração está numa caixa do lado de fora da cabana. Quanto ao resto, Annik... Bom, você já sabe como as coisas aqui funcionam, não é mesmo? — Seth deu mais uma risada histérica. — Seja bem-vinda de volta ao lar!