Entropia

LI - A Ruína no Meio do Deserto


LI

A Ruína no Meio do Deserto

“Nada subsiste ali. Em torno à derrocada

Da ruína colossal, areia ilimitada

Se estende ao longe, rasa, nua, abandonada.”

— Percy Bysshe Shelley; Ozymandias.

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Sua mente, outrora breu, agora voltava a lhe mostrar imagens bagunçadas, flashes e borrões irreconhecíveis. Além disso, uma voz gelada e sussurrada insistia em penetrar sua inconsciência.

Não conseguiu distinguir o que ela dizia a princípio, mas depois ela foi se tornando mais clara e ainda mais gélida:

Acorde... acorde... — a voz começara assim, mas ele ainda continuava adormecido. Aquela voz também parecia não pertencer a ninguém. Não tinha um som característico, um timbre que determinasse se era uma voz masculina ou feminina, não despertava nenhum rosto em sua mente. Era como se fosse a voz da sua própria consciência, como a voz que sua mente emite dentro da sua cabeça quando se lê algo. Era desprovida de emoção, como se pertencesse a alguém entorpecido ou a um robô. No geral, era uma voz amorfa.

Depois a voz começou a tomar um pouco mais de forma dentro de sua cabeça. Pôde distinguir sentimentos nela, coisa que não conseguia antes. Aparentemente, o efeito da anestesia estava passando, tanto para a voz, tanto para o dono da mente a qual ela invadia.

Acorde... acorde! — daquela vez, a voz tinha pressa para que ele acordasse. Mas ele ainda se manteve adormecido.

Já na terceira vez, a voz deixou de ficar ter apenas pressa para ter urgência.

Acorde, acorde, acorde!!

Da quarta vez, ela se moldou ainda mais, e ele pôde perceber o seu timbre claramente: uma voz feminina, que lhe parecia muitíssimo familiar. Sua mente, entretanto, não continuou sua linha de pensamento e o fez continuar em repouso.

E a quinta e última vez foi decisiva.

Acorde.

E Adam acordou.

Seus olhos se abriram e a primeira coisa que eles viram foi o enorme teto abobadado esculpido em mármore cinzento recebendo os raios do pôr do sol do deserto. Sentiu as lascas do piso do granito xadrez entre seus dedos, cortando-o e fazendo pífias tentativas de furá-los.

— Ah... — uma voz calorosa cresceu detrás de si. — Pensei que não fosse acordar jamais.

Adam levantou-se a ponto de ficar sentado sobre o granito sujo do salão e olhou para trás. O dono daquela voz era um senhor bastante velho, com barba longa e branca como a neve. Adam, no entanto, não foi capaz de ler seu nome através de seus olhos miúdos e gentis, mas não se preocupou com isso no primeiro momento. Estava tão preocupado em saber onde estava que aquele detalhe lhe passou despercebido.

Olhou ao redor e percebeu que estava numa espécie de teatro, templo ou outra coisa igualmente imponente. Aparentemente, tinha mais de um andar, pois Adam e o velho estavam numa espécie de sacada interna. No entanto, não conseguiu avistar o que havia no andar de baixo.

— Onde estou? — Adam perguntou, os olhos arregalados de surpresa enquanto se levantava. Quando se levantou, também percebeu que sentia falta de algo. Onde estava seu violão? Onde estavam Dusk e a Serpente? — Eu... Onde está meu violão, senhor? E Dusk? E a Serpente? Por quanto tempo eu dormi?

— Acalme-se, rapaz. — O homem caminhou em direção ao parapeito e repousou suas mãos lá. — Seu violão está bem guardado. Irei entregá-lo a você antes de você partir. Sobre essas pessoas... ou animais, melhor dizendo, não sei onde estão. Quando eu o encontrei, você estava sozinho, deitado sobre as areias do Saar, dormindo. Dormiu por bastantes tempos. Pelo menos, desde que eu o encontrei até agora, passaram-se muitos tempos.

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— Ah... — Adam pôs as mãos no rosto. Naquele momento, recordou-se de tudo o que havia ocorrido: desde quando sentira sua dog tag ardendo de novo, depois sua ida até a Rainha, sua jornada pelo deserto desconhecido e o momento em que a dog tag ficou tão fria como gelo, e ele, desesperançoso, dormiu com o intuito de não acordar jamais. — Eu só espero que não seja tarde demais...

— Oh, jovem, para o Deserto, nunca é tarde demais! — ele riu, parou e então suspirou pesadamente. — Ainda é grandioso, não é mesmo?

— O quê?

— Aqui! — Ele deu uma gargalhada prazerosa. — Não sabe onde está?

— Ahm... não. — Adam coçou a cabeça, em parte por estar confuso, em parte para limpar-se da poeira e das lascas de granito que faziam seu couro cabeludo coçar.

— Aqui, rapaz, foi a velha Escola. Isso lhe soa familiar?

— Também não.

— Então venha mais para perto, sim. — Adam lhe obedeceu e caminhou até ficar lado a lado com o velho. Pôde ver o que havia mais embaixo: era, de fato, uma espécie de teatro, mas que já tinha perdido todo o seu esplendor. Havia algumas cadeiras de mármore dispostas em filas, um corredor central adornado por um tapete vermelho com detalhes dourados rasgado e um palco, também de mármore, coberto por uma cortina cor de sangue rasgada e desfiada em vários pontos. — Reconhece?

— Ainda não...

— Céus! Você, mais que ninguém, deveria reconhecer este lugar! Mas tudo bem. Ainda tenho que lhe mostrar a atração principal. Vamos abrir as cortinas, sim...

O velho caminhou até uma das pilastras que sustentava a sacada interna e acionou uma alavanca presa nela. As cortinas se abriram pouco a pouco depois disso, e o velho caminhou de volta para a sua posição inicial.

À medida que o tecido vermelho ia se afastando, Adam pôde perceber que por trás dele havia um gigantesco paredão de mármore, bastante arranhado. Parecia que uma besta havia invadido aquele lugar e atacado tudo o que havia ali com suas garras afiadas. Era a única explicação para toda aquela suntuosidade ter sido perdida com os tempos.

— Por que tudo está assim, destruído? — perguntou Adam, sem muitas esperanças de que o velho lhe respondesse. Mas ele assim o fez, surpreendendo Adam:

— A Organização, jovem, veio e destruiu tudo, tudo... Os rasgos que você vê nas cortinas e no tapete foi feito pelas lanças deles, em meio a gritos e correria. As lanças deles não apenas rasgaram os tecidos, mas como rasgaram a carne das pessoas que estiveram aqui naquele fatídico momento...

— E os arranhões na parede ao fundo?

— Ah... aquilo? — Ele apontou para o paredão. — Ah, isso não. — Ele abriu um sorriso. — Isso foi feito por nós. Observe bem, Adam. Aquilo não são rabiscos.

Adam apertou os olhos e percebeu formas muito características para terem sido formadas por meros arranhões feitos durante um ataque da Organização. Havia letras escritas em kra’vstan no alto da parede, bem no centro, e depois disso, várias linhas perfeitamente retilíneas com desenhos muito familiares para o Bardo. Reconheceu várias claves de Sol, algumas claves de Fá aqui e acolá e umas poucas de Dó que pôde contar nos dedos.

— Aquilo, jovem Adam — o velho prosseguiu, ainda apontando para a parede —, é o que você veio buscar. Aquela é a Música do Deserto.

Adam ficou inexpressivo. Estava surpreso por ter conseguido chegar até lá, o que jamais imaginou que fosse capaz, mas ainda assim não havia mais sentido naquela jornada. Annik estava morta, então não havia mais ponto em ter de obedecer à Rainha.

— Eu não busco por mais nada, senhor... — Adam foi tentar completar a frase com o nome do velho, mas lembrou-se que ele, por algum motivo, não tinha nome. Franziu as sobrancelhas, não entendendo o que se passava. — Qual seu nome? O senhor n-não possui... — Sua boca então se contorceu num círculo de surpresa. — ¡Kra’vstanlas!

— Sinto lhe informar, jovem, mas não, não sou o que você chama Kra’vstanlas. E meu nome... — Ele suspirou, acariciando sua longa barba. — Ele não é relevante. E é justamente por isso que você não consegue lê-lo. — O velho terminou em um sorriso. — Ah! — Ele levantou o dedo indicador e depois procurou algo nos bolsos de suas vestes. — Tenho algo para lhe entregar. Algo que achei bastante curioso e por isso peguei sem sua permissão. Espero que me perdoe por isso.

— O que é?

— Isto. — O homem sem nome jogou para Adam um objeto que brilhou com a luz do sol poente, e Adam o pegou no ar.

Eram suas dog tags, e elas estavam tão quentes que pareciam ter sido postas num caldeirão de água fervente.

— Você as deixou no sol?

— Não.

— Então por que estão tão quentes?

— Você me diz.

O Bardo arregalou os olhos. Só podia haver um motivo. Aquele motivo.

Annik.