Entropia

XLIX - Sombras


XLIX

Sombras

Durante a longa noite na Tundra, puderam ouvir trotes ao longe sendo amaciados pela neve.

— Que barulho é esse, Annik? — perguntou a Menina, mas Annik já tinha percebido o som antes de Alice tê-la avisado e olhava para o horizonte tentando descobrir de onde ele vinha.

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— Imagino o que seja... — ela respondeu, seus olhos semicerrados.

Elas ficaram paradas por um instante e não foi por desejo de Alice. Na verdade, a Menina bem que queria correr dali, com medo daqueles sons que mais soavam como trovões à distância, como augúrio de morte.

— Vamos embora, Annik, a gente não pode ficar aqui a vida toda! — a Menina apressou.

— Ainda não. Se for quem estou imaginando, é melhor ficarmos.

— E quem você pensa que tá vindo? A Organização, pra matar a gente?

— Não. Imagino que sejam os lobos — a palavra saiu fria de sua garganta. Parecia que Annik estava ficando acostumada à aspereza da Tundra, pelo visto.

— Então ao invés de a gente morrer pelas mãos de seres humanos, a gente vai morrer estraçalhada por lobos, é isso? Que ótimo. — A Menina cruzou os braços, olhando para Annik com uma cara que parecia querer dizer “sério que você vai fazer isso?!”.

— Não são lobos de verdade. É como eles se chamam. Os Lobos. Assim como existe A Organização, que controla boa parte do deserto, Os Lobos controlam a Tundra.

— E eles não vão matar a gente, né?

— A princípio, não.

— Eles sabem que você... a gente tá aqui?

— Não sei. Talvez. Existem muitos meios para saber sobre o que se passa no Mundo. Talvez já saibam que eu estou viva e estão vindo ou para me matar ou para barganhar.

— Olha, Annik! — Enquanto elas conversavam, uma figura apareceu ao longe, e Alice a apontou. Era uma figura negra como as sombras, parecia até mesmo um breu ambulante. Annik virou o pescoço para a direção que a Menina apontava para ver o que ou quem era. Se ela reconheceu, nada disse.

As duas esperaram o ser se aproximar mais até que puderam distinguir a sua forma equina. Pelo menos para Alice, a figura assumiu um formato de um cavalo escuro como as noites do Deserto, trotando violentamente em sua direção. No entanto, cavalgava sozinho, sem a ajuda de um cavaleiro guiando-o. As suas narinas bufavam, e ele corria com tanta audácia que parecia querer pisoteá-las.

— Quem é, Annik? — Alice indagou novamente.

— Não sei — Annik respondeu com um leve chacoalhar de cabeça. — Não é quem eu esperava que fosse. Apenas consigo ler seu nome.

— Nome? — A Menina ergueu as sobrancelhas. Já tinha uma noção de como os nomes funcionavam no Mundo, mas não imaginava que animais também possuíssem nomes.

— Sim. Ele se chama... Dusk.

Continuaram observando o cavalo se aproximar. Ele galopava, até que começou a trotar, apenas, e por fim, parou em frente a Annik e Alice. De perto, a Menina pôde perceber que sua pelagem era tão escura que parecia ser a própria noite. Parecia ser feita da matéria escura da qual o universo era composto. Ele era bem alto, também. Bom, era um cavalo, não é mesmo? Se não fosse alto, seria um pônei. Mas mesmo assim, ainda era uma visão grandiosa para a Menina, que já tinha visto coisas tão grandiosas quanto ele naquele Mundo. Era até mesmo estranho ver Annik, que era bem alta, ter de levantar o rosto para olhar nos olhos daquele animal.

Dusk bufou ao parar diante das duas e fez um som que parecia ser um início de um relincho.

— O que você quer? — perguntou Annik.

— Annik — o cavalo disse numa voz grave. Espera. O cavalo disse?! Já tinha visto de tudo ali, mas animais falantes já era demais! A Menina ficou boquiaberta e com os olhos arregalados, mas resolveu não falar nada para não interrompê-los. — Jamais imaginei que fosse encontrá-la. E quem é essa outra...

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— O que você quer de mim? — ela insistiu, interrompendo-o.

— Eu não quero nada de você. Apenas acho... curioso vê-la por aqui. Por onde passei, pessoas me disseram que você estava muito provavelmente morta.

— Vai levar algum tempo para a morte me alcançar.

— Estou percebendo. Imagino que você deva saber que o seu amigo, Adam, cavalgou sobre mim.

— Adam? — Ela arregalou os olhos. — Impossível. Ele está morto.

— Não é o que parece. Pelo menos para mim, ele não está tão morto quanto você gostaria que estivesse.

— Onde ele está?!

— Agora ele dorme no deserto. Numa região bem distante do deserto, para falar a verdade. E não estávamos sozinhos: a Serpente também estava conosco. Estávamos voltando para a Fortaleza, mas ao chegarmos à Tundra, ela sucumbiu ao frio.

Annik estava surpresa. Pela sua reação — ou pela falta dela, para falar a verdade, já que ela ficou paralisada —, ela parecia em choque com as notícias. O deserto poderia parecer um lugar inóspito e parado no tempo, mas as últimas notícias não passavam essa impressão. Pelo contrário, passavam a impressão de um deserto em polvorosa, caótico.

— Você disse a “Fortaleza”? — Annik indagou.

— Sim — Dusk respondeu prontamente. — A Fortaleza de Areia onde a Rainha reside.

— Não se meta com aquela mulher — ela disse abruptamente, quase o interrompendo mais uma vez. — Ela... ela é o demônio. — Annik estava ofegante, trêmula e suava. Ela definitivamente não estava bem com aquele assunto, e Alice quis saber o porquê. Um porquê que jamais saberia, na verdade, visto que Annik era uma pessoa misteriosa e quase não lhe contava nada sobre seu passado.

— Você a conhece? — Dusk pareceu surpreso. Ou pelo menos Alice achava que sim, já não sabia exatamente como um cavalo demonstrava surpresa.

— Sim. Infelizmente sim. Afaste-se dela enquanto ela ainda não o destruiu. Ela usa as pessoas com quem negocia como fantoches. Se elas se provarem úteis, ela os recompensa, mas se não... ela os descarta. Aproveite enquanto ainda não foi descartado e livre-se dessa mulher.

— E o que sugere que eu faça?

— Venha conosco.

— Ir? Com você? Para você me matar depois, assim como fez com Adam? — Adam. A última peça daquele quebra-cabeça fora encaixada na mente da Menina. Adam era o nome do homem que Annik pensava que tinha matado. Lembrou-se da conversa que tiveram no velho carro, a conversa que fizera Annik chorar. E meu Deus, como se encaixava. Adam era o nome da outra pessoa em quem ela confiava. A pessoa que ela tinha matado. Foi a vez de a Menina ficar tão surpresa quanto Annik.

— Primeiramente, a morte de Adam teve muitos outros detalhes implícitos dos quais você não sabe. E em segundo lugar, então fique vagando pelo deserto sem propósito. Seria interessante se tivéssemos alguma ajuda, mas não é algo necessário.

— Quem diria, Annik pedindo por ajuda... Realmente, é o fim dos tempos.

— Fim dos tempos...?

— Faz sentido, não é? Você carrega a Kra’vstanlas consigo, e as mesmas pessoas que me disseram que você estava morta também me disseram sobre perturbações estranhas no Mundo. Como se algo estivesse alterando este lugar...

— O Caos... — Annik sussurrou, olhando para além de Dusk, para além do horizonte nevado e obscuro pela noite. Parecia querer dizer aquilo mais para si mesma do que para Dusk.

— Será verdade?

— Não imagino. Sempre imaginei que o Mundo fosse terminar envolto em Caos. Na verdade, não terminar — ela se corrigiu —, mas sim, colapsar.

— Será que sua Kra’vstanlas poderá nos salvar do colapso? — Dusk olhava diretamente para a Menina, que não pôde deixar de se sentir intimidada. Annik percebeu aquilo e envolveu-a pelos ombros numa atitude protetora, trazendo-a mais para perto de si, mas não respondeu à pergunta de Dusk.

— Então, você vem conosco ou prefere ficar conversando enquanto congelamos neste frio?

— Pelo visto eu não tenho outra opção, tenho?

— Na verdade, você tem. Eu só não as recomendo.

— Vagar pelo deserto, voltar à Rainha ou ajudar você. Meu destino realmente não é dos melhores. Voltar para a Rainha me parece ser a opção menos pior, na verdade. Ela sempre me tratou muito bem.

— E como você garante que ela vai tratá-lo bem de novo? Principalmente voltando para lá de mãos, digo, cascos vazios.

O cavalo bufou novamente.

— Você tem razão. Provavelmente ela vai ficar enfurecida por eu voltar sozinho e sem o que ela quer.

— E o que ela quer?

— Eu não vou dizer. Até porque é irrelevante para você.

— Será? — Annik esboçou o que parecia um início de um sorriso malicioso.

— Humpf. Subam logo em minhas costas. Se eu voltar para a Rainha, ela me matará. Se eu vagar pelo deserto, ficarei louco. Pelo menos com vocês duas, tanto a morte quanto a loucura me parecem ser um pouco mais incertas. Eu só espero que vocês não façam muitas perguntas.

As duas obedeceram e subiram em seu dorso. Logo o cavalo começou a galopar. E passados alguns tempos, deixaram de pisar em neve para pisarem em areia novamente.