Entropia

I - O Sono


I

O Sono

“Just like the stars upon your ceiling that put you to sleep after…”¹

— Warpaint, Stars.

As areias estavam agitadas naquela manhã que durara dias, tardes e outras noites que pareceram nunca ter passado. Elas tinham vontade de viajar pelo Mundo, dwel², para nunca mais voltarem. Explorarem territórios com gramíneas era o sonho delas. Encontrar a tundra, um pesadelo. E continuar a vagar pelo deserto eternamente, como muitos outros dwelerva faziam, era o pior medo, pesadelo, trauma de todas elas.

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A maioria, infelizmente, continuava a voar. As parábolas diziam que elas estavam destinadas a procurar pela Canção do Deserto, há muito perdida. Talvez fosse verdade, talvez não, nunca se sabe. As azaradas — ou sortudas, nunca se sabe — que encontraram as canções geladas e os ventos brancos e arrepiantes da tundra também nunca voltaram para o lar reencontrar a vasta família do Mar de Areia, o Sanduur. Ninguém sabe o que aconteceu a elas. Talvez tenham encontrado conforto no frio. Ou talvez simplesmente tenham caído sobre a neve, até que mais flocos caíram e caíram, enterrando-as e lhes dando a morte que mereciam. Mas nunca se sabe.

As que encontravam as gramíneas das planícies, entretanto, sempre voltavam. A canção das pradarias era mais agitada, os ventos, mais fortes, e elas não se acostumavam à vida colorida do lugar e regressavam à casa. Infelizmente. Ou não. Nunca se sabe.

Mas outras areias tinham ainda mais sorte — ou azar — de se depararem com algo diferente no deserto. Corpos dilacerados recentemente, começando a se decompor; corpos dilacerados havia... incontáveis tempos. As areias mais sortudas, no entanto, conseguiam achar corpos dormindo, ihrv.

— Acorde. — A garota sacudiu pela enésima vez o corpo. — Acorde logo. — Já estava ficando cansada. — Estou com sede. Não encontro água neste… neste deserto.

Os outros olhos abriram. Íris castanhas, se revelando abruptamente, refletindo o sol.

Saar. Deserto.

Vasculhou o mundo novo: o céu azul e sem nuvens; o sol escaldante que pela primeira vez em muitos tempos invadiam seus olhos.

Ela havia acordado.

Annik, acorde.

Levantou-se após muitos tempos. Nada doía, a não ser a mente. O corpo estava como se tivesse descansado oito perfeitas horas de sono pesado e tranquilo. É mentira que foram oito horas. Um sono pesado é verdade. Foi muito pesado. Muito. Todo o peso de todas as galáxias sobre sua consciência. O tranquilo, uma meia-verdade. Em sua mente, não havia tranquilidade havia tempos.

A primeira coisa com que se deparou foi menina olhando com expressão curiosa, olhos arregalados, não sabia se assustada ou simplesmente surpresa com o seu despertar.

Annik olhou ao redor. Todo o redor, apenas deserto. Norte: deserto. Sul: deserto. Leste: deserto. Oeste: deserto. O deserto sem fim a engolia.

Olhou novamente para a menina.

— Quem é você?

Apenas olhos.

— Seu nome? — ela tentou de outra maneira.

— Não tenho nome — a menina respondeu.

— Não tem… kayrn? Nem kra'vstan? — Annik estava tão surpresa quanto a menina agora. Os olhos igualmente castanhos igualmente arregalados.

Impossível. Inadmissível. Intolerável. Desde quando pessoas sem nome vagavam pelo Mundo? Nunca! Um ultraje, de fato! A não ser que…

— Kra'vstanlas — sussurrou tão baixo que a canção das areias quase tornou sua voz uma parte do vento.

— Kra'vstanlas? O que é isso? Com licença, você pode me explicar o quê…

— Você não fala a língua incomum. Como isso é possível? — Olhou bem para o seu rosto. Seus olhos. Suas feições. Nariz. Boca. Nada. — Nem mesmo consigo ler o seu rosto.

Annik estava boquiaberta, os olhos também abertos. Soltava um sussurro, um “ahhh” tão longo que se misturava ao vento.

— Ust kra'vstanlas. Você não tem nome. Você… — ela estava, além de boquiaberta, quase paralisada – é uma Sem Nome. Kra'vstanlas. Sem. Nome — explicou.

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Ela sussurrou mais uma vez, fitando criteriosamente a menina. Seus olhos fuzilavam-na de admiração. Quem diria que a pessoa que mais era admirada e temida por todo o Mundo fosse nutrir admiração por uma… nada. Não havia palavras para descrevê-la além de Sem-nome. Kra'vstanlas. Aquela que tinha tantos nomes quase curvava-se diante de uma que não tinha nome algum.

— Como me acordou?

— Eu não sei, eu fiquei te chacoalhando por um longo tempo… Você tem mesmo um sono pesado.

A outra assentiu, ainda pasma.

— Sim, eu… eu tenho. Tive.

— Ahn… por favor, senhora…

— Annik.

— Annik. Certo. Você tem água? Comida? Alguma coisa do tipo?

— Nada.

— Poderia… me levar pra casa?

— …Casa?

— É… eu simplesmente acordei aqui, do nada. Como você, eu abri os olhos e cá estou eu, num deserto. Eu não me lembro onde fica minha casa, nem como ela é. Mas com certeza não é aqui.

— Eu não sei se posso te levar embora daqui, você nem mesmo sabe onde é sua casa.

— Você deve ter visto alguma coisa, não? Antes de ter dormido, talvez…

— Eu dormi por muito tempo. Não vi nada.

— Tudo bem… Mas pelo menos pode conseguir alguma comida ou água?

— Sim, eu creio. Pelo que me lembro, há um bar a alguns quilômetros de quilômetros daqui.

— Quilômetros de quilômetros?

— Sim.

Elas se olharam uma nos olhos da outra. Profundamente. As íris castanhas da menina mostravam sua confusão. Perdida no deserto. Talvez para sempre, como as areias. Talvez um pouco de ressentimento por aquela… estranha. Ela era esquisita. Falava palavras estranhas, das quais nunca havia ouvido. Usava roupas estranhas. Boina de escritor com camisa e calças de nômades, beduínos, pessoas do deserto. E botas de cavalaria sem esporas. Sem falar no estranho taco de baseball que ela trazia pendurado em suas costas como se fosse uma claymore. Devia ter uns vinte e cinco, vinte e seis anos no máximo, talvez uns nove ou dez anos mais velha que a Menina. E ela era bonita. Muito. E muito estranha também. Tinha olhos que iam desde à completa inocência à tristeza. Ou de admiração ao ódio sem fim. Aquela menina Sem Nome parecia muito especial. Vestia-se de camisa branca, calças jeans rasgadas e all-stars brancos. Parecia uma garota de catorze anos. Mas sua expressão de surpresa era como uma criancinha de cinco que acaba de ver o Papai Noel no shopping e fica fascinada. Os olhares de ambas eram parecidos. Expressavam muita coisa ao mesmo tempo. Olhares difíceis de deduzir.

— Você — Annik perguntou — quer vir comigo?

— Ahn… – A menina coçou a cabeça. — Sim. — E fez com os braços algo que dava a entender como “bem, o que mais posso fazer?”.

— Então vamos. A jornada é longa. Precisamos chegar lá antes da tarde. Temos de andar. Haf.

— E sair deste deserto, espero.

Annik deu uma gargalhada debochada.

— Sem chances. O deserto é muito, muito grande. Demoraria incontáveis tempos para que saíssemos dele. Venha, precisamos nos apressar.

A menina correu para perto da estranha, Annik, tentando alcançá-la.

A menina era uma areia. Uma areia perdida no meio de infinitas outras areias que vagavam pelo Mundo. Se fosse uma areia sortuda, iria sair do deserto e encontrar os outros lugares. Mas Annik lhe dissera o contrário. Annik era uma das areias que o vento empurrou por todo o Mundo, mas que retornou à casa, que voltou e ficou perdida no deserto. O pesadelo mais terrível.

Mas com sorte, a menina não seria uma daquelas areias. Talvez. Afinal, nunca se sabe.