Apocalipse

Reconciliação


Outro dia se iniciava. A neve continuava a cair e um vento frio soprava fraco.

Nick andava por um pedaço de mata conhecido, acompanhado pela collie. Com o arco em mãos, ele espreitava por entre os troncos das árvores nuas, apenas os galhos batiam uns nos outros, fazendo constantes estalos irritantes. Enfim ele parou quando encontrou a clareira que sempre costumava ficar, o lago que se localizava ali estava quase congelado. O rapaz sentou à beira do lago e encheu algumas garrafas com a água do mesmo, guardando-as em seguida na mochila.

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Aika chegou ao seu lado e se esticou para beber a água gelada, enquanto o rapaz a olhava, curtindo o sentimento de nostalgia, lembrando-se das tardes de sol que passou com a ruiva no último verão. Suspirou e depois remexeu os pelos de sua companheira, tirando a neve de cima deles.

Levantou outra vez e tirou a neve de suas roupas. Seguiu caminho por entre as árvores, ficando atento aos mínimos ruídos, enquanto recolhia alguns gravetos caídos no chão, alojando-os na lateral de sua mochila. Seguiu assim por alguns minutos até a collie começar a rosnar baixo, virada na direção de um cervo não muito distante.

O rapaz preparou uma flecha em seu arco. Mirando no cervo, que cavava a neve com suas patas, ele deixou a flecha escorregar por entre seus dedos, cortando o ar e o atingindo rapidamente. O animal, sentindo a dor aguda da flechada, correu, um tanto desnorteado. Nick e Aika o seguiram, mas logo o perderam de vista. A collie começou a farejar a neve e logo seguiu andando, seguida pelo rapaz.

Uma trilha de sangue fresco denunciava o local onde o cervo se escondia. Seguiram a trilha e o encontraram. Nick preparou outra flecha, e mais uma vez deixou-a escapar, dessa vez acertando o cervo no peito, este que ergueu suas patas no ar e logo caiu de lado, dando um último suspiro. O jovem se aproximou e retirou as flechas com cuidado, chacoalhando-as - para tirar o sangue - e guardando-as de volta.

— Bem, já dá pra matar quem está nos matando, certo? - ele comentou com a collie, esta que apenas abanou o rabo em resposta.

Agarrando as patas dianteiras do animal desfalecido com firmeza, Nick seguiu fazendo o caminho de volta, arrastando aquele corpo ainda quente, e deixando uma tilha na neve.

Chegando outra vez naquela rua silenciosa, o jovem lançou um último olhar para a casa cor de laranja desbotada, talvez com um leve receio de que algum subordinado de David - ou ele próprio - saísse dali. Chacoalhou a cabeça e voltou o olhar para a casa no fim da rua, a casa verde água, também desbotada. Arrastou o cervo para dentro, levando-o para a cozinha e o deixando ali, depois voltou para a sala e tirou a neve de suas roupas, jogando-se em um dos sofás, observando a garota deitada em outro, dormindo tranquilamente.

* * *

Outro dia de neve se iniciava, outro monótono dia de aula, só de pensar a ruiva já bocejava instintivamente. Escorada na grande árvore que ficava do outro lado da rua da escola, Lizzie observava o movimento, quase dormindo de pé. Suas mãos alojadas nos bolsos da grossa e longa jaqueta preta, salpicada pela neve, o cabelo escondido sob o gorro, ainda que algumas mechas insistissem em aparecer, sua mochila vermelha estava jogada nas raízes expostas da árvore. Estava totalmente dispersa em seus pensamentos, com a cabeça pendendo para o lado, quando algo a perturbou.

A menina esfregou os olhos e respirou fundo, juntando forças para mover-se e espreitar o que estava acontecendo atrás da árvore, de onde vinha o som de um tumulto. Lilian estava lá com outros três meninos, o do meio, o mais alto do grupo, havia pego a touca da menina e a chacoalhava no ar, de modo que ela não conseguisse pegar. Ela sabia que aqueles meninos eram mais velhos, mas nem por isso deixaria de defender a irmã. Puxou a mochila e jogou-a sobre um dos ombros, seguindo lentamente até lá, mesmo que não estivesse totalmente calma.

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Ao notarem Lizzie, o garoto mais alto sorriu de orelha à orelha, enquanto os outros engoliram em seco, sabendo que o pior poderia acontecer. A ruiva parou ao lado da irmã e, com o semblante sério, se pronunciou:

— Devolve. - bastou apenas uma palavra para que a ameaça fosse feita.

— E se eu não tiver afim? - o menino debochou.

— Aí nós vamos para a diretoria. - ela sorriu irônica e depois voltou a ficar séria.

O menino riu e ainda completou com um "Ela vai contar para a diretora!". Lizzie soltou a mochila, fazendo-a cair com pesar no chão, depois tirou as mãos do bolso, passando a estalar dedo por dedo.

— Devolve. - ela repetiu.

— Ela ficou bravinha! - e riu novamente.

A menina deu um passo à frente, fingindo que ia lhe acertar um soco, mas no último momento chutou seus pés, fazendo-o perder o equilíbrio e cair de lado na neve. Calmamente, ela pisou em sua bariga, pressionando-a para baixo, e tirou a touca das mãos do garoto.

— Se você não sumir da minha vista pelo resto da semana, eu vou quebrar todos os dentes que você tem. - ela o ameaçou e depois voltou o olhar para cima, fitando os outros dois rapazes com seriedade. - E vocês? Querem apanhar também?

Os meninos balançaram a cabeça em sinal negativo, mas permaneceram estáticos. Lizzie tirou o pé de cima do maior, vendo-o levantar e rapidamente se afastar. Voltando-se para Lilian, ela tirou a neve de seus cabelos negros e cacheados e colocou a touca te tigre branco em sua cabeça.

— Vê se toma mais cuidado, menina boba, eu não vou estar sempre aqui pra te ajudar. - disse Lizzie.

— O-obrigada... - Lilian disse baixinho e depois abraçou a irmã. - Onde está a sua touca?

— Junto com as suas luvas, em ca... - ela bocejou demoradamente. - ...sa... Vamos entrar na escola, tá começando a nevar mais. Ah, e toma, eu não consigo escrever com elas mesmo... - ela tirou as luvas, deixando suas mãos nuas e entregou para Lilian.

* * *

A ruiva finalmente abriu os olhos, agradecendo por aquilo ter sido apenas um sonho. A primeira coisa que viu foi um lustre pendurado em um teto. Levou sua mão até a cabeça e percebeu que tinha uma especie de curativo em sua testa. Ela respirou fundo e suspirou demoradamente.

— Olá, Bela Adormecida... - a voz de Nick ecoou do outro lado do cômodo. Ela virou a cabeça lentamente, ainda sentindo uma leve dor, e viu o rapaz sentado ao lado de uma lareira com um caderno em mãos. Ela não sabia ao certo como reagir, não sabia se ficava feliz ou com raiva. - Como se sente? - o rapaz completou e largou o caderno no chão, levantando e indo até o sofá que ela estava deitada, sentando-se em um beira.

— Não sei... Como eu deveria me sentir? - ela rebateu.

Nick balançou os ombros e passou a fitá-la, estava aliviado em poder ver seus olhos verdes outra vez. Após um tempo, os olhos da ruiva começaram a passear pelo local, tentando reconhecê-lo.

— Onde estamos? - enfim, ela quebrou o silêncio.

— Na casa do Steven. - ele respondeu calmamente.

A garota olhou em volta outra vez e depois voltou a fitá-lo com uma expressão de confusão:

— E o que estamos fazendo aqui?

— Antes do David sair mundo afora com a minha irmã ele falou que viria para cá, na casa laranja e esperaria por seus subordinados, então eu te trouxe pra cá. Mas eu entrei lá e só tinha uma mensagem em francês, resumindo, ele falou pra onde ia, mas eu não entendi porra nenhuma. - ele manteve o semblante calmo durante toda a sua fala.

Lizzie ponderou por alguns instantes e depois levou suas mãos até o pescoço do rapaz, mas não teve forças suficientes para completar a ação e, em contrapartida, Nick segurou seus pulsos e os prendeu contra o sofá, separados, um do lado da parte correspondente do corpo, como se ele tivesse algemado a garota. Ainda com sua expressão calma, ele a olhou nos olhos e tomou fôlego para continuar:

— Você ainda está tentando me matar? Mesmo depois de eu ter explicado toda a situação, causas, circunstâncias e a porra toda? - ele fez uma pausa e abriu um sorriso. - Você está sendo infantil, sabia? Nós vamos precisar ficar juntos se quisermos sobreviver a mais um inverno.

— Foda-se. - ela sorriu. - Eu mato você quando estiver dormindo. Eu posso estar sendo infantil, mas pelo menos eu não traí a confiança dos meus parceiros.

O rapaz suspirou, mas manteve-se calmo:

— Olha... Eu só menti porque eu sabia que você conseguiria sobreviver fora dos muros da cidade... Você conseguiu matar todos os subordinados do David sozinha e saiu viva depois de perder litros de sangue... Você só está com muita raiva de mim, e eu entendo, mas eu só queria evitar mais mortes...

— Não se pode salvar a todos, Nick...

O jovem assentiu com a cabeça e suspirou novamente, depois voltou a olhá-la:

— Lizzie, eu te amo, eu não te colocaria em uma situação de risco se eu soubesse que você não iria se sair bem dela sozinha... Eu sei que você sente o mesmo, mas só está com raiva...

Os dois mantiveram o olhar por um tempo até o rapaz começar a se aproximar e juntar seus lábios, como um último recurso de reconciliação. Depois ele se afastou e a soltou. Lizzie ficou um tempo sem reação e depois o acertou com um tapa no rosto, porém, para a sua surpresa, o rapaz começou a rir.

— Tá rindo por quê? Você é masoquista por acaso? - ela indagou, um tanto intrigada.

Nick voltou a olhá-la, ainda sorrindo:

— Eu sendo masoquista e você sendo sádica, acho que daria um casal perfeito... - ele fez uma pausa e observou a expressão dela de "cale-se". - E eu sei que esse tapa tem o significado de aceitação do meu pedido de desculpas... Já posso dormir paz agora.

Ela deixou escapar uma leve risada. "Como esse garoto é idiota..." ela disse para si mesma e esfregou os olhos. Nick voltou para o lugar que estava e pegou o caderno do chão, voltando a rabiscá-lo.

— O que você fez enquanto eu dormia? - ela indagou.

— Hum? - ele levantou o olhar, fitando-a, enquanto assimilava a pergunta. - Ah, sim. Eu cauterizei os seus ferimentos... Mas tenta não se esforçar muito.

Lizzie assentiu e sentou-se no sofá, com certa dificuldade, as feridas ainda doíam, mas não como antes. Observando em volta, viu a collie dormindo, enrolada em algumas cobertas, aparentando estar bem à vontade. Notou que alguma coisa estava sendo assada na brasa da lareira, ficou intrigada, mas nada disse. Pegou sua mochila do chão e subiu as escadas, sem a mínima pressa.

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