A filha de Gaia

A esposa fugitiva


Era uma bela noite, mas para a jovem de cabelo castanho sem franja com o comprimento até a cintura, e olhos verde-água era muito mais do que isso. Vestindo uma blusa roxa de mangas laterais, saia comprida lilás em degradê para um roxo escuro como a tempestade e transparente, um colar de madrepérola com cristal roxo e botas roxas com detalhes em madrepérola, a jovem sorria satisfeita com o que via no espelho, mesmo parecendo mais roupas que uma humana usaria ao invés de uma deusa. Cymopoleia adorava essa forma, parecia mais nova, jovial e indefesa e estava mais próximo do que gostava. Sempre odiara adornos chamativos e agora iria dar adeus a tudo isso.

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— Cymo, está pronta? – Perguntou uma voz masculina no quarto. Era um rapaz com pele cor de oliva, cabelo preto preso em um rabo de cavalo, olhos como os dela e vestido de branco.

— Desde que me casei, Tritão. Está tudo acertado?

— Mas você não mudou mesmo nesses milênios. Está tudo pronto, após todos esses séculos de visitas furtivas e diálogo, eu consegui.

— Ótimo. Seguirei daqui em diante.

— Eu fiz o trabalho todo, eu te acompanho.

— Não seja imprudente. Se te apanharem, você, o herdeiro de Atlântida, terá que prestar contas com o pai. Só de vir até aqui já é um risco.

— Estou ciente disso, irmãzinha. Eu quero mostrar a ele que sou bom o bastante para assumir Atlântida, mas não consigo ver minha irmãzinha sofrer mais.

— Você não é bom o bastante, você é melhor que ele. – Disse o abraçando. – Eu mal acredito que finalmente vou sair dessa prisão e tudo graças a você.

— Vamos, já é hora.

Os dois saíram da casa, esgueirando-se pelas sombras. Não levaram nada, mas isso não seria problema. No mar, nadaram rapidamente, não se esquecendo de usar as sombras para proteção e evitar criaturas. Como filhos de Poseidon e Anfitrite, podiam cruzar rapidamente os oceanos, não tão rápido quanto Tritão gostaria, mas teve que assumir sua forma humana, que era pouco vista, para não levantar suspeitas. Não demorou para a água ficar mais fria, indicando que estavam chegando ao seu destino.

Algum tempo depois, ao sentirem a temperatura cair mais ainda, Cymopoleia parou abruptamente, puxando o irmão pela mão. Ao questioná-la, a garota somente deu um grande sorriso e apontou para a superfície. Vários icebergs indicavam que estavam próximos ao destino, eles não eram tão intimidadores na superfície quanto debaixo d’água, o tamanho deles faria qualquer um tremer, mas não os dois irmãos.

— Parecem estrelas! – Disse rindo.

— Estrelas enormes e intimidadoras.

— E magníficas! Um céu de icebergs!

— Só que esse céu é a linha entre o mar e a superfície.

— Deixa de ser chato!

Tritão riu e bagunçou o cabelo da irmã, que praguejou e teve que arrumar tudo de novo. Das três irmãs que ele tinha, Cymopoleia era a mais gostava. Benthesikyme, a deusa das ondas, era a mais velha das três, sempre a achara irritante e feminina demais a ponto de só ouvir falar em casamento, vestidos e como poderia tornar as ondas mais suaves. Rhode, a do meio, era a mais bela e majestosa e tinha uma ilha só para ela, não conseguia encontrar nenhum defeito, por mais que tentasse, nem mesmo Helios, depois de casado com ela, conseguiu encontrar algum e a única vez que a viu para baixo foi quando o antigo deus do sol desapareceu. Cymopoleia era diferente das irmãs, desde criança temia seu poder e sua personalidade impulsiva não a ajudava. Sempre que ficava brava causava uma tempestade sem ao menos entender, por isso se trancava no quarto, até que Tritão resolveu tirá-la de lá para explorar o mar. Foram dias de risos, pegadinhas e até mesmo alguns incidentes, mas foi graças e ele que ela aprendeu a controlar seu poder. Isso foi antes de ser obrigada a se casar, o que causou uma enorme tempestade e levou a Poseidon a não só restringir seu poder como afastá-la da família, mas isso não impedia o herdeiro de visitá-la. Por séculos viu sua irmã sofrer, nunca se acostumou com o marido, odiava seu pai e seus doces sorrisos se tornaram frios e adquiriu uma grande vontade de ser temida.

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— Qual é o caminho?

— É só me seguir, irmãzinha.

A mulher seguiu o irmão até as profundezas do oceano. Nadaram até tudo ficar escuro, passaram pelos peixes das profundezas e depois por uma entrada. Um jogo de luz e sombra se formou através bolhas brilhantes e escuras assim que passaram pela entrada, os impedindo de ver algo. Continuaram de olhos fechados e mãos dadas até sentirem emergir em uma superfície.

Ao abrirem os olhos, os dois irmãos se viram em um lago que dava para uma terra inteiramente feita de gelo com lagos de focas em ebulição, espíritos de pessoas, animais, plantas e até rios e pedras estavam espalhados pelo local. Sem mais delongas, saíram do lago.

— O Adlivun tem três residências. – Explicou o mais velho. – Aquela é a casa de Pana, para onde esses espíritos vão para serem purificados, normalmente são trazidos por sua esposa, Pinga, uma das Três Grandes Inuites. Aquele castelo mais ao norte é o de Tornasuk, o senhor deste lugar, outro dos Três Grandes Inuites. E aquela torre faz parte de outro castelo, é o nosso destino.

— Esse não é só o submundo, mas a morada dos Três Grandes Inuites!

— Na verdade, só de dois deles. Pinga mora no Quidlivun, é para onde as almas vão depois de purificadas para ficar por lar ou reencarnar. Não dura mais que três anos.

— Você visitou este lugar com muita frequência.

— Como eu disse, irmãzinha: foram séculos de negociação.

Eles andaram em direção à torre. Como eram deuses, podiam se mover mais rápido que humanos e não demoraria uma eternidade para chegar. Ao chegarem, viram que a torre era feita de madrepérola e gelo e uma ponte de gelo levava até o portão, pois a torre estava cercada por um enorme lago de água gelada. Tritão indicou que deveriam entrar no lago ao invés de atravessarem a ponte.

Ao mergulharem, além de Tritão transformar suas pernas em uma cauda verde e de sua pele voltar a ficar verde também, Cymopoleia notou que a torre fazia parte de um enorme castelo submarino feito de coral, conchas, madrepérola e gelo.

— Aquela torre é somente para visitantes incapazes de respirar debaixo d’água. – Explicou Tritão. – Este lago parece ser fechado pelas rochas, mas ouvi dizer que há túneis secretos que somente Sedna conhece.

— Visitantes da superfície?

— Nenhum deus ou semideus respira debaixo d’água sem que seja filho de um deus associado com a água. Sedna precisa de um salão apropriado para recebê-los.

Tritão abriu a porta do castelo e entrou juntamente com sua irmã. Entraram no grande salão onde havia um trono de pedra e coral forjado, cravejado de joias marinhas e nele estava uma mulher de pele azul acinzentada, olhos do mais puro violeta, longos cabelos de cor azul petróleo escuro que outrora foram negros, e cauda verde petróleo com o rabo azul marinho. Seus lábios eram azuis assim como sua sombra.

Ela usava um top verde petróleo ornamentado em madrepérola, um pano azul marinho como se fosse uma saia, braceletes de madrepérola sendo que os dos antebraços possuíam escamas, um cinto verde petróleo e madrepérola e um colar azul marinho e madrepérola.

O que mais chamou a atenção de Cymopoleia não foram os ornamentos, as cores marinhas, a pose régia ou os olhos frios de um violeta boreal, foram os dedos, ou melhor, a falta deles, como se tivessem sido cortados. Não tinha como confundir, era realmente Sedna.

— Senhora Sedna, trouxe minha irmã como combinado. – Viu Tritão fazer uma reverência e um sinal para que fizesse também. Cymopoleia não teve outra escolha se não reverenciá-la.

— Não parece com uma princesa.

— Não gosto muito de ornamentos, prefiro roupas mais simples.

— Como as de uma donzela. Onde estão suas malas?

— Não trouxe nada além das roupas do corpo.

— Estamos acertados? – Perguntou o único homem no salão.

— Suba aquelas escadas até encontrar um andar com mais escadas para as torres, pode escolher qualquer uma delas e o quarto que quiser, menos o meu e o da minha Sienna. Trabalhará para mim de agora em diante.

— Trabalhar?!

— Não pense que vou aceitá-la para morar aqui pelas minhas custas. Sou uma deusa ocupada e preciso se alguém que organize algumas coisas para mim, inclusive minha agenda. Vou precisar que retire o lodo do meu cabelo também, a menos que queira me doar cinco pares de dedos.

— Me esse não...!

— Ela aceita, senhora. Vamos, Cymo, vamos escolher seu quarto.

O mais velho puxou a mais nova antes que ela retrucasse qualquer coisa. Subiu as escadas indicadas até parar no corredor cheio de portas e várias escadarias espalhadas.

— Quer colocar tudo a perder?! Não foi fácil convencer Sedna!

— Mas eu não vou...!

— O que você esperava, Cymo?! Que ela se apiedasse e te deixasse ficar sem pedir nada em troca?! Sedna não negocia e quando negocia, cria seus próprios acordos! E mesmo assim só negocia com quem realmente vale negociar. Ela vai te proteger, irmãzinha, só precisa fazer o que ela pedir.

— Mas eu não tenho ideia de quanto posso ser útil a ela!

— Sedna é uma dos Três Grandes da sua mitologia, com certeza é muito ocupada. Vamos escolher uma torre, agora?

Cymopoleia deu-se por derrotada e escolheu uma das escadas. Subiu até o topo da torre e abriu a porta do quarto. Era um quarto simples com o básico do básico feito para hóspedes. Havia um armário decorado com conchas, uma enorme ostra, maior que qualquer pessoa na Terra, que servia de cama com lençóis magenta, uma escrivaninha de coral decorada com conchas e a porta para o banheiro.

— É diferente do que vemos em Atlântida. – Comentou ele.

— Sim, mas amei a cama! É bem espaçosa e diferente.

— Fico feliz que tenha gostado. Olhe, a vista dá para os jardins de algas do palácio!

— Não sabia que existia um.

— Nem eu. Olhe quantas anêmonas e algas de cores diferentes. Como será que sobrevivem a este frio?

— Eu não sei. Vai levar a ideia para Atlântida, maninho?

— Bem que a mãe iria gostar. É uma pena, você não iria poder vê-lo.

— Então, isso é um adeus.

— Sim. Adeus, minha irmã.

— Adeus, meu querido irmão. Se não fosse pela minha sorte, te ajudaria a arrumar outra esposa, ou então eu mesma me tornaria sua esposa.

— Mas você é a minha irmã.

— Incesto já está enraizado em nossa família.

— Eu sei, mas não sei se quero outra esposa, digo, eu mal me lembro da anterior e minha filha Palas está morta.

— Precisa parar de se prender ao passado e pensar no futuro, como eu irei fazer de agora em diante. Este será meu recomeço, espero que encontre o seu.

— Talvez em outro século.

Tritão saiu do quarto deixando sua irmã sozinha. Cymopoleia não acreditava que finalmente estava livre, mas essa liberdade seria paga com serviços.