Sombras

Sombras


A nossa chegada estava prevista para a semana seguinte. O pai recebera uma carta, dias atrás, garantindo que poderíamos retornar ao schloss solitário sem sobressaltos; a condessa Karnstein morrera, de vez. Antes, porém, insistiu em saber se os sonhos que tanto me assustavam haviam findado. Sim, foi a minha resposta. Mas não era de todo verdade; eu ainda sonhava, não havia uma única noite em que a minha mente permanecesse inerte. Apenas o temor dera lugar a uma atração fatal pelas trevas, que me recordava a cada instante a necessidade de retornar.

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***

[Uma semana depois]

O schloss permanecia adormecido, no seu triste isolamento, mantendo porém a dignidade e a imponência de que me recordava, aquando da nossa partida. O desleixo dos criados refletia-se numas quantas teias de aranha, emoldurando os salões mais esquecidos pelo tempo. A solidão era nostálgica.

A nova governanta, de que ainda não sabia o nome, guiou-me até ao meu quarto, terminando de o arrumar na minha presença, oferecendo-me ajuda para despir a roupa que usara na viagem e acomodando-me no leito. Ela disse que ficaria ali comigo, toda a noite, e todas as noites daí em diante. Trancaria a porta por dentro, explicou-me, para que ninguém entrasse e para que ninguém saísse.

―Pode deixar-me agora. Irei descansar ― disse-lhe.

Ela sentou-se numa poltrona perto de mim, acariciando-me os cabelos e garantindo-me que estava segura agora, que nenhum pesadelo me importunaria. Apesar da idade, mantinha uns olhos vivos, negros e com reflexos de rubi. Pousara o olhar atento na minha face e parecia estudá-la criteriosamente. Senti-me gradativamente mais fraca, até não puder suster as pálpebras que me pesavam como chumbo, e cobardemente me entregavam à escuridão.

Penso ter acordado minutos depois com algo frio arranhando-me o pescoço de leve. Não ousei abrir os olhos, mas fingi trazer inconscientemente as mãos ao peito. Delimitei lentamente o contorno de um fio com um pendente oval, mas tornei a adormecer antes de conseguir retirá-lo ou determinar o que era ao certo.

Então, ela apareceu. Em sonhos, certamente, mas a sua presença não se tornara menos reconfortante na forma de quimera. Acomodara-se ao meu lado, como outrora fizera a governanta, e beijava-me com veneração. A atração voltara, asas desenvolviam-se no meu corpo, rasgando carne à sua expansão, e uma sensação de liberdade invadiu-me. Contudo, toda eu pesava, não me sendo possível voar. No peito, uma rocha prendia-me à terra, submetendo-me aos vermes, tornando a imagem de Carmilla progressivamente mais fraca, até quase desaparecer. O amuleto que me dera a governanta durante o sono estava a repeli-la de alguma forma.

―Vens salvar-me? ― perguntei à figura que se desvanecia à minha frente.

―Não venho salvar-te ― respondeu. ― Só quero assegurar-me de que não sofres.

―E porquê? ― questionei-a.

―Porque te amo ― declarou com simplicidade, deixando algum tempo os lábios pousados sobre a minha testa.

Revivi as carícias do primeiro sonho, com os arrepios que a aspereza daqueles lábios me proporcionavam. Não era, porém, mais a menina de seis anos que via naquela estranha criatura a silhueta de uma figura maternal perdida. Era agora a mulher de vinte anos que via naquele toque a complexidade de um desejo carnal. Karnstein não mudara; talvez com o tempo tivesse aprendido a conservar apenas a sua essência, poupando ao corpo o peso de tudo aquilo que lhe não pertencia realmente.

―Tu és especial ― desabafou.

―Como podes saber? ― interpelei-a.

Ela sorriu: ― Foste a única que me fez hesitar.

―Antes de quê?

―De te levar ― concluiu, enlaçando os braços em torno do meu corpo.

Num ímpeto, ergui-me, arrancando o medalhão que me colocara a governanta; eu estava acordada. Uma sombra ergueu-se na minha frente tomando a forma de Carmilla.

―Matar-me? ― confrontei-a, agora segura de que me encontrava desperta.

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Ela tornou a esboçar um sorriso, como se agradecendo o facto de eu me ter visto livre do medalhão por ela; e, na ânsia de um amor correspondido, deitou-se junto a mim, acomodando-me no seu peito.

―Não, eu não me culparia por te matar. As pessoas são mais felizes depois de partirem.

―Então porque te culpas?

―Porque sou egoísta. Traidora. Porque quero levar de ti algo que não me pertence.

―Não és isso ― assegurei-lhe, estreitando-a contra mim, como se procurasse sentir, por debaixo daquela camada de gelo, o quente bater de um coração humano.

―Olha para mim ―exigiu. ― Esta sou eu. Esta forma, esta voz, este amor. Tudo o resto são apenas sombras da minha existência, e tu também não gostarias de ser relembrada apenas por uma sombra do que realmente foste, não é?

Concordei, assustada com a sua súbita mudança de humor.

Carmilla tornou a sorrir, pela terceira vez naquela noite, pressionando os lábios semiabertos contra os meus, que receberam o beijo com ansiedade.

―Até gostava que tivesse funcionado! ― riu, antes de tornar a unir as nossas bocas, para logo a seguir desaparecer numa neblina cinza.

A governanta despertou nesse instante, com um ataque de tosse seca que a fez vomitar uma mistura ensanguentada no soalho. Ainda se recuperava, quando a figura de um gato se ergueu diante de mim, atacando-me ferozmente, até me fazer perder consciência. Não resisti. Morreria dentro de três dias. Porém, no tempo que me restasse, idealizaria a minha amada na forma em que esta se me apresentara, e não sob a forma de uma sombra felina de erros passados.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.