Doce Outono

Capítulo 04


Doce Outono

Kaline Bogard

Capítulo 04

O celular despertou e tirou Daiki de seu sono com a dificuldade de sempre. E o bom humor inexistente de sempre. Se tinha algo que odiava, era acordar cedo.

A contragosto, sentou-se no colchão. Uma breve espiada para o lado trouxe uma avalanche de lembranças do dia anterior a sua mente. O futon com o lençol dobrado em cima. Sim, agora dividia a quitinete com outra pessoa, diga-se de passagem.

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Olhou ao redor e não viu mais nenhum sinal de que Kagami estava por ali. O cara acordara e saíra sem fazer barulho?! Ou ele era um verdadeiro ninja. Ou um felino! Ou o sono de Daiki era verdadeiramente pesado. Na pior hipótese, as três opções estavam corretas.

Levantou-se com preguiça. Como ia de carro, podia se dar ao luxo de sair em cima da hora, por isso programava o celular para o limite do aceitável e ao levantar-se fazia tudo do seu jeito preguiçoso de ser.

Passou pelo banheiro e não encontrou nada fora do lugar. Nada indicava a presença de outro morador. Nem sabonete ou escova de dentes. Nada. Se não fosse o futon no chão, Daiki diria que sonhara...

Na sua rotina de jovem solteiro que morava sozinho não estava incluso café da manhã tradicional japonês. Recolheu a chave jogada pelo vão da porta, outro sinal da presença de Kagami. Pegou suas coisas e saiu de casa com intenção de comprar algo na padaria próxima.

Antes, passou pela casa do dono do conjunto de quitinetes. O velho senhor morava no primeiro andar. Demorou um pouco para atender o chamado de Daiki, visto que a idade avançada prejudicara seus movimentos, ele andava devagar. Também tinha certa dificuldade auditiva. Mas era um senhor de tão boa vontade que todos acabavam respeitando sua condição debilitada.

Daiki avisou que tinha outro rapaz dividindo o pequeno apartamento consigo, por isso precisava de nova cópia da chave. Era contra as regras replicá-la por conta própria e o cumprimento do estipulado tinha mais a ver com respeito, já que enganar o velhinho não era difícil. Daiki possuía muitos defeitos, mas preferia fazer o certo naquele caso.

Só então tomou o rumo da faculdade, comprando melão pão e chá Oolong no caminho.

Aquele foi um dos dias tensos. Tinha provas nos dois tempos da manhã. Um deles dividia com Satsuki, mas mal tiveram tempo de conversar. Apenas na hora do almoço. Como sempre, a garota tagarelou por dez pessoas e Daiki apenas ouviu. Não quis contar sobre a mudança em sua vida, pelo menos até que tudo estivesse mais estável.

O período da tarde dividiu-se nos clubes de estudos. Era cansativo e trabalhoso, e um lugar um tanto frio, diferente do clube no colegial. Os membros estavam fixados nas futuras carreiras e viam uns aos outros como degraus que contribuíam para a ascensão. Estudavam juntos, mas não havia amizade. Eram pessoas com um interesse em comum e nada mais.

A tarde se encerrava quando as atividades se finalizaram naquele dia.

Daiki estava exausto e satisfeito consigo mesmo. Conseguira se focar no objetivo e dar tudo de si para realizá-lo. Aprendera a lição no passado: nunca se superestime e acredite que chegou ao topo e nada pode tirá-lo de lá.

Lição devidamente ensinada por certo rapaz de cabelos ruivos e força de vontade ferrenha com quem, por um capricho do destino, dividia o mesmo teto desde o dia anterior.

Numa mudança de rotina, mesmo sentindo-se cansado, não foi para a quitinete. Foi para a casa dos pais. Precisava ver alguns lençóis.

Com um estado de espírito bem animado, estacionou na frente de casa. Fazia um bom tempo que não ia ali, envolvido no dia a dia exaustivo da nova vida. Torceu para que a mãe estivesse em casa. Aquela mulher sempre se envolvia em trabalhos voluntários com colônias gaijin, ensinando japonês para recém chegados. Os horários dela eram meio loucos.

— Tadaima — exclamou ao tirar os tênis no genkan.

— Ee?! — a resposta veio falsamente surpresa da cozinha — Quem tá aí?! Será que meu filho é mesmo real e não uma ilusão?

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Daiki girou os olhos diante do tom irônico. Sua mãe tinha um lado sarcástico bem inconveniente. Mas ele não ficava atrás.

— Chegou o rei do parquinho! — respondeu calçando o surippa e deixando a mochila no chão da sala de qualquer jeito. Seguiu para a direção da voz, flagrando sua mãe a cortar carne em cubos. Parecia se antecipar no preparo da janta.

— Rei do parquinho? Puff... nem rei da caixa de areia — ela riu e ganhou um estreitar de olhos do filho. Ele observou a figura materna, uma mulher alta para os padrões japoneses, de cabelo muito negro, cujos fios grossos lhe chegavam ao meio das costas. Deu-se conta de que sentira falta dela.

— Eu estou muito bem, obrigado por perguntar, e você? — ele indagou em um tom um tanto seco. Não estava ofendido de verdade, era o jeito de ambos interagir. A semelhança de gênios criava faíscas às vezes.

— Corta o papo furado. Você só lembra de casa quando precisa de algo... — Kaoru parou de picar a carne e virou-se para o rapaz, limpando as mãos em um pano de prato enquanto se apoiava no balcão.

Daiki sentou-se na ilha de mármore e cruzou os braços sobre o tampo rajado.

— Preciso de lençóis.

— Jeez! I knew it! — ela exclamou no péssimo habito de usar expressões nativas da pessoa que ensinava no momento. Então caminhou até sentar-se ao lado do rapaz e segurou-lhe as mãos — Como você está sobrevivendo? Você parece mais magro! Aposto que tá se sustentando a base de pão e chá, não é? Mandar um Line de vez em quando não vai te arrancar a mão, sabia, moleque?

— Heei, hei — Daiki já estava acostumado com o sermão. Coisa de mãe, talvez.

— Seus lençóis estão ruins?

— Não são pra mim. É pro futon que tá sobrando... — franziu as sobrancelhas diante do olhar desconfiado que recebeu. Tratou de se justificar — Não tô levando nenhuma garota pra casa, mulher. É pra um amigo que vai ficar lá até o fim da faculdade. Se tiver uma toalha também...

— Ah... — ela relaxou — Quero que foque nos estudos, não em ficar de saliência por aí. Cansei de falar isso.

— E eu cansei de ouvir.

Kaoru ignorou a alfinetada, como bem fazia quando lhe era conveniente.

— Claro que temos lençóis e toalhas. Com você fora de casa sobra tudo — ela provocou, ganhando apenas um rolar de olhos em troca — Vai ficar pra jantar com a gente?

— Não dessa vez — descartou a oferta da mãe. Ainda que sentisse falta do temperinho delicioso que ela colocava nos pratos, queria estar em casa na hora que Kagami voltasse. Ele ainda não tinha as próprias chaves. Não seria legal deixá-lo esperando, sem essa liberdade — Outro dia venho com calma.

— Sure. Vai demorar mais dois meses antes de aparecer aqui de novo. Que filho desnaturado fui parir!

Daiki girou os olhos diante do drama. Não era nada que já não estivesse acostumado. Confessava que de vez em quando batia saudades da cumplicidade que tinha com a mãe e do convívio com o pai. Na quitinete era tão silencioso! Talvez isso também o impulsionara a oferecer abrigo para Kagami. Com o outro rapaz em casa não precisava estar sozinho, dia após dia, tendo somente seus pensamentos como companhia. Deu-se conta do quão solitário sentira-se sem perceber.

Ao ajudar Kagami ajudara um pouco a si mesmo.

D&T

No fim das contas, ao partir do antigo lar, Daiki levava não apenas um jogo de lençóis novos e duas toalhas, mas um par de surippa velho que nem lembrava de ter deixado em casa, e também um bom estoque de guloseimas e produtos de higiene. Kaoru conhecia bem o filho que tinha, nunca o deixava sair de mãos abanando. A família Aomine não tinha o habito de estocar coisas até então. Tal prática mudara com o jovem fora de casa. Ela não comprava pra si e o marido, comprava para ter algo a oferecer sempre que Daiki ia visitá-los.

A intenção de chegar em casa antes de Kagami não deu certo. Ficou um tanto surpreso ao entrar no estacionamento e encontrá-lo sentado na vaga, com a mochila ao lado e uma sacola com o logotipo de um restaurante estampado.

— O que houve? — estranhou o fato — Algum problema?

— Não — Kagami levantou-se — Troquei meio período de hoje por meio período na minha folga. Vou aproveitar pra limpar o pó do quarto.

— Aa — Daiki compreendeu o ponto. Pegou as coisas que sua mãe lhe dera e seguiu em direção às escadas — Pedi pro síndico fazer uma cópia extra da chave pra você. Vamos passar pra pegar e te apresentar.

— Hn.

Como de praxe, o proprietário Toriyama demorou um bocado para atendê-los. Mas apertou as mãos de Kagami com tanto entusiasmo e desejou boa estadia com tanta sinceridade que era impossível ficar chateado com a longa espera.

— Que senhor simpático! — Kagami exclamou ao se afastarem.

— Nem dá pra atrasar o aluguel assim — Daiki deu de ombros. Em troca recebeu um olhar desconfiado — Eu não atraso o aluguel, Baka.

O outro não respondeu.

O silêncio os acompanhou até a porta da quitinete, que Daiki abriu com a própria chave, ainda que Kagami já tivesse a dele. Então pareceu lembrar-se de algo e fisgou o par de surippa que trouxera consigo.

— Use esses — Kagami lançou-lhe um olhar estranho, porém acabou pegando. Tão logo entrou, por puro costume, Daiki se viu exclamando — Tadaima.

Nunca pensou que uma coisinha simples como aquela ia lhe fazer tão agradavelmente feliz. Morando sozinho não tinha porque anunciar sua chegada para o ar.

— Ta... tadaima — a palavra não veio fácil na vez de Kagami.

Daiki notou aquilo, contudo não disse nada. Imaginava que morar na rua crivara marcas profundas.

Logo Daiki deixava os mantimentos sobre o forno micro-ondas e sobre a pia. Também deixou alguma coisa no banheiro: os produtos de higiene. Fez tudo rápido e de qualquer jeito para poder esticar-se no colchão, onde ficou passando os olhos por um dos livros. Teria prova no dia seguinte e queria relembrar a matéria. Volta e meia observava Kagami, envolvido em ajeitar o quarto que usaria. O rapaz encontrara, para choque de Aomine, produtos de limpeza no armarinho do banheiro. Ele nem lembrava mais de ter aquilo em casa!

Demorou um bom tempo, e Kagami ficou tão sujo que dava pena, mas o cheiro de limpeza compensava tudo. Daquela vez, não aceitou simplesmente devolver o futon para o lugar. Acabou indo batê-lo com mais cuidado lá fora.

Só então, ao voltar para a quitinete e colocar a ultima peça no quarto, deu-se por satisfeito. Aceitou sem surpresa quando Aomine apontou uma das sacolas onde tinha as peças que trouxera de casa: lençóis e toalha.

Daiki observou o ruivo sumir pela escadinha mais uma vez. Logo ouviu sons impossíveis de se identificar, imaginando rápido que ele estava tirando as coisas da mochila e ajeitando tudo. Havia uma mini cômoda, semelhante a de três gavetas de Daiki, com a diferença de que era embutida na parede para economizar espaço.

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Ao terminar tudo, Kagami desceu com um pano de chão que não tinha cor, de tão imundo. Mas sua figura parecia bem satisfeita.

— Ficou muito bom.

Daiki desviou os olhos do livro e riu do que viu.

— Cacete!! Você tá mais preto do que eu!

— Claro! Tinha um caralho de pó lá em cima! Dava pra fundar um deserto novo...

— Ninguém pode me julgar — Daiki enfiou o dedinho na orelha e coçou, mostrando descaso.

Kagami estreitou os olhos. A palavra ‘folgado’ veio a ponta da língua e ali ficou. Não se sentiu no direito de bronquear mais por causa disso. Não gostava da sensação, mas era impossível evitar o sentimento de estar em débito.

Ao invés de implicar, acabou perguntando:

— Vai usar o banheiro?

Daiki ergueu as sobrancelhas.

— Agora não. Te dou permissão para ir na frente.

— OE!

— Não fique pedindo as coisas, Bakagami, que porra. É desagradável — virou-se no colchão, dando as costas para o outro.

Taiga até pensou em dar uma resposta atravessada, embora mudasse de idéia rápido. Estavam levando as coisas com muito mais tranquilidade do que sequer poderia imaginar. Não rolara nenhum atrito, tentaria preservar do jeito que estava.

Acabou indo tomar banho na frente. Não demorou muito, de tão acostumado que estava com as chuveiradas no vestiário da faculdade. A banheira pareceu seduzi-lo a uma imersão, convite silencioso a que resistiu como um bravo. Secretamente se prometeu aquilo outro dia.

Quando saiu, vestia uma roupa confortável que tirara do fundo da mochila e tão amassada que desafiava o possível. Como era membro do time da faculdade, poderia usar um dos armários do vestiário, lugar onde deixava algumas peças sobressalentes de roupas, pois não caberia tudo na mochila, evidentemente.

Daiki aproveitou para ir tomar o próprio banho. Os planos eram de lavar-se e cair na cama. O cansaço pelos estudos o derrotava fácil. Não queria nem perder tempo assistindo algum programa na televisão, como às vezes fazia.

Então teve a primeira surpresa agradável da noite. Notou a saboneteira azul simplória que estava na cantoneira. Aquilo não era seu, um sinal de que o novo morador da quitinete começava a ficar a vontade para deixar uma marca com as suas coisas.

Ao sair do banho foi surpreendido a segunda vez, colhido em cheio pelo apetitoso cheiro de comida que preenchia o ar. Seu estomago reclamou e ele afastou da mente a decisão de ir direto pra cama. Parou no estreito corredor e observou enquanto Kagami mexia em uma panela, de cócoras para alcançar o pequeno fogão. Os objetos antes espalhados pelo chão agora estavam empilhados em um montinho no canto.

— Você só tem um prato, uma colher, um garfo, um par de hashi — foi dizendo com certa diversão. Era um milagre encontrar a dupla de panelas, uma das quais usava no momento.

— Estilo solteiro de bem com a vida — Daiki agachou-se numa pose idêntica, embora de frente para o outro, com o fogão entre eles — Eu fico com o prato e o garfo. Você usa a panela e o hashi. Isso tá cheirando bem pra caralho!

Kagami sorriu cheio de si, dando a impressão de estufar um pouco. Uma sombra pálida do garoto que Daiki conheceu no colegial, orgulhoso e impávido. Um tigre indomado.

Chocado, deu-se conta de que também sentira falta daquilo.

continua...