Cosmos

Capítulo VI: Madara


Cosmos

Capítulo VI

MADARA

⊱❖⊰

ANTES

Hashirama me olhou atravessado, do canto oposto do cômodo onde estávamos, minhas costas apoiadas contra a parede. Uma gota de suor escorreu pelo seu rosto. Ele se encolheu quando a mulher, do outro lado da porta que nos separava, exprimiu outro bramido sofrido, mais estrangulado do que o anterior.

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Bufei pelo nariz; estava impaciente e aquilo estava demorando muito mais do que havíamos imaginado. A terceira figura a ocupar aquele aposento era um homem ainda mais inquieto do que eu e Hashirama juntos. Sua agitação, na verdade, era um tanto enervante.

De braços cruzados e incomodados a cada gemido de dor lancinante, nós o observávamos de esguelha cruzar o mesmo espaço várias e várias vezes, seus gestos estavam desnorteados e ele suava abundantemente pelo nervosismo nas suas vestimentas elegantes.

— Tsc, como demora — ousei expressar a minha frustração pela primeira vez em voz alta e recebi outro olhar atravessado de Hashirama; dei de ombros.

— Naturalmente esses procedimentos são demorados mesmo — ele disse entre dentes, depois sorriu com gentileza para o terceiro homem a fim de corrigir a minha falta de modos, ao mesmo tempo em que aproveitou para me dar outro olhar de censura.

Hashirama desencostou da parede e veio até mim com uma expressão mais abrandada. Apoiou sua mão no meu ombro e se inclinou para sussurrar:

— O homem está prestes a sofrer de um ataque de nervos, tenha um pouco mais de sensibilidade, por favor.

Bufei mais uma vez para enfatizar o quanto ansiava que aquilo terminasse o mais depressa possível. Éramos intrusos inoportunos na residência de um dos comerciantes que resolveu se estabelecer em Konoha enquanto sua esposa em trabalho de parto dava berros intermitentes no aposento ao lado.

— Tenho certeza de que tudo vai dar certo, não é? Koyo-chan é muito habilidosa, pelo que ouvi dizer — ele deu tapinhas de camaradagem nas minhas costas e foi a minha vez de censurá-lo com um único olhar terrível.

Eu tive certeza de que me arrependeria de ter ido até ali no momento em que coloquei os pés naquela casa. Maldita hora em que deixei que Hashirama me convencesse de que tínhamos que comunicar Koyo das “grandes boas novas” imediatamente.

O homem se virou para nós com uma expressão atormentada num rosto magro e lívido como papel. Ele encolhia os ombros a cada grito, como se se sentisse o único responsável pelo sofrimento de sua esposa no quarto ao lado. Por fim, a mulher deu um grito longo e assustador por vários segundos ininterruptos, até que caiu o silêncio em ambos os cômodos.

Nós nos entreolhamos com cautela enquanto uma expectativa quase sufocante crescia. Por fim, ouvimos o choro fino e inconfundível de um bebê. O semblante de Hashirama se iluminou tal como o do homem. Limitei-me a outro bufar.

— Parabéns, parabéns! — repetia ele para o homem, que por pouco não chorava de alívio.

A porta do quarto se abriu com um baque, e Koyo emergiu na soleira com uma expressão tão satisfeita quanto a do homem e as mangas do quimono dobradas até os cotovelos. Ela secou o suor na têmpora e sorriu para mim antes de dirigir seu sorriso para o homem:

— É um menino perfeito e saudável — anunciou. — Sua esposa o aguarda para que possa conhecê-lo. — E se afastou da porta para dar passagem para ele.

— Muito obrigado! — agradeceu com uma mesura desajeitada antes de disparar para dentro do quarto e fechar a porta para encontrar sua privacidade.

— Hashirama-san, Madara-kun — ela nos cumprimentou com uma mesura e outro sorriso. — Por que estão aqui?

Hashirama passou o braço pela minha nuca e me arrastou para mais perto, ignorando meu rosnado de protesto.

— Nós temos algo muito importante para dizer a você, Koyo-chan! — anunciou assim que eu consegui me afastar, fechando a cara.

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Minutos depois, nós três deixamos a residência do tal comerciante e sua família, e caminhamos pelas ruas tranquilas da vila. Hashirama ia à frente e Koyo e eu seguíamos logo atrás, embora ela exalasse muito mais entusiasmo do que eu jamais seria capaz.

Contentava-me com tão pouco. E tive de me acostumar a isso nas últimas semanas: espiava sua expressão com o máximo de discrição, roubava olhares e os guardava em algum lugar dentro de mim que jamais se perderiam, e ouvia o som de sua voz como se apreciasse as notas suaves de uma flauta doce. Jamais ousaria pedir — ou mesmo esperar — por mais. E ela tampouco dava sinais de querer atravessar aquela zona de conforto que criáramos.

Estávamos bem assim, eu acreditava.

A vila prosperava e crescia vagarosamente, mas mesmo esse lento progresso era tido como um triunfo tanto por mim quanto por Hashirama. Não mencionei a palavra Hokage desde aquele dia na ravina e tampouco ele o fez. Talvez fosse melhor dessa forma, talvez ele fosse mesmo a pessoa certa para liderar a vila. E eu não seria mesquinho ao ponto de me ofender por isso. Hashirama era mesmo a escolha mais razoável.

Mas o que me feria ainda era recordar as palavras raivosas de seu irmão mais novo contra mim e contra o meu clã. Cerrei os dentes quando concluí que eu mesmo deveria encontrar uma forma de lidar com isso, algum dia. Por ora, não me atormentaria com essas questões.

— Como está a Mito-san, Hashirama-san? — A voz de Koyo me trouxe de volta ao presente e bem a tempo de ver ambos trocarem olhares e sorrisos amistosos.

— Está ótima, obrigado por perguntar, Koyo-chan — respondeu à sua tentativa de puxar assunto com evidente contentamento.

— Diga a ela que tornarei a visitá-la a qualquer momento e assim que for possível.

— Eu direi — prometeu com um sorriso largo, que me deixou encucado.

Desde quando Koyo e a esposa de Hashirama eram amigas? E ao ponto de fazerem visitas uma à outra. Franzi o cenho à medida que refletia sobre o modo como tais pormenores me escaparam. É verdade que estive ocupado nas últimas semanas e eu tinha me certificado de que a distância segura que me separava de Koyo continuasse intacta. Mas esse detalhe despercebido me levou a questionar coisas que não deveriam ser questionadas.

Ela estava criando laços na vila, fixando raízes, o que tornava tudo tão mais assustadoramente definitivo para mim. Quanto tempo levaria para...

— Chegamos! — Hashirama anunciou de repente e interrompeu minha linha de raciocínio bem a tempo.

Koyo e eu paramos para olhar o prédio ainda em fase final de acabamento. Um edifício retangular de pedra cujas ripas do telhado ainda se encontravam à mostra; sem dúvida ficaria pronto para ser utilizado em uma ou duas semanas. Essa era a novidade que Hashirama tinha para contar a ela. E foi exatamente o que ele fez a seguir:

— Koyo-chan, isso é para você. Sua própria clínica. Pretendemos expandi-la para um hospital mais adiante e até mesmo já temos algumas pessoas para trabalhar com você. Madara e eu concordamos que seria ótimo se você colocasse seu talento e habilidade integralmente à disposição da vila.

Grunhi por Hashirama ter me incluído nessa história. Sim, eu fizera parte e talvez tivesse sugerido uma ou duas ideias, mas isso não significava que eu quisesse que essa informação fosse tão levianamente mencionada. Olhei duramente para ele, que me ignorou e preferiu se focar na expressão atônita de Koyo.

Voltei meus olhos para ela e percebi que haviam lágrimas não derramadas acumulando-se nas bordas dos seus cílios espessos. Ela as secou num gesto tímido e sorriu delicada.

— Eu nem sei como agradecê-los apropriadamente — murmurou num tom de voz embargado.

Hashirama sorriu de forma ampla por nós dois e Koyo o espelhou, incomensuravelmente agradecida e tocada tanto pelo gesto quanto pelo voto de confiança.

E nem mesmo eu poderia ter previsto a próxima guinada inesperada de nossas vidas quando inconscientemente assegurei que ela poderia refazer sua vida em Konoha de uma forma tão permanente.

⊱❖⊰

Numa noite, depois de ter tido que aturar os anciãos do meu clã e de ter me aborrecido mais do que deveria quando o assunto matrimônio foi trazido à tona outra vez, saí numa caminhada sem rumo pela vila.

O fato de não ter destino fixo em mente e de apenas desejar acalmar meus pensamentos me levou a lugares que eu não estava acostumado a frequentar. A brisa noturna estava fresca, não gélida e as luzes ardentes das lamparinas traçaram meu percurso ao acaso através das ruas avivadas.

Acabei indo parar numa rua apinhada e ruidosa com muitos estabelecimentos, a maioria ainda em horário de funcionamento e voltados para o entretenimento noturno e boêmio. Ouvi o burburinho de conversas misturadas a risos e cacarejos, e regadas a muito sakê.

Desdenhei de um grupo particularmente empolgado que tumultuava a entrada de uma dessas casas enquanto seguia meu caminho, mais amuado do que antes. Ouvi quando um deles mexeu com um transeunte, certamente uma mulher pelas provocações vulgares, e cerrei os dentes pelo ruído excessivo e enervante.

A julgar pelo modo como seu assédio escalou, ela o havia ignorado. Suspirei, decidindo interferir para evitar que ele fosse ainda mais inconveniente e causasse uma confusão com uma civil. Virei o rosto na direção de onde uma discussão acalorada dava os primeiros indícios de surgir e qual não foi o meu espanto quando descobri que a mulher em questão era ninguém menos do que Koyo — reconheceria aquele cabelo longo e vermelho em qualquer lugar.

Ela se afastava na direção oposta agora, mas era seguida de perto pelo homem bêbado, que insistia em tentar chamar sua atenção para abordá-la. Franzi o cenho, desgostoso, e resolvi segui-los, apertando meus passos para interceptá-lo antes que a importunasse ainda mais.

Desviei dos demais transeuntes, não me desculpando quando bati nos ombros de uma ou outra pessoa e recebi ameaças vazias em resposta; estava focado apenas em Koyo e no ébrio imbecil que a seguia. De repente, perdi-os de vista momentaneamente entre a multidão. Desesperei-me só pelo intervalo de uma batida do meu coração, pois meus pés haviam me transportado para o ponto onde os vi pela última vez num piscar de olhos.

Olhei ao meu redor até me deparar com a última coisa que esperava ver: Koyo tinha o homem imobilizado contra a parede de um beco semiescuro. Uma tantō estava pressionada contra a pele da garganta dele, reluzindo na sua mão pálida.

Aproximei-me discretamente bem a tempo de vê-la sibilar suas últimas palavras:

— ...eu perceber que você ou um dos seus amiguinhos tontos tentou me seguir de novo, não serei tão misericordiosa e talvez eu corte uma parte sua que você achará difícil de substituir e a guarde como espólio. Você entendeu?!

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Ela pressionou o homem com mais força contra a parede, arrancando dele um gemido de protesto e um fraco acenar da cabeça.

— Sábia decisão — murmurou antes de soltá-lo, afastando-se num pulo com a tantō em mãos e em riste diante do corpo, só para o caso de ele mudar de ideia.

O homem se virou com um praguejo para a entrada do beco só para dar de cara comigo. Passado o susto de havê-la perdido de vista, só restava uma fúria insaciável dentro de mim, alimentando meu Sharingan.

Quis sorrir quando vi o medo na sua expressão, o tremor nos seus gestos. Infelizmente, Koyo também me notou nesse momento.

— Madara-kun?

Fulminei o homem pálido com ainda mais ardor, até o ponto em que poderia tê-lo reduzido a uma pilha de cinzas se assim desejasse. Ele gaguejou um pedido de desculpas para Koyo e desviou de mim para sair correndo do beco. Uma parte de mim se orgulhou em vê-lo molhar a parte da frente da calça antes que desaparecesse do meu campo de visão.

— Madara-kun, o que está fazendo aqui?

Virei os olhos para Koyo a tempo de vê-la embainhar a tantō e escondê-la no meio de suas vestes. E falando em vestimentas... Só agora eu me permitia olhá-la com mais atenção. Nunca a tinha visto vestir um quimono tão bonito antes e até mesmo o modo como ela usava o cabelo estava diferente, mais elaborado. Ela estava... linda.

Fechei os olhos para desativar meu Sharingan e aproveitei a deixa para clarear meus pensamentos. Quando voltei a fitá-la, havia um meio sorriso nos seus lábios rosados.

— Eu é que deveria lhe perguntar — murmurei macambúzio e Koyo riu delicadamente.

— Gosto de sair à noite para me distrair um pouco, só isso — comentou, alisando uma mecha de cabelo impecavelmente vermelho.

— Isso sempre acontece? — perguntei sombrio, referindo-me ao que acabara de acontecer no beco.

Koyo assentiu, e não sei ao certo o que mais me surpreendia: ela haver concordado ou sua calma ao ter lidado com a situação. Eu ainda me lembrava do modo como ela havia me agarrado e chorado no meu peito quando a salvei daqueles bandidos na floresta há alguns anos. Que estranho, esses fatos quase pareciam ter acontecido toda uma vida atrás.

— Viajei pelo país com Riko-sama durante anos, Madara-kun — ela continuou. — Duas mulheres sozinhas e desprotegidas. Tive que aprender a me defender, não podia contar com ninguém mais para isso.

— E você não sente medo? — Não consegui me impedir de perguntar, propositadamente acuando-a contra a parede.

Mas Koyo me parecia muito longe de estar melindrada. Não na minha presença.

Ela ergueu uma sobrancelha de um jeito um pouco irônico.

— Eu deixei de ter medo do mundo há muito tempo, Madara-kun. Nada mais me assusta. E só existe uma coisa que ainda é capaz de me ferir. Ou melhor — corrigiu-se —, um alguém.

Eu. Eu sabia a resposta. Sempre soube. No dia em que a deixei para trás criei nela uma ferida tão profunda, mesmo que não tivesse pretendido. Mas de que valiam as minhas boas intenções agora? Não valiam merda alguma; jamais valeram.

Aproximei-me mais um passo e ela recuou outro em resposta. Suas costas finalmente bateram contra a parede fria. A luz vermelha de uma lamparina de papel que pendia de um caibro a alguma distância dispersava todas as sombras do seu rosto e avivava o âmbar dos seus olhos, o vermelho do seu cabelo.

Ela tinha cheiro de pêssegos do outono, como eu lembrava. Era inebriante, dava-me vontade de me afogar nela. E eu queria isso, queria com tamanho fervor que me peguei pendendo por um autocontrole tênue demais para ser levado em consideração.

Lembrei-me do que me atormentava nos últimos dias. Koyo estava fixando raízes na vila, criando laços... Quanto tempo levaria para encontrar um homem que fosse digno dela? Quanto tempo demoraria a me esquecer? E quando eu me tornasse uma sombra no seu passado, um rosto meramente familiar, o que haveria para mim?

Só a possibilidade de vê-la nos braços de outro despertou em mim uma cólera indescritível, uma ira abrasadora. Eu não suportaria perdê-la para outro, ninguém era digno dela, ninguém estava à altura do seu coração valente ou da sua alma benevolente.

Constatar isso foi como o empurrão final do qual eu precisava para agarrar o que eu queria.

Finalmente cheguei perto o bastante para sentir o calor suave que emanava do seu corpo. Apoiei meu braço na parede e com a outra mão corri os dedos pela seda do seu cabelo. Koyo me olhou nos olhos sem qualquer vestígio de receio ou hesitação. Entendi que me ofertava seu coração, mais uma vez.

— Você é mesmo minha? — Minha pergunta não passou de um sussurro; minha voz estava rouca pelo meu desejo incontrolável.

Koyo ergueu o rosto ainda mais e minha mão escorregou para o seu ombro delicado.

Você é meu, Madara-kun? — devolveu-me, eu lhe sorri, um meio sorriso que, acredito, lhe disse tudo o que eu não poderia lhe dizer com mil palavras.

Tomei o que era meu. Curvei meu rosto até o seu, meus lábios até os seus lábios. Passei tempo demais negando o que verdadeiramente queria, recorrendo a desculpas patéticas. Agora, tudo estava acabado. Não, tudo estava prestes a ter um novo recomeço.

Koyo suspirou, sua respiração suave tremeu junto à minha, mais áspera e selvagem.

Ela era doce, porém fogosa, entrelaçou-me com seus braços para me trazer para mais perto. Cobri seu corpo com o meu na ânsia de abrandar meu desejo de senti-la ainda mais, dentro da minha pele, da minha alma que ainda lutava contra a minha própria perversidade e obscuridade.

Uma vez, rendi-me à oferta de paz de Hashirama. Rendi-me porque estava farto da guerra, farto de perder pessoas que eu amava e farto de me contaminar com tanta violência. Mas dessa vez a rendição implicava em algo ainda mais concreto: a possibilidade de um futuro, de um verdadeiro recomeço nunca me pareceu tão real quanto agora.

Eu poderia remendar os pedaços quebrados da minha alma, poderia, de fato, construir algo que valesse a pena, algo que fosse apenas meu. Algo do qual pudesse verdadeiramente me orgulhar. A possibilidade não me era vã ou ilusória. Não mais.

Apertei Koyo contra o meu corpo, saboreando o gosto vago e remanescente de sakê nos seus lábios e no seu hálito, então a soltei e me afastei de uma só vez. Das suas íris douradas transbordava tamanha paixão, tamanho amor. Eu era merecedor? Não importava mais.

Havia esperança para mim.

Sem uma palavra, guiei-a para fora do beco e de volta para as ruas luminosas.

Tudo seria diferente dali em diante. E tudo foi diferente. Só não da forma como eu esperava — ou mesmo queria.