Os esquecidos

Capítulo único


Os esquecidos

O barulho do garfo arranhando o prato de alumínio é enlouquecedor. Farinha e água suja terão que ser suficientes para alimentar quatro crianças por mais um dia. Eles reclamam, pedem leite e biscoito. Não há nada mais nos armários. A dor no estômago possui uma voz potente, grita a todo instante. E a mãe olha para o vazio e engole seco. É só o que vem engolindo.

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Maria Clara, a caçula de três anos, começa a chorar. O pai monta num cavalo que dava água na boca de quem o olhava nos momentos de desespero. E isso acontecia frequentemente. Por pouco escapou de ser abatido; precisavam do animal, mesmo doente e magro, para buscar a comida do dia seguinte.

E seu Antônio vai para a roça trabalhar, cavalgando por essa estrada de miséria, com os olhos tomados pela dureza do mundo. Em casa ficou sua mulher, Joana, com Maria Clara no colo, balançando para lá e para cá, enquanto ela ia se acalmando. E acabou adormecendo. Dormiu para ignorar a fome.

Joana falava sozinha às vezes, tentava até cantar. Gostava desses momentos que as preocupações davam um pouco de trégua; ficavam do lado de fora da casa.

Os irmãos não brincavam de corrida, de esconde-esconde, nem de amarelinha. Não tinham energia suficiente para agirem como crianças. Maria Clara acordou, assustada, depois de meia hora. “Foi só um pesadelo, já passou!” É o que a mãe diz. E tenta convencer-se disso todos os dias: é só um pesadelo... Só um pesadelo que vai passar.

Eles seguiram para o quintal com Gabriel, de seis anos, Pedrinho de nove e Luiza, com onze. Eram mais velhos, podiam ajudar. Foram até o poço que o avô cavou no chão. É fundo... Luiza fala para Maria Clara que não pode chegar muito perto, mas ela não liga para o que a irmã está dizendo. Interessa-se muito mais pelo que há ao lado do poço: os porcos rolando na lama. Ri sozinha, achando o máximo! Quer brincar também.

Joana foi plantar mais mandioca. Não se lembrava que já havia plantado uma grande quantia; é a esperança, lá dentro, dizendo que não morreria tão cedo. Maria Clara se aproximou dos porcos, passou a mão na cabeça deles. Queria fazer parte da turma. Pegou com as mãos, a lama escura e gosmenta, passou na barriga grande de lombriga e no rosto fino. Usava seus dedos como se fosse um pincel, e fez de si, o caderno que o presente não lhe reservava tão cedo.

Seu Antônio chegou da roça, com a testa suada de tanto cuidar dos animais, de dar-lhes água e banho. “Os bichos são mais bem tratados do que eu”, ele pensa quando desce do cavalo. As crianças foram correndo em sua direção, mas a saudade não é o que as levavam ali. Uma melancia verde se abriu ao cair no chão, assim que Pedrinho puxou da mão do pai. A fome tem pressa! E não há dor maior para a família de Maria Clara.

Joana sorri ao pegar o leite que o marido conseguiu emprestado com o patrão. Acostumado a fazer piada com sua desgraça, agora, ele chorava. Derramava no ombro da mulher, o cansaço, e ela abraçava mais o marido. Eles viam a morte observá-los e depois, ir embora. Temiam a próxima visita.

Eles também tinham seus momentos de alegria, de lazer. Pelo menos uma vez por ano, se reuniam na sala apertada. O pai fazia questão de ligar o radinho de pilha para acompanharem o jogo do Brasil, e juntos, cantarem:

Mas, se ergues da justiça a clava forte,

Verás que um filho teu não foge à luta,

Nem teme, quem te adora, a própria morte.

Terra adorada,

Entre outras mil,

És tu, Brasil,

Ó pátria amada!

Dos filhos deste solo és mãe gentil,

Pátria amada,

Brasil!

E lá se vai, a família da nossa nação, deitada num berço esplêndido, feito de barro e palha, ao som de um choro agudo que não se sabe identificar de onde vem. É o Brasil inteiro que chora, à luz de um céu que se faz teto para muitos, e abriga milhões de brasileiros que mesmo cansados, não desistem; tentando assim, serem notados por aquele que um dia, os esqueceu.

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