Vatriesse

Ludita


Os seguintes dias passaram numa angústia mental para Dominic. Considerava todo aquele lugar um escárnio àquilo em que se havia tornado, um relembrar-lhe constante da doente ironia que a sua vida se tornara. Relembrava-se disso todas as vezes em que acordava dos seus sonhos atribulados, em que revivia uma e outra e outra vez os acontecimentos daquele dia, com a pele a comichar-lhe por debaixo das ligaduras onde a sua carne se unia a metal. Quando os enfermeiros, ainda a olharem-no com apreensão por debaixo dos sorrisos ensaiados, lhe administravam os medicamentos e lhe testavam as ligações dos membros mecânicos e a sensibilidade do olho artificial. Está tudo a sarar bem, arriscara-se um deles a dizer certa vez, só para se calar abruptamente, apercebendo-se de todas as razões pelas quais não o devia ter dito. Cautelosamente, parecia preparar-se para pedir reforços, mas rapidamente se apercebeu pela apatia do rapaz de que não seria necessário.

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O olho orgânico ardia-lhe de passar grande parte do tempo a chorar, a ponto de já não ter forças sequer para isso. O pescoço estava orlado a vermelho de coçar e arranhar com os dedos metálicos como forma de tentar aliviar a comichão nas extremidades dos braços, onde não podia tocar. Quando lhe deram pomadas e bálsamos para a amenizar, continuava a arranhar-se por autoflagelação. Quando já não tinha vontade sequer de se odiar, fazia-o por hábito. Os enfermeiros limpavam-lhe e tratavam-lhe as zonas ensanguentadas sem fazer comentários. Apesar da insistência da médica dos olhos amendoados, recusou um psicólogo ou qualquer desabafo com ela.

Não precisava de ajuda psicológica, bálsamos ou paninhos quentes. Precisava que lhe tirassem aquelas porcarias mecânicas de cima.

Até que, um dia, deu por si a querer fazer algo para mudar a sua situação.

Não algo estouvado ou imprudente, como fugir pela janela e socar todos os guardas que encontrasse pelo caminho, apanhar um comboio até casa, arrancar as próteses mal encontrasse ago afiado. Entreteve durante alguns segundos a imagem mental dele, uma pobre alma que até para matar insetos precisava de ajuda, numa luta frenética contra seguranças armados. Divertiu-se ainda brevemente com a divagação de que até podia nem ter muita força, mas aquelas dobradiças de metal duro deviam doer — até se repreender por pensar nos membros mecânicos como algo mais do que um estorvo.

Algo mais simples. Como sair do quarto, dar uma volta. Não lhe apetecia ter de encarar enfermeiros falsamente alegres a congratulá-lo por se ter finalmente levantado da cama, mas tinha as pernas entorpecidas e o aborrecimento comia-o vivo, abria a porta a todo o tipo de pensamentos inoportunos para lhe inquietarem a mente o dia inteiro. Talvez se se ocupasse, esses tormentos se resumissem apenas à meia hora que levava para adormecer. Já era progresso.

Nisto levou algum tempo até arranjar coragem para finalmente erguer o corpo, colocar os pés para fora da cama, andar até à porta — miríades de problemas arranjou mentalmente, mil razões pelas quais aquilo era má ideia, dezenas de situações em que a sua pequena decisão poderia ter um fim drástico.

Abriu a porta num ímpeto e atirou-se para o corredor vazio, antes que se arrependesse irreversivelmente. No entanto, ao fechar a porta atrás de si, esgotaram-se-lhe as ideias.

E agora?

Agora que pensava nisso, nunca saíra do quarto, pelo que não sabia a localização de nada. Decidiu mesmo assim arriscar, já sem grande vontade, e palmilhar o corredor vazio em busca de uma placa indicativa de algum sítio de interesse. Passou por uma infinidade de placas que informavam quartos particulares; muitos deles com a porta aberta ou semiaberta, alguns de rádio ligado baixo o suficiente para não incomodar os vizinhos, outros acompanhados de visitas, externas ou outros pacientes, e conversavam, ou jogavam jogos de tabuleiro, ou aproveitavam a calmaria da tarde dividindo a cama numa sesta, as máquinas ligadas a ronronar um rumor mecânico. Deu por si a achar todo o ambiente surreal, envolto numa aura etérea de peculiaridade.

Passou por um sítio que se denominava “Sala Comum” sem sequer abrandar o passo. Num sítio daqueles provavelmente haveria pessoas. Podia ter ganho coragem para sair do quarto, mas não estava nem próximo de querer conviver com pessoas.

Com putrigos.

Só aí se apercebeu de que era isso que eles eram, e quase se repreendeu por estranhar. Enquanto observava os pacientes a descansar nos quartos, a conversar entre eles, não pensou neles como putrigos. Eles eram alheios ao facto de que a sua existência estava a ser horrendamente facilitada por dispositivos desumanizadores e, por momentos, ele também se esqueceu.

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Perguntou-se se lhe teriam posto alguma coisa no cérebro. Algo que lhe estivesse a afetar a capacidade mental. Não arranjou paciência para se horrorizar ou preocupar com isso.

Chegou então a uma sala que lhe interessou.

“Biblioteca”.

Abriu silenciosamente a porta deslizante, para observar atentamente o interior. Era uma sala pequena, cinco filas de estantes formando corredores estreitos com pequenas mesas individuais ao fundo. O vidro das janelas estava manchado aos cantos, a madeira das armações parecia velha e decrépita. O sítio estava impecavelmente limpo, mas nem todo o cuidado tinha conseguido impedir o seu eventual envelhecimento. E, em vez de substituírem aquilo que envelhecia, tinham deixado que por lá ficasse, a encanecer molemente, preocupando-se apenas em limpar aqui e ali sem alterar o seu percurso natural de desgaste.

Decidiu, de si para si, que gostava daquele lugar.

Entrou na biblioteca vazia pé ante pé, até se aperceber de que tal caução era desnecessária. Caminhou por entre os corredores de lado, apertado pelas prateleiras, a tentar ler os títulos desgastados nas lombadas. Acabou por agarrar num aleatoriamente, cujo nome só conseguiu distinguir quando leu a capa. Ludita, diziam as letras garrafais, pinceladas a caligrafia dourada. Abriu-o para o folhear, mas as folhas decrépitas presas por uma fina, quase vestigial camada de cola, soltaram-se e espalharam-se no chão, deslizando para baixo das estantes e para longe dos seus pés.

Praguejou, ajoelhando-se rapidamente para tentar juntar as folhas, a outra mão a amarrotar sem querer o que restava do livro enquanto o apertava contra o peito para não se despedaçar mais.

— Oh, deixa-me ajudar-te!

Levantou a cara. Um rapaz sua idade que nem sabia lá estar, de cabelo esbranquiçado e olhos de um invulgar castanho esverdeado, precipitou-se para apanhar algumas folhas que voaram para longe. Talvez tivesse entrado depois de si, cogitou. Sorriu-lhe ligeiramente em agradecimento, mas o sorriso rapidamente se desfez quando notou que era uma mão metálica que recolhia as folhas.

— Não te preocupes, os livros são velhos, é normal — explicou o outro — deviam pôr um aviso na porta ou assim, para as pessoas saberem. Dá cá, estão paginadas, eu num instante as organizo.

Entregou-lhe o seu molhe com visível desagrado — se o rapaz se apercebeu, não deu sinais disso, agradecendo-lhe, endireitando o que restava do livro e relanceando para a capa de couro antes de se virar novamente para si.

— Pronto, acho que está tudo. Ludita, hm? É… interessante. Mas não me parece que fosses gostar. Se quiseres, posso mostrar-te—

— Como é que tu podias saber alguma coisa sobre mim?

O outro rapaz estacou por momentos, o choque a varrer-lhe o rosto antes de voltar a apaziguador, o sorriso porém mais débil.

— Desculpa, não te queria ofender. Só queria ajudar.

Dominic sentiu novamente a impotente raiva fervilhar dentro de si. De olhos fixos na prateleira à sua frente, disparou:

— É normal convosco, putrigos. A quererem ajudar, só acabam por fazer merda.

— Ei, já chega.

Sobressaltou-lhe a voz repentinamente dura do rapaz. Virou-se para ele, quase a temer um soco ou equivalente. O outro, porém, tinha apenas os olhos fixos em si numa expressão repreendedora.

— Pronto, já deu para perceber — falou calmamente, a mão ainda a endireitar algumas pontas das páginas soltas do livro — não gostas de nós. Perfeito, entendido. Não precisas de partir para a ignorância.

Quis responder-lhe, mas bloqueou-o o facto de a voz do outro não ser sequer hostil. Parecia apenas constatar algo que já sabia, em triste verificação de que era verdade. Notava-lhe um estranho desapontamento do qual queria saber a razão.

— Só uma coisa: nesta Ala toda a gente tem acrescentos mecânicos — informou-o ainda — desculpa lá isso. Mas se for para seres assim, é melhor não te aproximares sequer deles. De ninguém. Eles não precisam de ouvir coisas dessas.

Preparava-se para lhe retorquir rispidamente, mas o outro virou-lhe as costas e saiu, encostando a porta deslizante atrás de si.

E naquele momento, Dominic sentiu-se extremamente só.

**

O riso de Irina ecoava pelos corredores, acompanhado de um esgar contido de uma voz que julgou ser de Teresa. Adivinhava que se teriam encontrado na cafetaria, no andar abaixo. Adentraram a sala para se depararem com um soturno Silas afundado num dos pufes, um monte de folhas empilhado no chão e uma capa de couro aberta no seu colo, com algumas já ordenadamente alinhadas dentro dela.

— Silas? O que se passa?

O rapaz levantou a cabeça, lançando-lhes a sombra de um sorriso.

— Oi! Desculpa, estava concentrado, queria só acabar esta parte.

As raparigas entreolharam-se, atiraram-se para os pufes mais perto de si.

— Não acredito muito, sabes? — Comentou Teresa, agarrando em algumas folhas do molhe e organizando-as também. Já o tinha ajudado a fazer aquilo algumas vezes, sempre que um novo paciente, desconhecedor do estado quebradiço dos livros do hospital, forrava sem querer o chão a papel decrépito.

— Dizem que os olhos são o espelho para a alma — comentou Irina, mimicando o movimento da amiga e folheando o seu molhe distraidamente — estás com azar de ter os dois intactos, rapazote. Conseguimos ver-te essa tristeza estampada neles.

Silas sabia que era impossível mentir-lhes ou ocultar-lhes o que se passara. Irina arranjara, certa vez, o passatempo de aprender a ler as expressões dos outros, os seus tiques nervosos, e não descansara enquanto não tivesse um conhecimento sem par no assunto. E Teresa, pela forma como o seu corpo se retesara quando se apercebeu que algo não estava bem, não descansaria enquanto o culpado pelo seu sorriso disfarçado e olhar triste não fosse enxovalhado. Muitas vezes reassegurava Irina de que Teresa se preocupava realmente com eles, mas não conseguia perceber como é que a loira podia sequer duvidar disso. Lá se rendeu.

— Tive um encontro inesperado com o tal Puritano de Diavena.

— O que é que ele te fez? — Teresa perguntou, num tom gutural que se assemelhava quase a rosnar. Ele sempre duvidara da expressividade dos olhos artificiais, até ver a forma como os de Teresa se afogueavam face a hostilidade ou interesse. E o seu semblante contido, como uma bomba que se impedia de explodir, assustava-o mais que qualquer raiva que pudesse demonstrar.

— Calma, espera, não foi nada de mais, ele não me magoou, ou assim — apressou-se a clarificar. Soltou um suspiro — foi como a doutora Marise tinha dito. Ele odeia-nos, é só. Chamou-me putrigo, disse umas merdas, mas não lhe dei oportunidade para se esticar muito. Portanto, não, não vale a pena ires encostá-lo a uma parede e ameaçares horrores à vida dele. Não faças essa cara, conheço-te bem. Mantemos distância dele e daqui a nada está fora daqui.

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Teresa encolheu os ombros, como que a dizer-lhe que não prometia nada, o que deu azo a que ele se alongasse a pedir que acalmasse a vida e não fizesse asneira. Aquilo que os dois negligenciaram em se aperceber é que, durante toda esta troca de impressões, Irina se mantinha calada, absorta nos seus próprios planos.