Vatriesse

Parémia do Desapego


O céu era de arrebol, os seus olhos raiados a carmesim.

O rapaz de cabelos brancos perscrutava o teto do quarto, descascado e com pontos de humidade, enquanto se encostava à porta trancada. Eram quase sete da tarde. O seu tormento começaria dentro de pouco.

Os olhos deslizaram para a janela por onde passava uma brisa suave, e pensou que daria tudo para que aquele momento pausasse, congelasse no tempo, nem recuasse às mágoas passadas nem corresse para o incerto futuro que tanto temia. Havia apenas uma coisa garantida.

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Os pulsos ainda lhe doíam. Os braços, nem tanto.

Não tinha saído de casa nos últimos dias, ignorado as pedrinhas jogadas à sua janela pelos amigos preocupados, usado roupas largas e mangas compridas para esconder de si mesmo aquilo que sabia lá estar. Olhava muitas vezes para o faqueiro na cozinha, o armário trancado dos medicamentos, a janela. A janela era a que lhe soava mais apetecível. Tão simples. Uma fração de segundo apenas.

Ouviu o clique da porta da frente a abrir. Cerrou os olhos. Talvez se desejasse com força suficiente…

Sil? Onde estás?

…nada aconteceria.

— Aqui — respondeu, levantando-se molemente. Encostou o peso do corpo à porta enquanto a destrancava, tentando abafar o som. Saiu do quarto a passos curtos, e quando olhou para cima lá ele estava.

— Tinhas a porta do quarto trancada, Sil?

A voz era tão apaziguadora, tão solene. A alguém de fora, pareceria até uma melodia de amor fraternal. Para si, era a orquestra dos seus pesadelos.

— Não — mentiu-lhe em fraco murmúrio. O outro não acreditou, sabia-o. Estremeceu ao ver a mão dele a levantar-se, mas nada de dor, ardor ou grito. Apenas um esgar de riso condescendente.

— Ainda bem — a mão desceu-lhe ao rosto, numa carícia leve — não tens necessidade de te esconderes. Sabes disso, não sabes?

— Sim — assentiu, a pele hipersensível ao toque, todos os seus sentidos alerta. Tentava conter o medo trémulo que lhe arrepiava a nuca, mas tinha a certeza que o outro tinha notado.

— Sabes que se não saíres de casa, as pessoas vão começar a estranhar, não é? — E sentiu a palma a endurecer, os dedos a cravarem-se tão levemente na sua maçã do rosto.

— Só não queria que vissem…

— Arranja uma maneira. Tapa-te. Mas não atraias atenção — a voz também lhe endureceu quase impercetivelmente, emoldurada depois de um sorriso, enquanto lhe deu uma palmadinha amigável, baixou o braço e virou as costas — não queremos gente coscuvilheira em cima de nós, Sil. Não precisamos. Estamos bem.

Estamos bem.

Quando, mais tarde, já longe e aparentemente seguro do tormento que era o seu irmão, se debruçava a pensar na linha de interações que tivera com ele, apercebera-se como tinha sido simples a maneira como o outro o controlara; a violência era sempre abruptamente intercalada com simpatia, e vice-versa. Quando baixava a guarda por notar no outro traços de bom humor, uma dor aguda atingia-lhe a face, uma voz tal silvo a assobiar-lhe porque é que não tinha lavado a loiça, feito um recado que ele lhe havia pedido ou algo absolutamente trivial do género. Quando se encolhia sobre si, a pedir desculpa em murmúrios amedrontados, as lágrimas já a queimarem as suas faces, o frio a descer-lhe sobre o corpo num pânico surdo, o outro acalmava, aproximava-se dele com uma mão nas costas.

Desculpa, Silas, desculpa. Foi sem querer, sabes que perco a paciência. Não me abandones, por favor, não fiques zangado. Só nos temos um ao outro, Silas, não podemos deixar que isto nos abale.”

Se tentasse falar do assunto mais tarde – coisa que deixara de tentar depois de duas investidas, cada uma com pior resultado que a outra, as faces do irmão voltavam a endurecer. “Falas como se tivesse sido o fim do mundo. Por favor, foi um tabefe. Hás de ter de aturar muito pior lá fora. És demasiado mole, Silas. Vê se acordas.”

Esse quase cândido aviso tinha sido a primeira vez. A segunda não envolvera tantas palavras.

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Naquele momento, no entanto, não tentava descortinar nenhuma das maquinações mentais que ele exercia sobre si. Só queria que aquele ponto baixo da montanha-russa acabasse, para chegar o mais rápido a um ponto alto. Os pulsos doíam-lhe.

— Sim, Addel, desculpa. Amanhã vou lá fora.

— Ainda bem. Estamos a precisar de umas quantas coisas para casa, vou deixar-te uma lista. Vamos ver se desta vez te lembras.

Por favor, que aquele silvo não fosse outra descida.

E graças a tudo, não tinha sido. Addel bufou e retirou-se para a sala, jogando pelo caminho o casaco para uma das cadeiras do corredor de paredes cobertas de brechas e buracos na cal. Todas as suas roupas estavam impecáveis, apesar de serem o género do vestuário que visam parecer propositadamente descontraídas, descuidadas até. Combinavam consigo, notou – o irmão era aquele género de pessoa lá fora, descontraído, de sorriso fácil e gestos sempre calorosos. Silas era o contrário: assemelhava-se a um roedor, nos gestos bruscos e fugidios, nos modos antissociais e desconfiados. As pessoas nunca suspeitariam de que fora o caloroso rapaz que o tornara assim. Addel era inocente aos olhos dos outros.

Addel dizia “só nos temos um ao outro”, mas ele sabia que isso significava, eufemisticamente, “tu só me tens a mim”. Quando lhe afirmava, como se se tratasse de um qualquer discurso motivador da união familiar, que ninguém lá de fora os ajudaria, Silas lia-lhe nas entrelinhas o que ele realmente significava.

Ninguém lá de fora te vai ajudar.

Estás sozinho, Silas.

Voltou a fechar a porta atrás de si, a visão enevoada novamente pelo choro iminente. Detestava-se. Detestava não ser forte o suficiente, não conseguir responder-lhe, não conseguir lutar de volta. Irónico era que provavelmente até tinha a força física suficiente, mas o medo atrofiava-o. Nunca o saberia, estaria sempre amedrontado, seria sempre um cobarde. Um inútil. Se calhar até era melhor assim; começava a odiar-se mais do que odiava Addel. Começava a perguntar-se se não mereceria.

A janela convidava-o, os vidros a deixar passar a claridade fulva por entre os prédios que o rodeavam tal barras de uma jaula. Limpou os olhos na manga e aproximou-se a passos lentos, como se se tentasse aproximar de um qualquer frágil, fugidio animal selvagem, que escaparia assim que notasse a sua presença. Seria a morte assim tão fugaz? Não, mas a sua coragem era, e precisava de cautela para ela não se lhe desvanecer novamente por entre os dedos.

O coração pulsava-lhe na garganta, os passos mais firmes. Conseguiu levantar um braço, trémulo, dorido, e abrir o fecho de vidro tão devagar, como se o mais pequeno guincho pudesse alertar Addel. Puxou o fecho e as portadas abriram, deixando entrar uma leve brisa quente. Era o momento perfeito. Era memorável, até. Uma linda tarde para tudo acabar, o final perfeito, o último acorde da orquestra, o final da montanha-russa.

E, de repente, sentiu o estômago a revoltar-se, a sua fugaz coragem a escapar-se-lhe novamente, e foi invadido pela maior repulsa que jamais havia sentido. De si próprio, de nunca conseguir agir em situação alguma, de se deixar protelar naquele limbo de existir sem viver, sob a sombra do irmão que o controlava tal marionetista. Ninguém sentiria a sua falta. Ninguém sequer daria por ela.

Foi esse o empurrão final, o passo que conseguiu dar para agarrar a coragem entre os dedos, para saltar da janela. Lembrou-se de achar que estaria um pôr-do-sol magnífico, julgando pelas cores de aquarela do céu, não estivessem os prédios a cobri-lo.

Era um terceiro andar de um prédio velho. O corpo dobrou-se sobre si mesmo na queda, as mãos distenderam-se sem sequer se aperceber. Uma delas aproximou-se demasiado das paredes do edifício, onde um fragmento partido, afiado em bico, de calha de escoamento de ferro se lhe enfiou no pulso. Um grito lancinante cortou o ar quando a sua queda foi retardada pelo rasgar dos seus tendões, enquanto a calha guinchava e cedia, caindo com ele.

A queda acabou por não o matar. Estava inconsciente quando o seu grito atraiu uma pequena multidão à sua volta, uma senhora conhecida que gritou por ajuda, uma médica de olhos verdes que por acaso lá passava que lhe conseguiu estancar o sangramento, um ardina que abandonou o seu posto para ir a uma loja chamar uma ambulância com os poucos trocos que havia juntado. Não conseguiu ver a médica a notar algo de relance no seu pulso são, a puxar discretamente a sua manga para lhe descobrir o negror profundo dos seus hematomas recentes. Não a viu a cruzar olhares com Addel, que só tardiamente se apercebeu do tumulto em frente do prédio, desceu as escadas e se aproximava a passo rápido, ao mesmo tempo que a ambulância chegou a rugir fumo negro para o ar urbano. A mulher disfarçou as suas impressões com um véu de distração, fingiu não notar a voz do rapaz que a urgia que esperasse enquanto empurrava a multidão circundante, que lhe gritava que aquele era o seu irmão. Ergueu o se corpo inerte e pousou-o dentro da ambulância, disfarçando a urgência na voz enquanto dizia aos paramédicos que partissem imediatamente.

Não sabia quanto tempo havia passado até que acordou, num quarto de hospital que cheirava a desinfetante e calor. Marise remexia nas pequenas garrafas de vidro com líquidos translúcidos que cobriam o tampo de um carrinho de metal. Olhou-o, e lançou-lhe um sorriso aliviado.

— Olá. Silas, certo? Consegues falar?

Demorara a responder, tentando acordar a sua consciência por completo. Antes que a expressão da médica pudesse notar sinais de preocupação novamente, ele assentiu.

— Olá. Sim.

— Folgo em ver que já acordaste. Vou deixar-te descansar mais algum tempo, mas quando te sentires melhor gostava de conversar contigo. Posso?

Ele ponderou, os olhos ainda inchados de tanto tempo sem uso a acostumarem-se à luz, a tentar forcar a figura esborratada dela. Acenou ao de leve com a cabeça.

— Sim. Pode.

— Perfeito. Vou mandar um enfermeiro para terminar a tua medicação e para ficar aqui contigo. Quando te sentires melhor, manda-o chamar-me, sim?

Assentiu novamente. Perscrutou-a com os olhos enquanto ela se aproximava, transmitindo-lhe segurança através do olhar e dos gestos firmes, apesar de não sorrir. Ela apertou-lhe o braço levemente, perigosamente perto do lugar onde antes tinham estado as marcas negras, o género de carícia que o atemorizaria numa situação normal em casa — um prenúncio de violência. Mas não houve descida da montanha russa, lado inverso da moeda. Apenas a sua voz soante.

— O que quer que tenha acontecido, estás a salvo aqui — assegurou-lhe — qualquer coisa que precises, por favor diz-me.

E voltou a levantar-se sem esperar por uma resposta. Já na berma da porta, virou-se para trás e atirou, antes de sair:

— Não te assustes com a tua mão. É mecânica agora, não conseguimos recuperar a mobilidade dela então foi substituída. Tudo comparticipado.

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O resto tinham sido palavras soltas. Falou com Marise, assim que a sua mente clareou e o seu medo se foi gradualmente dissipando. Ela ouviu com uma expressão séria, a mão sempre pousada na sua. Palavras como maus tratos premeditados e continuados, ordem de restrição, proteção do Estado dançaram-lhe nos ouvidos, como indícios de uma situação tão bizarra, tão longe da realidade, que se perguntava se a sua massacrada mente não tinha criado toda aquela situação como escape. Era um sonho, uma ilusão na qual havia mergulhado enquanto o seu corpo em piloto automático ainda estava algures no bairro, trancado no quarto de costas para a porta, no chão da sala com o lábio a sangrar, de olhos vazios de presença, talvez um coto no lugar de uma mão. Foram pensamentos paranoicos deste tipo que lhe valeram o novo par de palavras: acompanhamento psicológico.

A pouco e pouco, Ala dos Mecanizados tornara-se um lar. O sítio onde deixara de se preocupar se uma mão no seu ombro significava raiva disfarçada, no qual encontrara uma família. Uma família que, sorria sempre ao lembrar-se, a médica de olhos amendoados lhe tinha dado oportunidade de começar.

A mesma família que agora a mesma médica prometia arrancar-lhe.

A sua vida era uma montanha-russa, quer quisesse quer não. Com o irmão, as subidas eram íngremes e as descidas a pique, um rol contínuo e incessante de felicidade efémera e dor abrupta. Com Marise, agora se apercebia amargamente, a montanha russa continuava lá; mas as subidas eram mais lentas, embalando-o numa falsa sensação de segurança. As descidas, novamente a pique.

Não havia maneira de escapar.

Estás sozinho, Silas.

Nunca devia ter baixado a guarda.