Vatriesse

Apoteose aos Caídos


Matriesse — Abreviação da antiga expressão da região de Vogma “Matri Savariesse”, traduzida à letra como “A todos olharemos”. Num grupo, servia para significar união, tendo como expressão idiomática equivalente “Um por todos, todos por um”.

Dois anos se tinham passado desde que o Matriesse abandonara porto naquele lusco-fusco de fim de tarde. O pequeno barco avançava por cima das poucas nuvens de uma manhã de Verão em direção a Sudoeste, em calma perseguição a um zepelim roubado de uma empresa de transportes aéreos.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Leanor queixara-se e resmoneara face à proposta. Não gostava de fazer trabalhos para gente muito “oficial”, detestava burocracias e queria-se livre de legislações e contratos formais. Era tão mais fácil, tão mais simples perseguir recompensas e inimigos de gente à margem da lei: tragam-me aos pés o gajo que me roubou um barco da frota e levam o vosso peso em ouro. Saqueiem aquele clã anti Confraria, fiquem com o que eles tiverem, e sobem na lista dos requisitados para serviços. Não que o Matriesse precisasse de subir na lista — já estavam quase no topo.

Mas as empresas temiam-nos e precisavam deles, logo pagavam melhor. Não sabiam os sistemas da Confraria de Clãs, ou o ambiente em que trabalhavam. Consideravam-nos assassinos a sangue frio com contactos temíveis e métodos de fazer exercer a sua própria lei, e preferiam pagar-lhes a lidar com as consequências — fossem estas quais fossem.

O que também significava que o desinteresse de Leanor atingia níveis inimaginavelmente altos. A adrenalina escasseava, o desafio era pouco. Uns ladrõezinhos reles, um grupo de funcionários da empresa que se fartou do emprego e decidiu roubar um zepelim, provavelmente para o vender a peças num mercado negro qualquer. Que aborrecido seria.

Já a Teresa, as mãos suavam-lhe de excitação enquanto batia o pé nervosamente, apoiada na parede do convés. Por ser algo a que a irmã pouca importância dava, concedeu-lhe a que os acompanhasse e, se necessário, desse cabo de alguém. Ainda que Leanor garantisse que iria ser fácil, a ansiedade engolira-a — se falhasse naquilo, que era tão simples aos olhos de Leanor, como conseguiria ganhar a sua confiança depois? Assim que avistou uma ponta da elipse opada do zepelim, rúbea e traçada a cordas e cabos de ferro, assobiou para avisar os restantes. Savira rodou o leme e puxou a manivela para dar velocidade ao barco, e traçou rota para o flanco enquanto todos os outros surgiam das cabines, cintos e casacos de couro e cabedal recheados a armas de fogo e lâmina.

— Pronta? — Teresa ouviu a voz da irmã, e soube que era para si. Assentiu.

Um grito de Savira a partir do leme, e sabiam que estavam em posição. Foi uma questão de segundos até o Matriesse estar próximo o suficiente para saltarem nas muradas do convés para as cordas entrançadas mais próximas, de onde desceram até às cabines.

Tudo o resto foi mais frenético do que poderia ter antecipado.

Para um grupo de empregados desertores, o grupo de duas mulheres, dois homens e um adíade que pilotavam o veículo roubado deram mais luta do que seria de esperar. Estavam pobremente armados, com o tipo de caçadeiras de engrenagens de fraco alcance e fraca potência que os lojistas impingiam aos inexperientes, mas disparavam com um fervor de quem não iria abaixo sem luta. Notou que durante a guerrilha uma das mulheres se esquivou para os compartimentos mais recuados, e decidiu segui-la. Seria ela a apanhá-la, conseguiria provar que era tão capaz como os outros.

Seguiu-a em pés de lã até ao fundo do corredor, onde a mulher empurrou a custo uma pesada porta de ferro e seguiu para o interior. Ao entrar também, viu-se num compartimento coberto de um labirinto de máquinas, engrenagens, cabos e tubos. Chegara à casa das máquinas do zepelim, e não esperaria mais. Atirou-se à mulher por trás, jogando-a ao chão e conseguindo desferir alguns golpes na cara dela enquanto ela tentava, sem sucesso, socá-la também. Debateram-se por meros minutos, até Teresa decidir que já chegava, e lhe soltar uma das mãos para alcançar a adaga no cano da bota.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

O seu maior erro, que até hoje via e revia e martelava todas as maneiras de que o podia ter evitado. Aproveitando-se da abertura, a outra alçou o braço e puxou a primeira coisa em que a mão tocou — calhou ser um tubo do líquido de refrigeração das máquinas, que esguichou como uma mangueira de pressão diretamente para os olhos da rapariga.

A sua única sorte foi a de a mulher não ter aproveitado o facto de que se jogou para o chão agarrada aos olhos a contorcer-se e a soltar gritos aflitos de dor, para a atacar de volta. Não, a outra já estava demasiado assustada, envolta de um pânico tal que queria apenas fugir. Conseguiu passar pelos piratas do Matriesse apenas porque estes, alertados pelos gritos de voz conhecida, ignoraram a sua presença e correram para a casa das máquinas. A mulher não voltou à zona principal do navio, onde estariam os seus colegas — vivos ou, mais provavelmente, mortos. Abriu a porta de acesso ao exterior, embarcou numa motorizada aérea, e não mais foi vista.

Enquanto isso, Leanor era afastada da irmã por Ismael, num surdo pânico, enquanto Adine assumia o controlo da situação e lhe limpava os olhos do líquido frio, enquanto lhe pedia que se acalmasse, que a deixasse ver. A dor era lancinante, como fogo e agulhas a desfazer-lhe as orbes, e a muito custo apenas as conseguiu abrir. Ao expô-las ao ar, porém, sentiu lágrimas de sangue quente a descer-lhe pelas bochechas, e voltou a fechá-los enquanto implorava por ajuda.

— Calma, Teresinha, vai ficar tudo bem — mas, entredentes ouviu-a soprar para os outros — isto está mau. Temos de a levar para o hospital rápido.

Sabia pelas vozes, abafadas pela dor que lhe entorpecia todos os sentidos, que foram a irmã e Adine que a levaram de volta ao Matriesse e a sentaram entre as duas numa motorizada aérea de emergência, partindo de imediato para o hospital mais próximo. Descobriram não estar muito longe de Rorise, a capital do Distrito Magno, e para o hospital central a levaram. Graças à sua situação emergente, auxiliada talvez por estar acompanhada de duas piratas da Confraria, foi rapidamente admitida numa sala de cheiro a álcool e desinfetante onde ouvia médicos a falar e movimentar-se à sua volta enquanto era deitada numa maca. Lavaram-lhe dos olhos os restos do líquido refrigerador com uma solução neutra e injetaram-lhe um analgésico forte na curva interior do antebraço.

À medida que as dores se iam tornando mais suportáveis, conseguia ouvir a médica informar, ainda a medo, Adine e Leanor do seu estado. Más notícias, estava cega, os olhos irreversivelmente destruídos. Boas notícias, a lei permitia que lhe colocassem olhos mecânicos, e a irmã teria apenas de pagar metade do valor.

— E fica a ver bem outra vez? — Perguntou Adine, tentando disfarçar o tremor da voz.

— Não a cem por cento, os olhos artificiais comparticipados têm as suas limitações. Mas em grande parte, sim. Vai poder fazer uma vida normal—

— Não há maneira de lhe recuperar a visão toda? — Interrompeu Leanor, tomada da neutralidade apática que lhe conhecia dos tempos de Vogma. A médica hesitou.

— Sim, mas… esse tipo de olhos não é comparticipado…

— Não quero saber. Eu pago, recuperem-lhe a visão toda.

Realmente, havia os seus benefícios em se estar no topo da lista da Confraria.

Foi admitida a cirurgia nessa mesma noite, assegurada por Leanor de que toda a burocracia seria tratada e que ela apenas se preocupasse em melhorar, enquanto a abraçava e se despedia. E apesar de se sentir reconfortada, algo no fundo da sua mente a desassossegava: tinha, de qualquer modo, desperdiçado a oportunidade que a irmã lhe dera.

Apenas uns dias depois da operação pôde abrir os olhos. E sim, via tudo como anteriormente, com a exceção de as cores lhe parecerem mais vívidas, e as formas mais nítidas. A recuperação foi calma, acompanhada por uma médica de nome Marise, responsável pelo seu caso, e as visitas esporádicas da irmã e de Adine. Certo dia, a tripulação do Matriesse conseguiu autorização para a ir visitar. Esqueceram imediatamente as regras que lhes foram impostas de manter o silêncio, e atiraram-se a ela num fervor de abraços e saudades.

— O barco não é o mesmo sem ti, pequenita — Ismael afagava-lhe os cabelos encaracolados, ignorando os seus protestos.

— Olha para nós, deixa-nos ver os olhos novos — Manifestava-se a curiosidade de Rénia e Savira, que pasmavam a observar o núcleo de éter e as pequenas engrenagens.

Conversaram pela tarde fora, tanto quanto lhes foi permitido. Até que, à chamada da funcionária, tiveram de partir. Antes, no entanto, Leanor disse-lhe:

— Vamos partir em viagem.

Sentiu um baque no peito. Iam partir de viagem sem ela. Já devia ter calculado.

— Escuta — continuou — não fiques com macaquinhos na cabeça. É aquele trabalho da captura do fugitivo que já tínhamos marcado, nada de mais. Mas daqui a umas semanas estamos cá, não te preocupes. Voltamos antes ainda de teres alta para te virmos buscar.

— Vai ser um trabalho de merda, de qualquer maneira — Rénia encolheu os ombros, os outros assentiram com um riso contido — um maluco qualquer, cheio de dívidas e inimigos, que fugiu num cargueiro para se livrar de ser morto. Bah, subornamos o capitão e arrastamo-lo de volta à Confraria. Tão fácil.

Tão fácil teria sido.

E partiram.

Nas semanas que se seguiram, Teresa ocupou-se de explorar a Ala, sem grande ocupação que lhe valesse. Acabou por conhecer esta rapariga de olhos claros e sorriso caloroso, e aquele rapaz de mão de metal e o pior humor matinal que já havia visto. Teve medo de lhes falar do Matriesse, porque falar demais às pessoas erradas dava sempre resultados inesperados. Falou-lhes apenas de uma normalíssima irmã trabalhadora Leanor, e de um grupo de amigos mais normal ainda, sem entrar em detalhes. A vida corria lenta, mas languidamente satisfatória.

Até que a notícia veio por um rádio mal sintonizado.

Calhou estar a passar por ali a caminho da cafetaria, naquela noite, para uma bebida antes de se deitar. Calhou a funcionária se estar a entreter a ouvir rádio para passar o tempo, num volume baixo para não incomodar. Calhou ela ter boa audição, e um vocábulo solto lhe ter chamado a atenção.

“…nau…”

Parou no corredor, aproximou-se do balcão sem que a secretária parecesse notá-la. Por lá ficou a ouvir.

“Estamos em direto de Diavena, onde acabou de colidir uma nau voadora com a Capela da cidade. Os serviços de emergência do Hospital Magno já chegaram, e bloqueiam o acesso ao local do impacto enquanto evacuam os sobreviventes. Estamos a tentar obter informação junto das fontes— sim, é sabido o nome da nau! Matriesse!”

O coração parou-lhe no peito. De seguida, uma leva de conflitos interiores, uma prece muda para que tivesse ouvido o nome mal, por favor, por favor, que me tenha enganado. Mas a locutora não dava espaço para engano.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

“A nau Matriesse, segundo as nossas fontes, era um nome conhecido na Confraria de Clãs Piratas, liderado pela Capitã Leanor Ascolana. Aguardamos para saber se a tripulação se encontra viva…”

A partir daí, as suas memórias assemelhavam-se a um borrão indistinto.

Correu para a saída do hospital, saiu pelas portadas da Ala aproveitando a entrada de um médico, ouviu a voz dele a gritar por ela, e depois por ajuda, enquanto se afastava a galgar para a saída. Não sabia o que planeava. Não sabia sequer em que pensava. Só sabia que tinha de chegar a essa tal Diavena, tinha de ver a irmã, Adine, todos os outros. Não podiam ter morrido, não podia ser, por favor, não podia!

Conseguiu ainda chegar longe, graças à resistência que criara em todos os seus anos tanto em Vogma como no Matriesse, chegando perto de uma rua onde o cheiro inconfundível a fumo e o som besourado de uma coluna acusavam proximidade a uma estação de comboios. Só parou quando foi apanhada pelos dois tripulantes de uma motorizada de emergência a éter, enviada do Hospital Magno para a levar de volta.

Larguem-me! Deixem-me! A minha irmã, por favor, tenho de ir ver a minha irmã! Por favor! Parem!

Até a sua voz lhe soava oca e estranha.

Tinha sido sedada e transferida para outra Ala para a noite. De manhã, fora encaminhada para uma assistente social acompanhada de uma psicóloga.

Toda a tripulação do Matriesse havia morrido na colisão.

A assistente, mulher fria que odiou assim que lhe pôs os olhos em cima, estava lá apenas por uma razão: Teresa era maior de idade, e beneficiária do testamento de Leanor. Entregou-lhe um envelope selado, e disse-lhe que se dirigisse ao gabinete jurídico mais próximo assim que pretendesse levantar os bens que lhe cabiam. Gritou-lhe que não queria bens nenhuns, queria a sua irmã, e dois enfermeiros que nem tinha visto chegar precipitaram-se a segurá-la. Apesar do choque inicial, a assistente logo recuperou a compostura e pousou o envelope na cómoda da sala. Daí em diante, teria de se encontrar com a psicóloga todos os dias, pois esta ajudá-la-ia a recuperar.

Nunca acreditou. E verdadeiramente nunca se chegou a curar, a aceitar a dor e a, assim, minguá-la como a lua dos meses que passou em silêncio no estreito quarto da Ala ao lado. Apenas a sua apatia cresceu, de tal forma que esmagou sobre si a dor. O sofrimento permanecia, em irónico paradoxo, como uma sombra a persegui-la de entre a ausência de sentir. A sua vida mergulhou numa latência em que a tristeza provinha da apatia, até que se habituou a esse estado, como uma ferida que não sara mas cuja dor já é familiar e aconchegante.

Tiraram-na do quarto da Ala ao lado quando perceberam que, ainda que qualquer tentativa de a tirar da miserável melancolia apática fosse inútil esforço, ela já não constituía perigo ao bom funcionamento do hospital ou à comodidade dos outros pacientes, auxiliada pela asserção da psicóloga de que ela melhoraria depois de cumprir o seu luto. Quando a transferiram de volta para a Ala dos Mecanizados, sentiu finalmente algo no meio do nimbo vazio que a envolvera: medo, um pânico desconcertante; reencontraria aqueles que considerava seus amigos, e aí sabia que havia uma tão grande probabilidade de os perder também. Por a acharem instável, por ter fugido, por se terem aproximado de outras pessoas na sua ausência e se terem apercebido que não precisavam dela. Tantas eram as possibilidades, que sentiu que aquilo que a ela os agarrava era não mais que um frágil fio.

— Olá, Teresa. Como estás? Tive saudades tuas.

A outra tinha olhos do azul da madrugada, lábios pequenos e curvados, e o ar de a quem todos os problemas do mundo não conseguiriam deitar abaixo. Lembrava-lhe a alvorada, em todos os sentidos, mas nunca lho diria. Fechou a névoa em sua volta.

— Oi. Estou bem. Está tudo bem.

Irina olhou Silas desconfiadamente, mas nada disseram. Os dias passaram a ser longos e escorridos. E antes que se apercebessem, Teresa tinha quase desaparecido.