Outono

Capítulo 7 — Chuva de Lágrimas;


Estranhamente, naquela manhã, apesar dos murmurinhos habituais e da atmosfera carregada de tensão em detrimento das provas finais, Emiko estava animada. Já não se sentia assim há muito tempo. Vez ou outra, durante o exame de Matemática, desviava o olhar para a janela, fixando a visão no horizonte alaranjado ou no carvalho do pátio, cujas últimas folhas de outono caíam com especial lentidão, mas sempre voltava para a folha de papel e se sentia feliz por ler as questões e ser capaz de entendê-las.

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Relembrou que, semanas antes, esteve ali, naquela mesma carteira, olhando as mesmas coisas, sem, no entanto, conseguir se enxergar em uma situação diferente da melancolia que a acometia. Não tinha vontade de falar com ninguém, nem de saber coisa alguma, e tudo o que queria fazer era ficar ouvindo o vento soprar e as folhas ruças caindo.

Entregou a prova com um semblante de orgulho discreto no rosto e sorriu para o professor antes de endireitar a bolsa no ombro e sair pela porta. O sinal tocou logo em seguida, e iniciou-se um alvoroço na sala de aula que a menina deixava para trás, mas ela continuou andando, inalterável, sentindo-se tranquila e bem consigo mesma.

Por alguma razão, tudo ao seu redor parecia um pouco mais interessante que de costume. Ela acenou, inclusive, para algumas pessoas que a cumprimentaram amigavelmente. Tinha a intenção de ir até a biblioteca, para repassar alguns conceitos da prova de Ciências que aconteceria depois do almoço, mas, quando já estava na altura da escada principal do prédio, que conectava o térreo e o primeiro andar, avistou um rosto conhecido cujo sorriso de cumprimento praticamente a compeliu a interromper seu trajeto.

Pela sua cara, aposto que foi bem na prova. — Hal, que estava encostado no corrimão da escada, direcionou-lhe uma piscadela. — O que não seria novidade.

“Yes, sir.” — Bateu continência. — O que faz aqui?

Eu... — Ele fez uma pausa antes de coçar a nuca sutilmente desconcertado. — Eu estou esperando a Chiyoko.

Silêncio profundo instalou-se entre eles durante alguns segundos; e somente os dois, que naquele momento não fitavam um ao outro, sabiam a razão.

Subitamente, a atmosfera pesada foi interrompida por um berro distante sob uma voz pouco familiar. Depois de trocarem olhares rápidos, ambos voltaram a atenção para o corredor para encontrarem um homem — de blusa branca azul e gravata vermelha — correndo na direção deles banhado pelos raios de sol que atravessavam as vidraças das janelas.

Kojima? Kojima Emiko? — Ele finalmente se pronunciou.

Sim. — A garota ergueu a sobrancelha. — O que aconteceu?

A sua mãe. — Ele hesitou, mas reuniu as palavras certas para concluir: — Ela está no hospital.

Os olhos da menina se arregalaram, ao mesmo tempo em um impulso no interior do seu corpo forçou o coração a bater mais rápido, e ela permaneceu imóvel enquanto a informação era processada pelo seu cérebro. Lançou um rápido olhar para o garoto ao lado, como se estivesse buscando orientação, ao que ele devolveu um mirar ainda mais apreensivo. A ficha demorou para cair. Ela franziu o cenho e se voltou para o mensageiro em seguida.

O que... — Ela iniciou a frase, mas a fala de palavras a obrigou a interrompê-la. — O que aconteceu?

Vamos até a sala da Coordenação. — Pediu o outro. — O senhor Hashimoto quer falar com você.

Sem olhar para trás, a menina se pôs a andar em passos apressados, acompanhados de perto pelo homem que ela lembrava vagamente ser o assistente do coordenador, ao passo que os sons ao seu redor — dos estudantes conversando e do auto-falante que reproduzia os avisos do dia — foram se tornando cada vez mais distantes.

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Tudo o que havia em sua mente era uma contagem regressiva e desesperada dos passos restantes até o seu destino. Subiu as escadas, atravessou o passadiço do segundo andar, desviando de alguns grupos de alunos no caminho que discutiam as questões da prova, e finalmente alcançou a discreta porta — com os dizeres “Coordenação” escritos em letras garrafais sobre uma placa prateada — no fim do corredor.

Quando entrou, sem muito cuidado com o bater da porta, encontrou uma sala preenchida por pilhas de papel, material escolar e pessoas indo e vindo. Algumas pararam para observá-la, enquanto outras a ignoraram sumariamente, mas bastaram alguns segundos para que ela localizasse com o olhar a pessoa que estava procurando. O coordenador, por sua vez, que ostentava uma expressão severa no rosto, não fez rodeios.

Ligaram do hospital. — Parecia ter por volta de quarenta anos, com seu cabelo escuro e as rugas discretas na lateral dos olhos. — Ao que parece, sua mãe estava prestes a desmaiar quando ligou para a emergência.

Ela está bem? — Perguntou a ruiva atropelando nas próprias palavras. — Já disseram qual é o problema?

Não tenho muitas informações, Emiko. — Ele suspirou. — Você pode ir ao hospital, se quiser.

E a prova?

Você poderá refazê-la outro dia. — Explicou o homem com clareza. — Tem alguém que possa te levar ou você quer que eu chame um táxi?

Subitamente, a porta por onde a garota outrora entrara se abriu e o rapaz com quem ela estivera conversando antes irrompeu o local. Os pensamentos de Emiko estavam nublados, confusos, e ela não conseguia raciocinar com precisão. Tudo o que sabia é que tinha que ir ver a mãe. Hal colocou-se ao lado dela e, depois de apoiar a mão espalmada em suas costas, anunciou:

— Eu posso.

Após um aceno de confirmação, Hal conduziu a menina, que permanecia taciturna, em direção à saída. Ninguém na cômodo disse uma palavra. Havia uma atmosfera densa no ar, de respeito mudo, pois desconfiavam que a dor de perder o irmão, que Emiko vivera meses atrás, sequer havia se atenuado.

————— ♣ —————

O ronco da motocicleta que o rapaz pilotava, ao parar na frente do hospital municipal, chamou a atenção de algumas pessoas que cruzavam a calçada. Emiko sequer esperou que ele brecasse o veículo completamente, ou endireitou suas madeixas alaranjadas que tinham sido completamente bagunçadas pelo vento, para saltar dele. Tirou o capacete, depositando-o sobre o banco, e entrou em disparada pelas portões de vidro da construção enquanto seu acompanhante buscava um local próximo para estacionar.

Com o olhar, a menina examinou o salão principal em busca de alguém que pudesse lhe dar informações. O local era grande, e haviam desconhecidos agrupados aqui e ali, alguns sentados e outros em pé, assistindo tevê ou simplesmente conversando entre si, enquanto a recepcionista — que ela avistou depois de algum tempo — atendia o telefone.

Seus passos a guiaram até a mulher, que, depois de confirmar informações de um paciente que desejava remarcar a consulta, a fitou com um sorriso educado.

Posso ajudar?

Oi, eu... — Emiko gaguejou. — Eu estou procurando por uma pessoa, ela foi trazida para cá há pouco mais de uma hora.

Como ela se chama?

Kojima Honoka. — Informou a menina com ansiedade.

A recepcionista voltou a atenção para o computador e, com agilidade, digitou o nome que lhe havia sido entregue. Seus olhos corriam de um lado para o outro enquanto ela verificava as informações que apareceram na tela. Simultaneamente, Hal entrava pela porta da frente e junta-se à ruiva.

Sim, ela está aqui. — Confirmou. — Ela foi trazida para cá inconsciente e fez alguns exames. Você é parente dela?

Filha.

Venha, eu vou levá-la até o médico que a atendeu.

A mais velha apontou uma porta larga ao lado deles, branca e com uma faixa prateada no meio, por onde os conduziu. Viram-se em meio a um corredor extenso, claro, com várias portas dispostas ao longo das paredes. Estava mais vazio que no aposento anterior, mas ainda assim haviam pessoas entrando e saindo dos quartos. Mesinhas de canto, com vasos enflorados, enfeitavam o lugar e davam a ele uma atmosfera delicada.

O baque ritmado dos sapatos de salto da recepcionista ecoavam pelo corredor conforme ela o atravessava. Os dois — Emiko e Hal — a seguiam prontamente. Ela só parou quando atingiu uma das últimas portas, com os números “109” gravados na frente, de onde um homem, vestindo um jaleco branco e carregando uma prancheta em mãos, surgiu.

Você deve ser a Emiko. — O homem não parecia tão velho e tinha um ar maduro e charmoso.

Sim. — Ela engoliu em seco. — Como o senhor sabe?

Sua mãe me falou muito de você. — Sorriu em resposta. — Eu sou o Doutor Ogawa, e também gosto de fazer rostos felizes com as cenouras e o peixe.

O homem piscou, brincalhão, mas a garota não conseguiu se sentir envolta pela mesma aura agradável em que ele parecia estar. Hal, que parecia tão impaciente quanto a outra — exatamente por causa dela —, interrompeu-o pedindo por explicações:

Isso é muito legal, mas como a senhora Kojima está?

Ela está bem. — Ele suspirou, repousando a mão sobre o ombro da garota que o implorava por respostas com os olhos. — Não há nada para se preocupar; ela apenas desmaiou de cansaço. Deve estar tendo uma rotina de muito estresse.

É só isso? — Emiko tornou a perguntar. — Tem certeza?

Sim.

Eu posso vê-la?

Claro. — O homem pressionou a mão sobre a porta e entreabriu-a suavemente. — Ela está acordada.

Sem esperar segunda ordem, a ruiva entrou, seguida de perto por Hal, e encontrou a mais velha acamada. Ela estava envolta em uma bata esverdeada, seus cabelos estavam arrumados em uma trança — que àquela altura já estava quase desfeita — e tinha uma aparência abatida. Ainda assim, no entanto, ostentava um sorriso gentil nos lábios.

Desculpe por preocupá-la, querida. — A mulher começou a dizer. — Eu não queria ter causado problemas a

Emiko a abraçou, interrompendo o monólogo da mãe, enquanto Hal se posicionava logo ao lado. A mulher pareceu surpresa com a reação da filha, que já há muito tempo tinha perdido o hábito de externalizar emoções com tanta intensidade, e tudo o que conseguiu fazer foi abraçá-la de volta.

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Não me assuste assim. — Resmungou a menina.

Você não devia estar na escola?

O coordenador me liberou para vir aqui. — Respondeu enquanto se afastava.

Os dois? — Honoka ergueu as sobrancelhas em direção ao garoto. — Oi, Hal, já faz um bom tempo que eu não vejo você.

É bom vê-la bem, senhora Kojima. — Ele curvou a cabeça em um cumprimento educado, e ao mesmo tempo informal, enquanto sorria.

Como estão os seus pais? — Ela perguntou.

Estão bem, obrigado. — Confirmou balançando a cabeça. — Ocupados com negócios no exterior, como de costume, mas me ligam quando podem.

Espero que você esteja de olho na minha menina.

Mediante o duplo sentido que a frase da mulher criou, perceptível apenas para os outros dois que estavam na sala com ela, ambos trocaram olhares constrangidos e pareceram ficar um pouco sem graça. A mãe sabia o motivo disso, no fundo, e não negaria — caso um ia lhe perguntasse — que já se pegou pensando em como as coisas seriam se aqueles dois acabassem namorando.

Emiko fez questão de mudar de assunto rapidamente. Perguntou à mãe o que tinha acontecido, com detalhes, e o motivo de não ter sido informada da situação, recebendo, entretanto, explicações rasas e — ela sabia perfeitamente — no intuito de desviá-la na questão principal.

Minutos depois, a porta do quarto se abriu e um homem grande, robusto e de feições severas entrou no aposento. Ele tinha um bigode cheio e vestia um terno cinza. Sequer prestou atenção nos elementos ao seu redor, caminhando direto para a mulher acamada, enquanto a fitava com uma expressão fechada.

Honoka, o que aconteceu? — Ele indagou num tom autoritário.

Não foi nada, Kazuhiko. — Apesar da forma quase agressiva com que fora abordada, a gentileza e a amabilidade em seus traços sequer tremelicou. — Eu estou apenas cansada, não dormi muito bem ontem à noite, e tive uma tontura.

Tontura não é razão pra hospital. — Ele replicou.

Não fique tão preocupado. — A ruiva mais velha alargou o sorriso. — Eu estou bem.

O homem pareceu ficar desconcertado, por ter tido sua máscara de rigidez contestada pelo sorriso da esposa, e desviou o olhar em direção à adolescente ruiva que o encarava em silêncio.

O que está fazendo aqui? — Indagou parecendo aborrecido. — Não devia estar na escola?

Eu fui avisada de que a mamãe tinha vindo para cá e fui liberada.

Sua responsabilidade é com os estudos. — Contrapôs.

Hal assistia o desenrolar da cena em quietude, sem saber a hora certa de se manifestar ou apenas ir embora. A atmosfera no cubículo branco se tornava mais tensa à medida que os dois — Emiko e o pai — retrucavam um ao outro visivelmente irritados com a situação. Como amigo da garota, ele sabia que a relação dela com o homem não era das melhores desde que o irmão mais velho falecera. Ela nunca falava a seu respeito de Kazuhiko, e, aparentemente, dentro de casa mal trocavam cumprimentos. Ele também parara de aparecer na escola para as reuniões dos pais.

O rapaz de aproximou de Emiko, que havia se deslocado para o outro lado da cama, próximo à janela, e aproximou o rosto o suficiente para ser capaz de dialogar com ela em particular.

Quer que eu fique aqui com você?

Não, não. — Ela negou com a cabeça. — Volta pra escola, você ainda tem a prova de Ciências pra fazer. Eu vou ficar aqui.

Você vai ficar bem?

Sim. — Exibiu um sorriso amarelo. — Não se preocupe, e obrigada por ter vindo comigo.

Sempre virei. — O estudante sorriu e raspou os dedos no queixo da menina. — Se precisar de mim, é só me ligar e eu volto.

Hal caminhou em direção à porta, despedindo-se respeitosamente do pai de Emiko, e desapareceu de vista através do corredor por onde vieram. Pareceu ter levado consigo todo o ar presente no lugar, pois o clima em torno da família Kojima só se tornou ainda mais conflituoso.

Nós trabalhamos duro para dar a você uma boa educação. — O pai de Emiko recomeçou. — Então volte para a escola e não nos dê mais trabalho.

Querido, pare. — Honoka o interrompeu. — Emiko veio me ver porque ficou preocupada. Não a trate dessa maneira.

Tudo bem, mamãe. — A mais nova ergueu a mão aberta. — Por que está tão irritado?

Eu não estou irritado.

Sim, está sim. Você está sempre irritado. — Ela gesticulava enquanto falava. — Você tem estado irritado com tudo desde que o Hibiki se foi.

A menção do nome do filho mais velho pareceu deixar Kazuhiko ainda mais aborrecido. Era possível enxergar o peito dele inflando e murchando rapidamente, dentro do terno fino, enquanto formulava uma resposta à altura.

Eu já falei que não quero ouvir o nome dele mencionado dessa maneira. — Ameaçou. — Ele era meu filho.

E meu irmão. E filho dela também. — Ela apontou para a mãe e se projetou para a frente. — Acha que só o senhor perdeu alguma coisa?

Quem você pensa que é para me responder dessa maneira? — Ele inflou o peito. — Você não tem o direito de falar assim dele, nem de mim, você não sabe nada da vida, é só uma adolescentezinha empolgada, e mesmo assim age como se realmente entendesse o que aconteceu. Não me venha com lições de moral, com a baboseira que você vê nos filmes e nos seus livros, porque a vida real é muito mais brutal. Você não tem ideia do que eu passei. Você não tem ideia do que a sua mãe passou. Você não tem ideia do quanto foi difícil para nós porque, ao invés de ficar aqui, você fugiu para a casa da sua tia. Enquanto nós permanecíamos aqui segurando a porra da barra. Eu sou seu pai, e estou dizendo para você ficar quieta. Entendeu?

— Você deixou de existir. — Ela respondeu de modo apático. — Você deixou de existir para mim, pai, você entra e sai de casa como um fantasma, não nos falamos, não nos cumprimentamos. Seu filho morreu naquele acidente, mas sua outra filha ainda está aqui e você está perdendo isso!

A mesma filha que, agora, está me desafiando.

Desculpe-me se eu não sou a filha perfeita. — Ela abriu os braços enquanto sentia os olhos marejando. — Se você não pode projetar em mim os desejos que não conseguiu realizar por si mesmo, como fazia com ele, ou se eu não concordo com o que você faz.

Você começou com essa coisa de basquete para me afrontar! — Ele explodiu. — Você está imitando o seu irmão, que quis contrariar todas as coisas que eu planejei para a vida dele, fazendo a mesma coisa que ele fez por puro capricho!

Já lhe ocorreu que talvez nem tudo tenha a ver com o senhor?

Ele se calou, mas era visível o quanto ele estava nervoso.

Diferente de você, que nunca quis ouvir o que o Hibiki tinha a dizer, o que ele realmente queria, eu estou fazendo isso por ele. — Encheu o peito e então continuou: — Pra manter a memória dele, a real memória dele, viva.

Eu não vou te apoiar nisso. — Anuncio o outro. — Não importa quantas palavras bonitas você formule.

Não mesmo?

Não.

Seus lábios tremelicavam, ao passo que respirava ofegante, e seus olhos mantinham-se fixos no homem robusto. Esperava por uma resposta, ou um pedido de desculpas, até uma reconsideração, que não vieram. Desejava desesperadamente que ele fosse capaz de entendê-la. Sentia a raiva e o ressentimento crescerem dentro de si enquanto o pai parecia resoluto e indiferente quanto à posição da garota.

Sem dizer uma palavra, Emiko pegou a bolsa — que havia deixado sobre a poltrona no canto do quarto —, pendurou-a no ombro e saiu em passos nervosos. Bateu a porta ao passar por ela e deixou uma mãe angustiada e um pai enraivecido para trás.

Cruzou as portas brancas que ligavam o corredor à recepção com os olhos fixos no chão. Dizia a si mesma para esquecer, que não era nenhuma novidade, e que aquele homem nunca ia mudar, mas sentia o peito arder em angústia. Queria ir embora dali e não ter de vê-lo mais. Era nisso que estava pensando quando parou subitamente ao perceber rostos conhecidos cercando-a.

Tudo em cima? — Kai, recostado à parede, perguntou.

Estavam todos lá: todos os membros do time de basquete. Ryūma acenou, com uma expressão simpática, enquanto Naoki exibiu um sorriso bobo e Rei, logo ao lado dele, carregava a bola na lateral do corpo. Ainda vestiam os uniformes vermelho e branco.

O que vocês? — Tentou perguntar enquanto se esforçava para aparentar um estado de espírito normal. — Quero dizer, como

Você faltou ao treino. — O capitão se pronunciou.

É. — Kai se aproximou dela, ofereceu-lhe um sorriso amigável e afagou seus cabelos carinhosamente. — Se está achando que vai conseguir escapar dessa, Kitsu, está muito enganada.

Enquanto o olhava, a mais nova só conseguia pensar que ele nunca saberia o quanto sua presença a fazia se sentir segura. Mesmo o sorriso debochado, e as piadas — que sempre surgiam na hora certa —, concediam a ela um ar de segurança e conforto. Sempre que ele estava por perto, Emiko sentia que não havia nada a temer; que talvez o mundo não fosse um lugar tão hostil. Queria abraçá-lo, após olhá-lo de cima à baixo, mas não moveu um músculo.

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Havia agora um ardor diferente queimando dentro dela. Tratava-se de uma sensação que ela só tinha quando estava perto do moreno: um misto de ansiedade e riso que fazia seu estômago borbulhar. Nunca soube definir se era uma sensação boa ou ruim, e a única certeza que tinha era que era única.

Sabia que todos estavam ali para apoiá-la — ainda que o disfarce parecesse deveras charmoso — e não foi capaz de achar as palavras certas para expressar o quanto aquele gesto significava. Suas pernas bambas ameaçaram derrubá-la, mas a garota se manteve firme. Estava com raiva, cheia de ressentimento por causa da discussão com o pai, em razão de todo o tempo em que, para ela, ele simplesmente deixara de existir, mas estar no meio daquelas pessoas, que entraram em sua vida de um modo singular, a fazia sentir-se profundamente à vontade.

Havia um nó seco em sua garganta que a impedia de se expressar com inteireza, limitando-a a apenas sorrir em resposta, mas ela entendeu que palavras eram desnecessárias e que tudo foi dito em meio ao silêncio confidente que se estabeleceu entre os membros do time de basquete da Shunkashūtō. Não se tratava de ser o mais forte, ou o mais famoso, mas de um laço verdadeiro que foi construído com o tempo — aos tropeços, sim, e sobre memórias dolorosas — e que agora, involuntariamente, era um porto seguro tanto para ela quanto para os outros.

A atmosfera de paz durou pouco, pois, depois de virar o rosto ao som de passos pesados que soavam atrás dela, a ruiva deparou-se com o próprio pai surgindo do meio das portas. Ele parecia prestes a explodir. Os rapazes do time imediatamente silenciaram-se afim de não interromper um problema familiar que, até então, não lhes dizia respeito.

O que pensa que está fazendo? — Ele se projetou ameaçadoramente em sua direção. — Não me dê as costas quando falo com você!

Não há nada mais a ser dito. — Rebateu. — Eu entendi a sua posição e não pretendo mais questioná-la.

Você está agindo como uma criança teimosa! — Ele berrou. — Pelo menos o seu irmão me ouvia e

Ele não vai voltar. — Murmurou a garota, por fim, afastando-se devagar com os olhos marejados. — Não adianta o quanto você deseje isso, quantas você repita para si mesmo que preferia que ele estivesse aqui ao invés de mim, ele não vai voltar. Atolar-se de trabalho não vai mudar isso, nem fingir que eu não existo. Não foi só o senhor quem sofreu com tudo isso. Mesmo que a mamãe sorria para mim e para o senhor todos os dias, e prepare cafés da manhã deliciosos, a verdade é que ela está quebrada por dentro. O filho dela morreu.

“E eu, que estive lá quando tudo aconteceu, que não fui capaz de salvá-lo, também sofri. O que você quer que eu faça? O que você quer que eu diga? Que a culpa foi minha? A culpa foi minha, senhor Kojima, por não ter conseguido salvar o seu filho. Por não ter morrido no lugar dele para que você pudesse ter alguém em quem depositar seus sonhos fracassados. Eu estou ciente da minha culpa, sim, mas, diferente do senhor, eu estou aqui, ao lado da mamãe, porque eu sei que ela precisa de mim. Você não foi a única pessoa que perdeu, pai, mas age como se fosse.”

A franja alaranjada cobria os olhos da menina que lentamente recuava em direção à saída. O coração retumbava dentro do peito enquanto gotículas de água caíam sobre o vidro. O som de chuva foi aos poucos preenchendo o local e varrendo a quietude incômoda que assolava os presentes.

Você se tornou um fantasma pra mim. — Ela declarou enquanto lágrimas brilhantes rolavam de seus olhos. — E eu, por consequência, me tornei um fantasma pra você.

Seus companheiros de equipe permaneciam quietos, observando a cena, sem saber ao certo se deveriam interferir. A resposta para a questão veio logo em seguida quando, sem aviso prévio, a menina se virou e atravessou a porta do hospital em passos desesperados, pois, depois de observarem o pai dela retornar pelo caminho que outrora percorrera, trataram de segui-la.

Gritaram o nome dela diversas vezes, mas facilmente a perderam de vista em meio aos guarda-chuvas coloridos e os carros que se cruzavam na rua.

Vocês a vêem? — Kai olhava para todos os lados, debaixo da chuva, ao cargo que as gotas engrossavam.

Não. — Ryūma respondeu com decepção na voz. — Vamos nos separar e procurá-la.

Enquanto o primeiro pegou o caminho da direita e o segundo o da esquerda, Rei e Naoki tomaram a direção restante.

Quando o sol se pôs, e um manto estrelado uniu-se às nuvens cinzentas de outrora, já quase não haviam pessoas na rua. Estava frio, e o clima em geral era úmido por causa da chuva, de modo a varrer toda a vivacidade que comumente preenchia a cidade. Um carro aqui e ali cruzava o asfalto, erguendo ondas de água que se espalhavam pela calçada, e havia um quê de melancolia pairando no ar.

Em passadas largadas, e pisando sem resguardo sobre as poças no chão, Kai só parou quando havia alcançado os portões da escola Shunkashūtō. Estava ensopado, com o uniforme colado ao corpo definido, e seus tênis emitiam sons atípicos por causa da água dentro deles. Respirava ofegante afim de retomar o fôlego. O frio não mais o incomodava, nem a fome que lhe assolara minutos antes, pois, depois de vasculhar todos os locais em busca da menina perdida, havia finalmente chegado à última opção de sua lista.

Enquanto escalava o portão de entrada, trancado em detrimento do horário, só conseguia pensar que a escolha do esconderijo era muito óbvia. Só havia um lugar que ele conhecia no qual a garota demonstrava se sentir totalmente confortável e ele sabia qual era.

Contornou o prédio vazio da escola, que tinha uma aparência realmente sinistra à noite, e alcançou a quadra de esportes. O portão já estava aberto. Notou, de imediato, um rastro de água que se iniciava na porta e continuava através do chão repleto de linhas e marcações. Seguiu-o, portanto, complementando-o com a água que ele mesmo carregava consigo.

Olhou ao redor, procurando pela menina, mas foi só quando abriu as portas do depósito — onde, dias atrás, ouviu-a falar de si em prantos que estava guardando para si há muito tempo — que a encontrou encolhida, molhada e abraçando os joelhos, enquanto escondia o rosto entre eles, perto de uma das caixas de papelão.

Eu sabia que estava aqui. — Ele murmurou em meio a um suspiro triste.