Outono

Capítulo 2 — Porta Secreta;


Ficou encarando o garoto ali parado por mais tempo do que foi capaz de perceber. Decidiu, por fim, andar, permitindo que seus pés se movimentassem, um após o outro em uma incerta troca de passos, na direção dele. Hal manteve os olhos fixos na garota ruiva que parecia mais perto a cada segundo e ela, em resposta, devolveu o olhar na mesma intensidade. Todo o prédio escolar tinha mergulhado na escuridão e estava cercado pela ausência de som que ela descobriu apreciar tanto.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— O que você ainda está fazendo aqui? — Foi ela quem interrompeu o silêncio incômodo que se instalou entre eles.

— Outch... — ele fingiu dor. — Essa doeu.

— Não, não é isso, eu... — gaguejou; se embolou nas palavras e precisou de alguns segundos para organizar as ideias. — Eu quis dizer que já é bem tarde.

— Eu sei. — Respondeu. — Isso também vale para você.

Ela ergueu a sobrancelha.

— Eu sempre saio tarde porque eu tenho treino depois da aula.

Geez... — suspirou o moreno. — Ainda é difícil para mim acreditar que você realmente faz parte do time de basquete.

— Por que? — Franziu o cenho.

— Porque você nunca foi, exatamente, uma pessoa atlética. — Como se tivesse percebido o teor dúbio de suas palavras, coçou a cabeça e balançou as mãos em negação. — Quero dizer, você nunca pareceu se interessar por esportes tanto assim.

Uma pausa foi feita e eles deram início a uma caminhada para além dos portões em direção a penumbra de uma esquina perpendicular à construção. Ficou subentendido que eles caminhariam juntos para casa uma vez que moravam a algumas quadras de distância um do outro e um pouco mais que isso da escola. Emiko endireitou a bolsa no ombro e Hal apertou o casaco do uniforme em torno de si. Uma brisa fresca soprava entre eles depois de chacoalhar as folhas de uma árvore próxima.

— Você tem razão. — Ela retomou o assunto de repente. — Eu gostava do clube de teatro, e do de literatura também.

— É, eu lembro, você sempre gostou muito de ler, de escrever, desse tipo de coisa nas quais eu, eu sinceramente, sou um desastre. Você parecia bem empolgada com os clubes antes de—

Ele se calou.

Novamente a quietude tomou conta do diálogo e enquanto os únicos sons ouvidos eram os passos ritmados dos dois que continuaram caminhando mesmo assim.

— ... Desaparecer? — Ela completou em um tom sério.

— Sim.

A atmosfera descontraída que os cercava se esvaiu tão depressa quanto o vento que passou. Ambos estavam desconfortáveis. A garota o olhava de soslaio, tentando ver o rosto dele, enquanto ele, sério, mantinha a visão fixa em um ponto qualquer da trajetória a frente. A tensão entre eles era tão pesada que chegava próximo de ser palpável.

Depois de quase um minuto inteiro de silêncio, Emiko suspirou e reuniu coragem para falar de novo. Seus pensamentos estavam um pouco desorganizados e ela sentia um aperto no peito: discreto, mas forte o suficiente para fazê-la ter de pensar duas vezes no que ia dizer. Tratava-se de um assunto delicado sobre o qual ela não esperava ter de se abrir tão cedo, ainda que quase dois meses tenham se passado desde o evento em questão, porém, graças ao rumo que a conversa tomou e o grau de importância da pessoa que estava ao lado dela, sabia que não ia, e talvez não devesse, conseguir escapar.

— Eu não fiz aquilo de propósito.

— O quê? — Perguntou ele.

— Desaparecer. — Repetiu. — Eu não desapareci de propósito e você sabe disso.

— Você poderia ter ficado. Aqui você teria o apoio dos pais, dos seus parentes, de... — uma pausa se seguiu. — De mim.

Ela engoliu em seco.

Aquela era uma conversa difícil demais e ela não sabia se estava pronta para tê-la. Ainda que tivesse consciência de que ali, naquele momento, a ferida já tinha sido cutucada e agora era impossível voltar atrás. Pretendia iniciar o ano letivo sem ter que falar daquilo com mais ninguém. Diferente das férias de primavera, que passou respondendo perguntas sobre seu bem-estar e convencendo as pessoas ao redor de que não precisava de nada, ponderava seriamente em colocar uma pedra naquele assunto e discuti-lo apenas consigo mesma.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Eu entendo que foi difícil para você e que— ele continuou, mas foi interrompido pela parada súbita da menina na calçada.

— Não, você não entende. — Ela baixou a cabeça suavemente de modo que sua franja alaranjada acobertasse seus olhos trêmulos. — Desculpa, mas você não entende. Você não tem ideia de como foi.

Faltavam apenas alguns metros para chegarem à fachada do apartamento do rapaz. Pararam no meio do caminho, sob uma árvore enraizada dentro do terreno de uma casa grande, cujas folhas escapavam sutilmente por cima do muro amarelado e gasto e se insinuavam na direção dos dois.

— Eu tentei negar por um tempo, dizendo a mim mesma que não passava de um pesadelo, que eu ia acordar a qualquer momento e tudo ia estar bem, exatamente do jeitinho que estava no dia anterior, e eu esperei acordar por muito, muito tempo, enquanto as pessoas tentavam me confortar e só faziam parecer que era, de fato, real. E eu não queria que fosse. Porque talvez, se eu desejasse com muita força, a verdade não passaria de um sonho ruim que eu tive por ter comido demais no meu aniversário. E eu acreditava tanto nisso que eu tinha certeza de que não saberia o que fazer se não fosse exatamente aquilo; só um sonho ruim.

Hal a ouviu atentamente, sem dizer uma única palavra, mas incapaz de encará-la diretamente. A medida que as palavras da ruiva penetravam seus ouvidos, e o vento gelado o envolvia em uma rajada rápida, mas intensa, sua mente era assolada por imagens de um passado no qual ele foi forçado a observá-la partir: a parte traseira do carro negro, gradativamente, desaparecendo no final da rua. Naquele momento ele soube que a Emiko que ele conhecia, e aprendeu a amar, não seria a mesma quando retornasse. Se retornasse.

— Eu não queria desaparecer, eu nunca quis, eu só... não queria ficar aqui. — Finalizou.

Emiko não queria mais falar, não queria mais lembrar, não queria mais sentir.

— Eu esperei você. — Ele disse.

Ela finalmente ergueu o olhar.

— Eu esperei você por dias, por meses, eu esperei você todo esse tempo em que você esteve fora. — Seus olhos acobreados a encararam com uma firmeza que quase assustava. — E por mais que eu te esperasse, que eu desejasse que você aparecesse lá no ponto onde pegávamos o ônibus que nos levava à nossa sorveteria favorita, do outro lado da cidade, como fazíamos todos os domingos, você nunca estava lá. Eu te procurei em todos os lugares. Eu sabia onde você estava, sim, mas eu te procurei em todos os lugares mesmo assim. A Chiyoko e eu, nós...

Nesse momento, ela suspirou, parecendo ainda mais desconfortável, e ergueu a mão para que ele parasse de falar. Ele, por sua vez, o fez, com uma expressão dolorida no rosto. Queria explicar a ela as circunstâncias que o levaram a namorar a outra garota. Que tinha sido por carência, por medo da solidão, por temer que Emiko nunca mais voltasse.

— Você não tem que me dar nenhuma explicação. — Segurou com firmeza na alça da bolsa. — Nós não namorávamos nem nada parecido. E você parece feliz; ela parece também estar cuidando bem de você também. E não tem nada de errado nisso.

Hal não estava satisfeito com a resposta, porém, por uma razão que ambos entendiam, não havia nada que ele pudesse fazer a respeito. Tinha para si que não planejava ter aquela conversa, que ela simplesmente aconteceu, e agora ele não sabia o que fazer com ela.

Com Emiko.

Ela sentia o coração sufocar. Queria ir embora, queria fugir dali, ir para casa e se livrar do nó que amordaçava sua garganta. Embora tivesse sido capaz de evitar aquele embate por quase um mês, desde que retornara, sabia que uma hora ele aconteceria. E quando finalmente o momento chegou ela não tinha ideia de como proceder. Tinha conhecimento que teria que voltar e endireitar as coisas que deixou para trás tão repentinamente, junto das lembranças dolorosas que ela quis desesperadamente esquecer, mas só agora tinha vislumbrado o quão difícil ia ser.

— Emiko, eu... — ele tentou falar mais uma vez.

— Eu preciso ir. — Ela disse, atropelando-o, pressionando os lábios um no outro. — Te vejo amanhã na escola.

Em passos apressados, a garota, com o olhar desviado, deu as costas ao moreno e recomeçou sua caminhada de volta para casa. Desta vez sozinha. Deixou para trás um Hal preocupado, e apreensivo, que só tirou os olhos dela quando, depois que ela dobrou na esquina, ele já não mais pôde vê-la.

Assim como da última vez.

O véu escuro da noite a envolvia como os grilhões enferrujados de um prisioneiro. O som do atrito entre a sola dos seus sapatos e o chão ecoava pela rua deserta atrás dela e os olhos da menina, ainda ocultos sob a franja, vagueavam pela paisagem cinza sem, de fato, se focarem em nenhum ponto específico. Seu peito inflava e murchava por baixo do uniforme azulado --- que nela era composto do modo que o masculino exceto por uma saia de prega ao invés da calça --- suavemente manchado de suor, e fios desalinhados escapavam do rabo-de-cavalo feito de qualquer jeito, ao passo que ela de era de súbito assaltada por um desejo aterrador de finalmente chegar em casa.

O retumbar do coração dentro do peito era tão alto que Emiko quase tinha a impressão de que o som escoava para fora dela. Guiava seus passos pelo acaso e apenas reproduzia o caminho que percorria todos os dias. A imagem de Hal não saía de sua mente, as palavras dele ecoavam feito disco arranhado, machucando os ouvidos, e ela precisava expurgar aquela sensação ruim vez ou outra através de suspiros rápidos e impacientes. E quanto mais ela tentava não pensar, desviar sua razão para um ponto distante, mais aquela consternação se intensificava.

Quando avistou o portão escuro de sua residência, uma suave sensação de alívio chegou para ela. Apertou o passo e alcançou-o rapidamente, forçando a fechadura de ferro para baixo, como normalmente tinha que fazer, e entrou. Havia uma área aberta entre a entrada e a porta da frente da casa, coberta com um pasto aparado, e uma grande macieira na lateral direita. Duas lâmpadas envoltas em luminárias antigas, negras, e de formato quadrado, iluminavam a fachada e o tapete surrado de boas-vindas no chão.

Tirou a chave da bolsa, emitindo um audível tilintar por causa do impacto entre os penduricalhos de metal e o chaveiro arredondado em forma de caveira, e limpou os pés no tapete rígido antes de entrar.

Todo o lugar estava escuro. A luz da lua que entrava pela janela da sala permitia que o contorno do sofá, da estante de madeira, que abrigava uma televisão de tamanho médio, e um quadro na parede da esquerda fossem percebidos, mas a única coisa viva ali eram as cortinas que resvalavam sobre os filetes de vento que deslizavam para dentro.

Lançou um rápido olhar para a cozinha, logo ao lado, e subiu a escada que separava os dois cômodos. Alcançou um estreito corredor que se dividia em dois, delimitado por uma mesinha de canto ornamentada por um vaso com duas ou três rosas vermelhas, e foi direto para a direita sem nem vislumbrar a outra direção. Haviam dois quartos em seu caminho: a porta e a luz do primeiro estavam acesos enquanto o segundo, no fim do corredor, permanecia encerrado.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Quando seus passos a levaram a cruzar a porta do primeiro aposento, seus olhos castanhos, por reflexo, se focaram lá dentro só para avistarem uma mulher. Iluminada pela luz pífia de um abajur, ela, que tinha os cabelos tão ruivos quanto os de Emiko, estava deitada na cama, coberta até o tronco pelo cobertor, e com um livro em mãos. Havia um volume no cobertor atrás dela que dava a impressão de que era alguém adormecido. Quando percebeu estar sendo observada, virou o rosto na respectiva direção e sorriu para a menina.

— Oi, querida. — A voz dela era suave, macia, e havia uma clara bondade estampada. — Chegou um pouco mais tarde hoje. Aconteceu alguma coisa?

— Não, mãe. — Respondeu Emiko demonstrando estar um pouco desconcertada. — Eu só... eu vim caminhando devagar e perdi a noção do tempo. Não foi nada.

A mulher tinha um semblante doce e singelo. Aparentava estar genuinamente preocupada com a filha. A última, em contrapartida, só pôde sorrir de modo circunspecto, sem explicitar seu estado verdadeiro, principalmente por não ser ela mesma capaz de compreendê-lo, e deu um novo passo em direção ao último quarto.

— Eu estou um pouco cansada. — Anunciou. — Boa noite.

Fitou a mãe lhe oferecer um sorriso condescendente em resposta e rumou em direção ao próximo quarto sem mais nada dizer. Girou a maçaneta e empurrou a porta, deslizando para dentro de sua dependência pessoal, e fechou-a atrás de si. Atirou a bolsa ao lado da cama e jogou-se nela imediatamente.

Um longo e profundo suspiro escapou por entre seus lábios finos e dispersou-se no ar. Com semblante melancólico, e profundamente pensativo, Emiko direcionou seus olhos para o teto ficou ali, encarando a superfície lisa e um pouco gasta, por vários minutos até que se sentisse tranquila. Seus pensamentos estavam confusos, desordenados e fora do lugar, fazendo tudo parecer estranho e desconexo.

E havia aquela sensação.

Aquele percalço dentro do peito ainda fervia desde a conversa com Hal. Era uma inquietação que doía fininho, como um beliscão, como uma faca já fincada, mas que não penetra totalmente, e que fica ali — machucando e alfinetando — sem de fato dar fim ao sofrimento. Ela levou as mãos aos cabelos e afundou os dedos entre os fios, segurando-os com uma firmeza delicada ao mesmo tempo em que coçava o couro cabeludo.

— Droga... — rosnou.

Hal e ela eram muito próximos. Além de interesses em comum, eles sempre se deram muito bem porque tinham personalidades compatíveis. A família de Emiko sempre gostou e permitia, com claro contentamento, que ele frequentasse sua casa. Até comentavam, para o desconforto dos dois, que eles formavam um belo par. E embora nada de concreto tivesse em algum momento acontecido entre os dois, depois de um tempo, a garota passou a acreditar que realmente existia alguma coisa ali. Ela passou a gostar realmente dele e tinha a leve impressão sobre a reciprocidade daquele sentimento.

Mas então tudo aconteceu.

E foi tão rápido, tão violento, que abalou suas estruturas firmes.

E ela fugiu.

Encarar as coisas depois de tanto tempo fora, tanto em corpo quanto em alma, estava se mostrando uma tarefa mais árdua do que ela esperava. Tinha certeza que nada estaria igual, exatamente como deixara — até porque isso não estava nem perto do topo da sua lista de preocupações quando decidiu ir embora —, todavia só agora estava sentindo os efeitos de suas ações impulsivas.

E não era nada bom.

Levantou-se da cama com a convicção de que ficaria zonza se permanecesse mais tempo deitada. Saiu pela mesma porta por onde entrara minutos atrás e atravessou o mesmo corredor com o vaso de flores no meio em direção à outra metade outrora ignorada. Tomou o cuidado de fazer o mínimo de barulho possível ao passar pelo quarto da mãe, que — constatou mais tarde — tinha pegado no sono, e passou pela entrada da escada.

E lá estava ela.

A porta.

Aquela porta.

Por fora não tinha nada demais. Era marrom, lisa, com uma maçaneta um pouco mais clara. Permanecia encerrada no mais profundo silêncio no único lado do corredor que mantinha a luz apagada. E ainda assim, em toda a sua simplicidade, guardava todas as memórias restantes de alguém que ela, as vezes, não sabia se queria lembrar ou esquecer para sempre. Confinava em seu interior, há muito envolvido pelas trevas do abandono, todas as lembranças, das importantes às simplórias, e resquícios de uma passagem pela terra.

Ela apoiou a mão trêmula na superfície retilínea.

Era estranho como antes teve tanta vontade de fugir, de correr desesperadamente daquele lugar, e agora estava sendo tragada de volta para ele.

Abriu a porta devagar, mas foi incapaz de evitar que um ruído agudo fosse emitido. Captou, de relance, silhuetas de diversas caixas no centro do cômodo que parecia um quarto comum. Tinha uma cama, um armário grande e uma escrivaninha semelhante a que ela também possuía. Estava escuro demais para que ela conseguisse ver tudo. Havia uma atmosfera mórbida no ar, que pairava com uma sutileza quase delicada, que denunciava, em partes, a quem o aposento pertencia.

De súbito, seus olhos se voltaram imediatamente para a janela ao perceber ali uma figura humana, parada, com sua silhueta contra a lua perfeitamente desenhada.

A voz falhou.

— Hibiki? — chamou ela; mesmo sem acreditar no que saía da sua própria boca.