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Capítulo 8 - De Volta à Vida




Além de fétido e corrosivo, o mar de sangue era revolvido por uma tempestade.



Ele estava cego pelo brilho ofuscante dos raios, e surdo pelo estrondo dos trovões. Mas percebeu que um par de mãos fortes o tirava da correnteza tingida de carmesim, e o sacudia com mais força que a maresia furiosa.



Sentia-se zonzo ao recuperar a audição e deparar-se com uma voz rouca e estranhamente familiar, distorcida em berros desesperados. Distinguiu, com muito custo, o próprio nome entre os gritos, e logo caiu de volta à inconsciência.

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A tempestade, que era de sangue, tornou-se de estilhaços e areia, que o acordaram com a pontaria certeira e irada de milhares de chicotes.



A tortura não surtia a mínima dor, enquanto ele sentia o amparo de uma mão pequena, calosa e morna. Era tão gentil e aconchegante... Desejou ter forças para segurá-la por mais tempo. Embora já soubesse que aquela mão pertencia a um homem em perigo de morte, gostaria de ajudá-lo a escapar da tempestade e saber quem ele era.



A tempestade passou e cedeu lugar a uma única nuvem, escura, fria e pesada.



E outra mão, gelada, macia e exausta, fazia uma trilha afetuosa, fraca e tranquila em seus cabelos.



Mais alguém fora abandonado, sozinho, no frio. Alguém cujo toque poderoso e gentil teimava em mantê-lo, contra a própria vontade, vivo e consciente.



A nuvem dissipou-se numa chuva, incontáveis gotas de neve e granizo pesados, que despencavam num ritmo tranquilo e regular.



O som da chuva mantinha o mesmo ritmo contínuo e teimoso, enquanto transformava-se lentamente. Um martelar...? Ou seria um batedor de estaca, quem sabe, o tique-taque de um relógio...?



Aos poucos, ele conseguia concentrar mais atenção ao ritmo agudo e irritante, e descobriu que era o bipe de um monitor cardíaco.



Oh, droga.
Mycroft estava certo, seu pensamento realmente ficava cada vez mais lento.



E embora ele já houvesse perdido a noção do tempo, sabia que era a segunda vez, em poucos dias, que era obrigado a ceder à maldita incapacidade do ruivo em errar uma dedução.



Precisou de tempo e esforço para abrir os olhos pesados e ajustar a visão embaçada à claridade ofensiva; mas não tardou em reconhecer um lugar a que já fizera uma quantidade absurda de visitas: a UTI do hospital St. Barts.



Não teve dúvidas em saber que fora, de fato, despejado do coma de volta à realidade, porque, assim como seus sentidos e sua mente o avisaram, ele estava sozinho, no frio. Nem se preocupou em procurar pela voz, murmurou para que apenas a própria alma ouvisse.



– Mycroft, por que você não me deixou dormir?



Porque você é meu único irmão e eu jamais te deixaria morrer desse jeito
, lamentou outro palácio mental, cujas janelas azuis-acinzentadas liam, através do vidro, os lábios do recém-acordado Sherlock.



Três dias e três noites infernais, sem saber se juntava forças para tentar ter esperanças, ou para a notícia funesta com que sua mente lógica assombrava o coração gelado e dolorido. Mycroft afastou-se para alcançar o celular no bolso e avisar o bondoso Gregory. Admirou-se com o deleite ao prever a voz e a expressão de alívio e felicidade que o policial faria.



Talvez, mais tarde, ele devesse seguir o exemplo do garoto e pedir ajuda ao generoso homem da lei. Se tudo desse certo, a fase de desintoxicação que se aproximava seria ainda mais árdua.



O tempo passava, incontável, insuportável, inexorável; com vontade prendê-lo à cama de hospital, devorá-lo, matá-lo de tédio. Ele perdia a conta dos minutos, horas, dias, semanas, meses. O padrão do monitor cardíaco transformou-se no som do relógio de pêndulo da clínica, que soava um sino irritante e anacrônico, a qualquer hora que alguém achava necessário juntar, contar, examinar e repreender cada um dos viciados que se isolavam ali para recuperação.

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Mycroft e Lestrade revesavam-se em visitas quase diárias.



Mas nem sob tortura Sherlock confessaria, nem mesmo para si próprio, o quanto ansiava e necessitava da companhia deles. A última vez em que esperara por alguma coisa com tanta ansiedade, foi uma das últimas consultas de Redbeard ao veterinário. Ele apenas subira, apreensivo, no portão de casa, ansioso pelo retorno do amigo, já muito velho e doente àquela época.



– Cadê o Redbeard? Ele vai ficar bem? Ele vai voltar logo?



As grades de ferro suportavam o peso da criança, que ignorava o frio, o vento e a neve, em obsessiva ansiedade e agonia pelo estado do melhor amigo.



Muitos anos haviam se passado, e já homem feito, ele se moldava a outro portão, na mesma espera estoica, na mesma posição desconfortável.



Greg já conhecia a criança perdida escondida nos olhos argutos e penetrantes do rapaz. Conheceu-a afogada na névoa da cocaína, delirante no brilho insano da possibilidade de uma solução para um mistério; desesperançosa na expressão carente com que Sherlock, recém-desintoxicado pela penúltima vez, esperava por ele, altas horas da noite, à porta da casa que havia sido o cenário do seu infeliz último casamento.



E para que ambos não fizessem nenhuma loucura perante os gritos do mais jovem praguejando contra o visitante, Deus e o mundo; ou suplicando por casos, o moreno grisalho trazia uma caixinha de Cluedo.



Na visita seguinte, Holmes ria com gosto da corrida desabalada do irmão mais velho, que perdera a noção do tempo, tão absorvido estava, com ele, no mistério do Caso Degringolado, e se atrasara para todas as reuniões e compromissos do trabalho, marcados para aquela tarde... Bendito seja Gregory Lestrade e seu jogo de Detetive!



A partir daquele dia, Sherlock Holmes sempre tiraria o jogo da caixa, num momento de tédio ou desânimo, com uma sutil ternura oculta sob a ânsia de acalmar seu cérebro hiperativo.