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Capítulo 7 - Vontade de Viver




Mesmo enquanto a névoa de dor, uma variante do pavor do pesadelo, a contemplação de um pequeno Sherlock mutilado, torturava Mycroft, uma ideia discreta, o incômodo do movimento espontâneo e indesejado da bagunça em algum cômodo de seu palácio mental, teimava em tentar chamar a atenção do estrategista ruivo.

Desde pequeno, seu irmão caçula "brincava de cientista" com quase o mesmo entusiasmo que "brincava de pirata". Embora a última opção fosse a preferida de todos da casa, pois frequentemente o único envolvido nas aventuras marítimas do garotinho era o paciente cachorro Redbeard, e praticamente todos os estragos causados pelos teatrinhos improvisados do pequeno se restringiam a uma parte do jardim da mansão. Até que as ilhas do tesouro foram abandonadas em prol das experiências, cuja principal cobaia era o próprio Sherlock, que usualmente só parava quando um adulto o via queimado ou ferido.

Desde a mais tenra idade, ele era constantemente viciado em qualquer coisa que lhe ocupasse o intelecto. Depois de adulto, aparentemente, ele dirigiu o hábito para a cocaína. E ao conhecer o policial Lestrade, para os casos não-solucionados pela New Scotland Yard.

Enquanto houvesse um brinquedo para distrair a mente genial que guiava o coração imaturo, Sherlock sempre superaria o tédio e o passado, e conservaria a vontade de viver.

Porém, seria possível que o isolamento absoluto, a falta de uma figura adulta em sua vida, alguém capaz de guiá-lo e oferecer ternura, faria com que ele perdesse o controle da própria brincadeira inconsequente, a ponto de roçar a morte... com uma overdose?

Sua mente buscava, sem sucesso, reconstituir a sequência de ações que levou o jovem à dosagem suicida; enquanto seu coração se partia ainda mais, ao perceber, sob a máscara de oxigênio, a voz rouca do irmãozinho balbuciar fracamente, quase inaudível, chamando pelo pai e, com um fraco esgar que em algum lugar de sua inconsciência talvez fosse um riso, por Redbeard.

O diplomata secreto soltou um suspiro triste e quase imperceptível. Desviar os olhos não apagaria de sua mente a consciência da realização de um pesadelo. No entanto, o simples fato de ver o irmão, uma das pouquíssimas pessoas com quem se importara em toda sua vida, naquele estado decadente, era algo que arrancava todas as forças que seu coração ferido e seu corpo exausto tentassem juntar.
E sua amargura transformou-se em uma desagradável e constrangida surpresa, ao desviar a visão para o corredor e deparar-se com outro par de olhos exaustos e emocionados. Os olhos de Gregory Lestrade.

E estava escrito, naqueles úmidos olhos ricamente castanhos, que muito da emoção que os fazia brilhar, vinha da contemplação da inconsciência e do desespero daqueles irmãos. Um desespero de que ele próprio compartilhava, ao culpar-se por acreditar ter agido pouquíssimo, e demasiado tarde, para salvar o jovem amigo.

Com um esforço hercúleo, Mycroft afastou a mão que afagava os cachos do mais novo. Sherlock não se quebraria, não mais do que já estava, se eles rompessem o contato. Aquele toque frio e macio podia até transmitir um alívio ilusório, a noção da presença frágil do caçula no mundo dos vivos. Mas não o forçaria a recobrar a consciência.

Em poucos movimentos cuidadosos e sem barulho nenhum, o Governo Britânico saiu da UTI, ao encontro do policial.

– Muito obrigado por me chamar, inspetor.

A mesma voz eloquente e aveludada que o saudou, na rua, diante do hospital. Mas o tom claramente sincero fazia o som elegante ainda mais agradável. Greg tentou, em vão, conter um pequeno sorriso, que começou a confortar, junto com as palavras gentis, o coração do interlocutor.

– Eu é que agradeço, sr. Holmes. Só queria ter chegado no "apartamento" dele mais cedo... E talvez nada disso teria acontecido.

As pessoas comuns se iludem com tanta facilidade, notou o aristocrata, com pena da bondade ingênua de Lestrade. Mas a fala dele despertara uma possibilidade para compreender como e por que o irmão se entregara, pela última vez em um tempo considerável, a tamanha loucura.

– O senhor poderia me levar até o local em que encontrou Sherlock... por favor?

A educação impecável, que tornava o pedido quase hesitante; e naquele magnífico olhar azul-cinzento, uma estranha necessidade de descobrir algo que parecia insondável. Diante de tal apelo, tudo que Gregory podia fazer era concordar.

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Apenas três passos das suas pernas longas bastavam para atravessar aquela miserável cozinha improvisada. A mesa bamba de madeira compensada ordinária; a pia gotejante, os armários vazios; restos de jornais, substâncias químicas e cacos de vidro...

Bom Deus, qual resolução maldita convencia Sherlock a permanecer escondido naquele buraco imundo?! E era de se admirar que ele não estivesse ferido quando Lestrade o levou ao hospital.

A economia de movimentos com que Mycroft percorria aquela bagunça era proporcional à infeliz facilidade com que seu palácio mental reconstituía a sequência dos acontecimentos anteriores à ligação que o chamou até St. Barts. No fundo de seus olhos, no fundo de sua mente, ele revia, milhares e milhares de vezes, a imagem ofegante do irmão enquanto se injetava e debatia; a agonia desesperada do pobre Gregory, como se perdesse um filho.

Ele já se sentia como se houvesse perdido o irmão e sufocou a agonia exatamente semelhante que sentia, ao abaixar-se para pegar os aparentes restos de um prontuário policial.

– Suponho que este era o caso em que estavam trabalhando ontem. - ele estendeu os restos da pasta, e as fotos da vítima eviscerada, para o inspetor, após folheá-la e deduzir o estopim para a insanidade do irmão menor.

– Sim, era este mesmo. - Greg estranhou a atitude apática do acompanhante e aceitou o arquivo de volta. - Mas Sherlock não viu esta pasta. Ele saiu da cena do crime, praticamente correndo, e como eu costumo visitá-lo, pra ficar de olho nele, trouxe o prontuário do caso... Um dos piores que já peguei em toda minha carreira, posso lhe garantir, sr. Holmes...

Ambos fizeram uma pausa ao ouvir um toque de celular. O estrategista do governo conferiu a mensagem recém-chegada com decepção; era uma péssima hora para ser afastado do estado grave do caçula pelo trabalho. A gravidade do chamado era ainda pior e não lhe dava escolha. Mesmo assim, sua atenção ainda estava na voz rouca e cansada do inspetor, que, num tom baixo, falava mais para si mesmo.

– Mas não entra na minha cabeça, como isso tudo pode ter acontecido. Simplesmente ainda não entra...! Quanto menos tempo entre um caso e outro, e quanto piores eles são, mais esse menino fica entusiasmado. Então por que, por que, ele tentou se matar?!

A pergunta parecia um eco ofensivo e amargo no silêncio da madrugada, um eco que fez o grisalho perceber que seus pensamentos adquiriam uma voz mais alta que a da própria mente. Quando tentou, constrangido, desculpar-se com o homem que trouxera ao apartamento esquálido, percebeu-se num vácuo, já que o ruivo elegante descia as escadas decrépitas, falando ao celular. Quando enfim conseguiu alcançá-lo, fora do prédio, viu um carro preto, de vidros fumê, se aproximar do meio-fio, com a mesma rapidez e sutileza com que Mycroft lhe disse uma frase pequena e significativa.

– Acontece, meu caro inspetor, que o pior assassinato possível já aconteceu para nós.

E enquanto ele se afastava para entrar no luxuoso Jaguar preto, Greg compreendeu que os irmãos Holmes haviam perdido um ente querido em circunstâncias traumáticas e, provavelmente, criminosas.