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Capítulo 4 - Vatican Cameos



– "Vatican Cameos"... Mike, o que isso quer dizer?


Não era a melhor explicação do mundo, mas o irmão a deu assim mesmo, ciente da curiosidade insaciável do pequeno, que ao invés de pedir inutilmente que o acompanhasse nas brincadeiras, como sempre, sentava-se na sua escrivaninha de madeira maciça, sem postura nem cerimônia, quase caído sobre seu livro de códigos militares.

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– Significa um campo de batalha, todo minado com armadilhas. Alguém vai morrer. [1]



Greg e Sherlock desceram da viatura, diante de uma construção pré-fabricada, numa área industrial às margens do Tâmisa. O futuro prédio tinha apenas dois andares revestidos com as típicas placas de concreto, e o restante da armação em barras de aço projetava-se rumo ao céu nublado, transmitindo ao observador a sensação lúgubre de estar diante de um esqueleto exposto.



– Olá, senhor... Você de novo, aberração?! - Sally recebeu-os. Trazia nas mãos a câmera com que fotografava a cena para a perícia. - Acho que ninguém gostaria de pôr os olhos naquilo mais de uma vez... Nem mesmo você. - ela apontou para Holmes uma última vez e afastou-se.



A dupla de detetives entrou na construção semipronta e deparou-se com alguém que morreu em Southwark, em algum ponto perdido do tempo, entre o sábado e o domingo. Seria impossível identificar o cadáver, pois as mãos estavam decepadas; nem haveria qualquer pessoa capaz de reconhecer suas feições, não depois que a toda a pele fora arrancada do corpo. O horário da morte só poderia ser estimado, de longe, pela análise dos órgãos espalhados pela mistura de barro e cimento que compunha o piso.



Gregory conteve a onda de bile que lhe subia pela garganta em ódio, repulsa, impotência e ânsia de vômito, e virou o olhar para o magrelo e usualmente apático companheiro, à espera da típica reação entusiasmada diante de um enigma, ou de alguma indagação manhosa e decepcionada, resultado de uma primeira observação, que quase sempre servia de ponto de partida.



Chocou-se, porém, ao ver os olhos esverdeados com o dobro do tamanho, as íris pálidas quase totalmente cobertas de preto pelas pupilas dilatadas, sinais pungentes do choque que emergia à respiração rasa e entrecortada, e ao rosto que perdia a costumeira expressão fleumática.



– Você está bem? - indagou Greg, assustado com a face que o colega nunca havia lhe mostrado.



A voz rouca do homem da lei pareceu despertar o rapazinho de um transe profundo, do qual ele saiu com um suspiro quase inaudível.



– Te ligo mais tarde, Lestrade. - respondeu o consultor, antes de dar as costas ao intrigado interlocutor e desaparecer da cena do crime.



Ele subiu as escadas do prédio em ato contínuo, numa correria desabalada, e só se lembrou de respirar depois de fechar a porta atrás de si. Respirava pesadamente, como um afogado que emergia brevemente à superfície do mar agitado. Em breve, não precisaria mais lembrar-se de como respirar.



Conhecia todos os lugares onde podia comprar produtos melhores, sabia muito bem, mas não conseguiria negociar uma quantidade maior com apenas 100 libras. Era todo o dinheiro que tinha escondido em casa, ganho dos poucos civis que encomendavam sua consultoria.



Desembrulhou as pedras, sabendo que eram bastante impuras e continham algo mais que cocaína. Até o azarado dia em que conhecera o maldito policial honesto, que o adotou a contragosto de ambos, e lhe ofereceu outro antídoto para a solidão e o tédio, ele poderia até se divertir com o pensamento de que podia dissolver aqueles conteúdos nos ácidos que resultaram das experiências sobre a mesa da cozinha.



Era tão simples e destruidor como a própria Química. Era apenas um problema de cálculo, uma questão de ácidos e bases. Não se importava com as consequências, com o fato de que elas, aos poucos, necrosavam todo seu corpo. Não se importava com o fato de, mesmo sem sentir prazer nenhum com elas, precisar de cada vez mais. Elas lhe permitiam algo que ele não conseguia fazer nem mesmo com a técnica do Palácio Mental: esquecer a amargura da mãe, a preocupação do irmão mais velho, a culpa pela morte do pai, esquecer verdadeiramente de todas informações que ele normalmente acreditava ter conseguido deletar.

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Informações que piscavam como luzes teimosas e fantasmagóricas de neon no cérebro hiperativo que o torturava dia e noite, e intensificava a nitidez de memórias cobertas de sangue. Lutando contra as imagens com a mesma agonia do patriarca, ele recolheu o composto aquecido com a seringa e injetou-se pela primeira vez em meses. Mas o efeito não veio.



Tomado de desespero, ele repetiu a dose. Seu corpo estremecia em descontrole, seus sentidos se aguçavam, e exatamente como em todas as outras vezes, não sentia nenhum prazer. Tinha oito anos outra vez, e estava novamente escondido naquele armário, paralisado de pavor. Ouvia, ainda mais altos, pungentes e horríveis, os gritos do pai à mercê dos torturadores.



Injetou mais do composto, na ânsia de acelerar o efeito. Caiu pesadamente no chão e viu-o todo tinto de vermelho. Um forte cheiro metálico, uma onda de sangue, diretamente das lembranças do escritório do pai, e da cena do crime daquela tarde, invadia sua casa e trazia à deriva os restos mortais do falecido sr. Holmes e da vítima sem nome de Southwark. Numa tentativa de fugir daquela cena apavorante, buscou forças para aquecer, preparar e administrar outra dose. Lamentou que fosse a última e que também resultasse sem sucesso.



A malcheirosa onda escarlate inundava a casa cada vez mais, e nela boiavam os restos do seu primeiro caso, e os do mais recente, que se apresentara incapaz de resolver, além dos próprios, retorcidos e atrofiados pelo uso contínuo da cocaína; porém ele a contemplava em total tranquilidade e apatia, como se aquilo acontecesse com outra pessoa. Entregou-se à consciência de que não existia nenhum entorpecente, em nenhuma quantidade, potente o bastante para apagar aquelas imagens de sua mente. Detestou ser obrigado a ceder à pontaria infalível de outra das malditas deduções do irmão. Mas já que ele era estúpido o bastante para escutar, além do cérebro, o próprio coração, e importar-se, entregar-se aos erros humanos e à desvantagem, deixou-se flutuar, totalmente despedaçado, à deriva naquele mar de sangue. Estava mais que ciente de que acabava de realizar sua última experiência. Tudo que desejou foi repousar no vazio, mesmo que só por um instante.

Depois de entregar um relatório preliminar ao detetive-chefe inspetor e livrar-se de uma pequena parte de seu detestável trabalho burocrático, Gregory subia as escadas de um pequeno e antigo prédio de apartamentos em Camden Town. Não havia muito a fazer por aquele caso, exceto desejar que o assassino houvesse eviscerado a vítima depois de morta - sentia arrepios só de lembrar da visão macabra - e aguardar o resultado da análise das nojentas amostras, os órgãos daquele infeliz.



Aos olhos do grisalho oficial, trazer uma cópia do prontuário do caso para satisfazer a curiosidade de Sherlock parecia uma boa desculpa para distraí-lo - entenda-se fazer o garoto gritar um pouco menos - durante uma revista daquele muquifo não muito maior nem mais organizado que a penúltima moradia do sr. Concannon, o protagonista do primeiro caso daquele dia. Não que ele precisasse de uma desculpa para qualquer das visitas randômicas que fazia ao endereço do parceiro civil para certificar-se que ele não tornara a cair no vício.



Depois de tocar a campainha inúmeras vezes, sem ser respondido pelos usuais "Vá embora!!" ou "Cale a boca!!", e bater na porta frágil que precisava ser trocada há um bom tempo até quase derrubá-la, o oficial entrou, decepcionado com a ignorância do jovem ao seu conselho de trancar a porta, e intrigado, por poucos segundos, com o seu paradeiro, até encontrá-lo como menos queria.



Mais pálido que de costume, trêmulo e imundo, ainda com a seringa fincada no braço esquerdo, os lábios finos abertos, incapazes de respiração, e na expressão perdida e vazia, os mesmos olhos apavorados e dilatados da cena do crime.



O mesmo desespero com que os entes queridos rezavam, na capela do hospital, quando alguém de sua equipe se feria gravemente no cumprimento do dever. O mesmo horror de quando encontrou seu primeiro parceiro morto, em casa, exatamente naquela mesma situação. A mesma sensação pesada e sufocante de culpa.



Como pôde deixar aquilo acontecer pela segunda vez?! Como pôde deixar todos os sinais passarem despercebidos?!



Não podia se deixar levar por ela. Não podia deixar que aquele menino fosse morto pelo veneno que o escravizava até há pouco tempo, pelo parasita que matou seu amigo, que lhe havia ensinado tudo o que sabia sobre o ofício do detetive.



Tudo que Lestrade conseguiu fazer, antes de chorar, foi pegar o celular no bolso e chamar uma ambulância.



Os minutos passavam como séculos enquanto o veículo de socorro chegava ao hospital St. Bartholomew, e as teclas do celular pareciam ainda menores e totalmente embaralhadas à sua visão úmida e embargada. Mas após apenas dois toques, a ligação chegava ao destino, atendida por uma voz clara, aristocrática e elegante.



Mycroft Holmes.



Em outras circunstâncias, Greg teria vergonha de ligar para aquela pessoa. Lutaria contra o desejo e a sensação de nostalgia, que lhe lembrava a paixão com que acompanhava sua grandmère, durante a infância, na audição dos dramas e novelas narrados pelas vozes pacíficas, elegantes, quase irreais de tão encantadoras, dos artistas da era de ouro do rádio. Teria vergonha do impulso reprimido de implorar àquela voz eloquente e aveludada, que não se comparava a nenhuma das que ouvira em toda sua vida, que lhe falasse sem parar, por horas a fio.



Mas tudo que ele conseguiu dizer foi:



– Sr. Holmes, preciso que esteja em Barts, o mais rápido possível. Seu irmão acabou de ter uma overdose.



Do outro lado da cidade, em seu escritório em Vauxhall, totalmente sufocado pelo frio aperto de morte do pesadelo que iniciou seu dia, Mycroft teve forças apenas para desligar subitamente o celular e trancar a porta, antes que suas costas desabassem de encontro à parede e ele caísse sentado no chão, chorando amargamente.