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Capítulo 1 - Pressentimento




Ele acordou para o ar fresco do fim de tarde, muito mais frio e nítido com a falta do corpo pequeno e morno do irmão, que até há pouco se enroscara em seu colo como um gato preguiçoso, atrapalhando seu estudo mesmo quando caído num sono profundo, um aconchego sereno que o convidou a dormir também, e contrariar a implacável disciplina espartana que guiava todos os aspectos da sua vida.

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Mas não adiantava. Sempre que estivesse junto do caçula, qualquer tentativa de manter a postura, de esconder-se sob a confortável armadura fria a que estava acostumado, falhava miseravelmente.



Levantou-se da poltrona ampla de couro macio, apoiando-se nos braços de madeira de lei, com lentidão e receio dos estalos doloridos com que sua coluna protestaria pelas várias horas dormindo sentado. Espantou-se com a facilidade do movimento, ao sentir-se tão jovem, tão leve como se não pesasse mais que a luz tênue do pôr-do-sol que entrava pelas grandes janelas vitorianas da mansão, e coloria o ambiente com tons exóticos e elegantes.



A luz também projetava a sombra alongada e fugidia da criaturinha que acordara há pouco. Os passos, os baques e as gargalhadas denunciavam a sua proximidade e a alegria hiperativa com que ele brincava, e como de costume, destruía a casa.



E ele seguiu ao encontro do seu pequeno companheiro, sentindo-se absolutamente à vontade na casa onde ambos cresceram e compartilharam os anos mais serenos, e as memórias mais preciosas de suas vidas.



Até notar a ausência de um latido ofegante bem conhecido, a aura de som e sentimento que lhe transmitia a certeza de que seu precioso irmãozinho estava seguro e protegido com o companheiro de brincadeiras.



E o chamado da voz risonha e infantil estava cada vez mais perto.



– Mike...! Mike...!



Porém não suficientemente perto para alcançar a fonte doce e frágil que lhe invocava. A distância percorrida ou a velocidade das suas pernas longas eram indiferentes para a larga porta de nogueira envernizada, que permanecia fora de alcance, até espontaneamente se abrir para um corredor infinito, com milhares e milhares de portas idênticas, que revelavam apenas o vazio, trevas úmidas, malcheirosas e lugúbres como o interior de um caixão.



E ele corria desesperadamente, em busca da voz do caçula. Corria, fugia, temia pela vida daquela criança. Fora um tolo em deixar que seu inconsciente, seu coração, seus sentimentos, se ocupassem no reconhecimento daquele lugar. Não era a casa de sua família, era um palácio mental em ruínas, que desabava sobre ele e o menino.



Em respeito à dignidade daquela estranha estrutura, o colapso não fazia o menor ruído. Tudo era destruição e ânsia, luto e morte. Um silêncio que arrepiava o corpo e paralisava a alma, que foi interrompido, de repente, por um uivo longo e fantasmagórico.



Pouco depois, o próprio cachorro aparecia, depois de abrir uma das portas, revelando a carinha de piedade, os olhos espertos, e o passo manco de paciência e velhice, seguido de perto pelo movimento animado do dono.



– Mike! Até que enfim eu te achei!



Ele começou a se virar em câmera lenta, sabendo que reencontraria a voz doce, e o rosto inconfundível, apenas olhos enormes, covinhas sorridentes e cachos em desalinho.



– Você não vai trabalhar hoje?... Venha brincar comigo e com o Redbeard!



A voz era a mesma, mas a visão não era nada do que Mycroft Holmes estava preparado para contemplar, enquanto se sentia desfalecer de dor, pavor e agonia, diante de um pequeno Sherlock desfigurado, mutilado e coberto de sangue.



– ...!



O grito não saiu, o pavor, como um enorme e pesado bloco de gelo em sua garganta, sufocava-o. Não conseguia se mover, nem fazer um único som que fosse, quanto menos gritar, afogado no pesadelo.

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Desprezou-se pela sensação de dor, medo e impotência. Já se passaram tantos anos desde a última vez que sonhara... Seu único valor, sua única virtude e utilidade, era o cérebro, ele não podia, não devia sentir nada, não queria nem precisava de emoções.



Mas havia uma única, infeliz e agridoce sensação no sonho que era totalmente real. Não importava o quanto tentasse, sua alma sempre faria ouvidos moucos à costumeira filosofia de "importar-se é uma desvantagem", diante do inconfessável amor pelo irmão. Mesmo depois de décadas, parecia que a experiência de falhar com o caçula e o pai ainda deteriorava seu lúcido palácio mental, a ponto de esquecer, por instantes, a idade do homem que ele vira como uma criança pequena, e de sofrer com imagens de dor e morte dessa criança. Ele já tinha perdido Sherlock duas vezes, para as drogas e para os mistérios loucos e letais que o jovem chamava, num misto de ironia e reverência, o Jogo.



Ao menos agora o rapaz se dedicava a um passatempo quase menos autodestrutivo... E ele não tinha nada que se ocupar com farelos de pensamentos, ecos de pesadelos, emoções inúteis, enquanto estivesse envolvido nas árduas e deliciosamente desafiantes complexidades de seu trabalho no Governo Britânico.



Mas aquela pedra de gelo permaneceu o dia inteiro teimosamente no mesmo lugar, fechando sua garganta como uma sensação de morte.