O Grande Palco da Vida - Live
Canarinho da cidade.
Quinze de Julho de um mil novecentos e oitenta e um, quarta-feira de manhã, eu e Regis acertávamos o contrato com o senhor João Batista. Quando entramos, o produtor, que estava sentado, mesmo antes de nos cumprimentar, já começou a caçoar de Regis:
— Como o menino tá bonito! Ficou rico é?
— Não senhor! — Negou Regis, que realmente estava muito bem vestido. — Viemos pra uma conversa especial.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!— O disco está pronto e já estamos começando a distribuí-lo — disse-nos o produtor.
— O senhor vai dar nas rádios? — perguntou-lhe Regis.
— Que conversa doida é essa, moleque?
— Distribuir discos nas rádios! — corrigiu Regis.
— Ah bom! Mas só vou distribuir nas principais rádios do Brasil. As demais compram! Caso contrário acaba ficando muito caro pra gente.
— Ou seja — protestou o menino. — Da outra vez o senhor deu discos de graça para as rádios pequenas, agora as pequenas que se danem e o senhor dará disco para as grandes?
— É isso!
— É injusto!
— A vida é injusta, menino! — riu o produtor. — Naquela época as rádios grandes não tocariam seu disco!
Pensou um pouco e prosseguiu:
— Não é isso canarinho?
— Espera aí — interferi. — Antes o senhor chamava o garoto de outra coisa, agora chama de canarinho. Por quê? Nova gozação?
— Não! É sério!
— O senhor vai dizer que eu depeno o canarinho... ou o sabiá!... Não é isso? — alegou Regis, ainda pensativo sobre o caso das rádios pequenas.
— Você é quem está confessando, não eu! — caçoou João Batista.
— Confessando nada! Estou completando o que o senhor quer insinuar. De quem é o canarinho?
— É seu e você pode depená-lo à vontade!... Mas ele vai sofrer!
O produtor se levantou, entrou em outra sala e voltou a seguir com um disco nas mãos, dizendo:
— Canarinho é o nome de seu novo disco, como você mesmo pediu. O que você depena mesmo é o sabiá. Pode ver que a mão tá cheia de pelos!
Regis olhou para as mãos, depois apanhou o disco. O produtor continuou:
— Ah punheteiro sem vergonha!
O menino sorriu e eu também. Não pelo gracejo desrespeitoso do produtor, mas sim pela beleza do long-play, com a foto de roupa esporte à frente da mansão, impressa na capa e contracapa, e que tinha o título:
“CANARINHO DA CIDADE”
O mais importante, era que estava, além de muito bonito, muito bem feito mesmo. Na capa, além das duas fotos o nome “REGIS MOURA”, o nome dos músicos e compositores, havia também toda a ficha técnica
Após examinarmos com muita atenção o belo disco, Regis lhe perguntou:
— E então, agora o senhor poderá me contratar?
— Está com tanta pressa, garoto! O que você pretende?
— Pretendo ganhar dinheiro! Eu preciso dele!
— Você ganha muito dinheiro em seus shows. Até já trocou de carro! Trocou de roupa! Nem eu tenho uma roupa tão chique! Está cada dia mais rico.
— O senhor é quem pensa! — protestou o menino. — Papai continua pagando aluguel.
— Sabe o que é senhor João — interferi. — Regis precisa mudar pra cá. No interior é muito difícil de contratarmos shows, divulgar em televisão…
— E por que ainda não mudaram?
— Sem dinheiro! Como? — aproveitou Regis.
— Este disco de agora vai lhe dar muita fama — continuou João Batista. — Se vocês ainda não ficaram ricos, irão ficar agora.
— Mas eu preciso ter um contrato! — insistiu Regis. — Preciso de uma segurança!
— Eh carrapatinho... que gruda na pele mais sensível que a gente tem no corpo! Dá uma trégua, garoto!
— Trégua! Como poderemos ter trégua se a vida não deixa?
— Tá querendo falar difícil, o menininho! Não tá exagerando pros seus oito anos não?
— Dez! — corrigiu Regis. — Bem vivido!
— Está bem, carrapatinho de déeeez anos! Faremos um contrato com você. Vocês estão recebendo direitos autorais?
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!— Regis não tem composições gravadas! — neguei.
— Mas você tem! Recebeu alguma coisa?
— Eu sempre recebo. É pouca coisa, mas sempre ajuda.
— Outra coisa batedor, você já fez seu horário de músico?
— Primeiro, por que o senhor não me chama pelo meu nome, ou pelo menos, por que não arranje outro apelido? Este é muito esquisito!
— Gracinha! — caçoou João Batista. — Isto não é apelido! É apenas um… adjetivo.
— Já lhe disse muitas vezes que não sou, não faço, não gosto!
— Quem garante?
— Só tenho déeeez anos! — declarou o menino, sério.
— E daí! Quando eu tinha oito já gostava de garotas!
— Nem todos somos iguais!
— Por que os dois não chegam a um acordo e mudamos de assunto? — pedi. — Não estamos aqui pra discutirmos interesses?
— O que estamos discutindo é interesse! — afirmou o produtor. — Interesses amorosos do bate… de Regis!
— O senhor perguntou se ele já tinha horário de músico! Ainda não tem! — neguei, tentando voltar ao assunto de interesse.
— Como não tem? Ele já é considerado profissional há quase dois anos!
— Mas ainda não fizemos!
— Nunca houve problemas com fiscalização? Nunca embargaram nenhum de seus shows?
— Graças a Deus não! — insinuei.
— Pro bem de vocês, quero que providenciem isto de preferência ainda hoje. Vai que Deus deixa de espantar os fiscais, então vocês se ferrarão. Ainda mais Regis sendo criança!
— Aonde precisaremos ir e o que deveremos fazer? — perguntou-lhe Regis.
— Darei o endereço. Chegando lá será necessário fazer um teste de músico. Mas vocês levam um disco que será aceito como teste.
— E quanto a nosso contrato? — insistiu o pequeno.
— Você perturba. Não, garoto?
— Como já lhe disse, preciso ganhar!
— Parece mesmo um carrapatinho! Não Willian? Gruda e não solta mais!
O produtor levantou-se e seguiu até a outra sala, onde falou com a secretária. A seguir, retornou, tornou a sentar-se e perguntou a Regis:
— Canarinho, quanto você quer ganhar de salário?
— Por mês?
— Claro! Não espera que eu lhe pague por dia! Ãh?
— Minha pergunta não foi cretina! Papai e Willian ganham por hora!
— Papai e Willian trabalham em empresas especiais!
— Vocês dois só resolvem na faca, não!? — ajudei no sarcasmo.
— Mas eu amo este garoto! — alegou o produtor. — Nossas brigas são de amor.
— Sartei! — negou Regis.
— Como é, garoto? Você não gosta de mim?
— Por amizade! Não por amor!
— Ora canarinho! Está com vergonha de que?
— Vamos ao que interessa! — insistiu o pequeno, bravo de verdade.
— Até parece hominho! — Riu o produtor.
— Sou homem!
— Duvido!
— Quer que eu tire a calça?
— Claro que quero! Já demorou muito!
— O que o senhor acha que eu sou pra ficar tirando a roupa em qualquer lugar?
— Pensei que fosse homem! Mas não tem problema, pra nós aqui o importante é que você cante bem! Nem precisa ser homem pra isso!
— Sou homem! — insistiu o menino, bravo. — Muito macho!
— Deixa pra lá! Meu homem!... Quanto você quer ganhar de direitos por mês?
— Não sei resolver isso! — negou Regis. — Você sabe, Willian?
— O senhor é quem deve fazer uma proposta. A gente não tem base nenhuma sobre isto. — neguei.
— Pedi pra secretária fazer um contrato semelhante ao que fiz da outra vez.
— Igual?! — admirou-se Regis.
— Só que o de agora é verdadeiro!
— Setenta mil... Por mês?
— Você gosta de dinheiro! Não pivete?
— Claro! Preciso dele. Mas não sou pivete!
— Pedi a ela pra fazer um contrato por dois anos, com direitos de duzentos mil cruzeiros por mês. Está bom assim, senhor Regis de Assis Moura?
— Está pouco — insistiu o menino, rindo.
— Se você tivesse provado sua masculinidade eu teria lhe oferecido o dobro. Mas como você não me provou nada…
— Se for pra ganhar bem eu tiro toda a roupa!
— Confessando, não? Pelo dinheiro faz qualquer coisa!
— Qualquer coisa não senhor! — negou o pequeno, bravo. — Tiro a roupa pra provar que sou homem!
— Você já viu minha secretária?
— Já!
— O que achou dela?
— Muito bonita!
— Se ela pedisse pra você tirar a roupa você tiraria?
— Não é de sua conta!
— Quem lhe ensinou a ser mal educado com os mais velhos?
— Não sou mal educado com ninguém! Apenas trato os mais velhos com o mesmo respeito que eles me tratam.
— Saiba garoto, que além de ser mais velho do que você, acabo também de me tornar seu patrão. Está me entendendo? Ou se esquece de que posso demiti-lo a hora que quiser?
— Não acredito que faria isso — deu de ombros, o menino.
— Pois experimente continuar sendo mal educado comigo.
— Levo meu currículo pra outra empresa — tornou a levantar ombros, o menino.
— Hum! Tá esnobando mesmo, o pivetinho! O que é currículo?
— Sei lá! — os ombros ajudaram na negativa. Pensou um pouco. — Mas eu levo!
A secretária entrou, trazendo o contrato preenchido em três vias. O senhor João, depois de fazer gestos com os olhos para Regis, insinuando a beleza da moça, leu, assinou-o e me entregou dizendo:
— Assine as três vias.
Li às pressas e assinei as três vias. Então devolvi ao senhor João, que me entregou uma delas, dizendo:
— Quer dizer que você concorda com tudo que está aí?
— Tudo bem!
— Você leu com pressa, sem se preocupar com todo o conteúdo. Saiba que por dois anos vocês não podem levar o cur...rí...culo pra lugar nenhum! O sabiázinho terá que me aturar... Terá que me respeitar e não poderá solicitar aumento de vencimentos.
— Concordo.
— E o sabiázinho não protesta em nada?
— Não! O que Willian aceitar estou de acordo. O único problema é que nosso dinheiro desvaloriza todo dia.
— Ah molequinho! Não passa nada? Como você aguenta esse pivete te perturbando sempre?
— Regis é um ótimo menino!
— Mas de vez em quando leva algumas cintadas. Não?
— Já foi esse tempo! — insinuou Regis tristemente.
— Bem que precisa de vez em quando!
— Sei ser eu! — riu ele. — Não preciso de cintada!
Que eu soubesse, desde o incidente com o circo, acho que seu pai entendeu que espancar não resolve.
— Atrás do contrato, acrescentei um parágrafo que diz que este valor será reajustado uma vez por ano, com base no famoso igepe. — dirigiu-se a Regis. — Sabe o que é isso, menininho esperto?
— Deve ser algum negócio que corrige dinheiro! — O retrucou, zombeteiro.
— Índice Geral de Preços. Se um dia você deixar de ser cantor, vou te contratar pra ser meu contador. Pô meu! Você parece ter saído de uma faculdade!
— Prefiro continuar cantando.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!— Falando sério, meu canarinho, sinceramente você vai ser um grande artista. Não esquente a cabeça com minhas besteiras não. É tudo brincadeira idiota!
— Sei disso! — riu Regis, apanhando o contrato de minhas mãos para ler.
— O pagamento de seus vencimentos será creditado em sua conta corrente, no mesmo banco onde é depositado seus direitos autorais. Tudo de acordo?
— Tem um dia pra esse depósito? — perguntei-lhe.
— Todo dia quinze, ou próximo dele. Está no contrato.
Nosso contrato venceria em quatorze de julho do ano oitenta e três.
— Repetindo — insistiu o produtor. — Durante a vigência deste contrato não há reajuste de vencimentos.
— Nadinha, nadinha? — insistiu o menino.
— Nada de nada! Só o igepe. O que até pode acontecer é a produção de um outro disco. Não garanto que faremos! Do primeiro pro segundo, foi rápido porque o primeiro é só um chamativo; o segundo é que vem pra dar lucro. Poderemos também vender seu passe de artista pra outra empresa...
— Passe! — Riu o menino. — Não sou jogador de futebol!
— Viu só! — emendou o produtor. — Você também vale alguma coisa! Se seu pai concordar, lhe dou dez centavos pra levá-lo pra mim!
— E eu lhe dou um milhão de dólares pra vê-lo longe de mim!
— E eu estou perdido! — Protestei. — Não sei o que é serio e o que é sarcasmo!
— É isso – continuou João. —Não venderemos o passe do canarinho. Poderemos até fazer quebra de contrato, com acordo por ambas as partes. Depois você lê aí no verso que está tudo explicado.
— Muito bem! — concordei. — Estamos de acordo!
— E o endereço pra vermos horário de músico? — perguntou-lhe Regis.
— Bem lembrado! Verei isso pra vocês.
Foi até a secretária, onde conseguiu o endereço do Ministério da Educação e Cultura e nos entregou.
— O senhor pode me vender uma caixa de discos? — pedi.
— Estamos aqui pra vender, rapaz! Se você passar amanhã cedo, estará aqui à sua disposição.
— Mas precisamos levar um lá no MEC, agora! — aleguei.
— Pode levar este aqui.
Entregou o que estava sobre a mesa para Regis, dizendo:
— É um presente pra meu amorzinho.
— Eu quero que o senhor mande cópia deste disco, para as mesmas rádios que o senhor enviou o primeiro! — exigiu o menino, sério.
— Tais brincando! — riu o produtor.
— Não estou!
— Vou enviar para as grandes! As pequenas... Com exceção de algumas, como as de suas cidades... Não vai dar!
— Eu pagarei cada um destes discos!
— Vixi! — surpreendeu-se o produtor. E eu também. — Tá podendo, o galãzinho!
— Desconte de meu contrato! Quantas vezes forem necessárias!
— Tudo bem! — gesticulou o produtor. — seja feita vossa vontade!
— Isso é com Deus — foi incisivo o menino.
— Acabo de vender algumas centenas de discos.
— E eu acabo de entrar na casa dos grandes sem abandonar os pequenos.
— Se o Willian concordar farei isso, descontarei em seus vencimentos e lhe prestarei contas.
— O Willian concorda com o que eu concordo — franziu os lábios, em leve sorriso decidido.
Dalí seguimos a um restaurante.
Já sentados à mesa percebi que ele estava pensativo.
— O que há Regis? — perguntei-lhe. — Algum problema em mandar discos para as pequenas rádios?
— O que é... punheteiro?
— Como? — embaracei-me por ser tomado de surpresa.
— Aquilo que o João Batista me chamou!
Como falar de sexo na hora do almoço com uma criança? Seus pais, conservadores, jamais falaria com ele sobre esse assunto. E eu... Também não estava preparado.
— É... O menino que brinca com seu pênis! — tentei ser limitado.
— O que é pênis? — perguntou-me sério.
— Jura que você não sabe?
Deu de ombros, me olhou sério e concluiu:
— Vou saber agora. Se você souber me explicar!
— O órgão sexual masculino.
— Órgão genital é a mesma coisa?
— Isso!
— Depenar o sabiá... é a mesma coisa?
— É!
— Por que você não fala dessas coisas comigo?
— Seu pai fala?
— Claro que não! — concordou ele. — Meu pai é antiquado! Por isso você precisa falar! Não quero crescer acreditando que nasci vindo de uma cegonha!
— Você acredita?
— Não sou burro! Nasci por que meu pai transou com a minha mãe! Mas preciso saber mais! Você é meu pai liberal!
A maior gratidão que ele poderia ter por mim, era a confiança em me chamar de pai. E sua hiperatividade o fazia saber disso.
— Seu pai não transou com sua mãe! O que eles fizeram é amor. O que gerou um lindo fruto. Transar é um encontro casual entre dois quase desconhecidos que acabam em cama de motel ou bordel.
— Deu na mesma — balançou os ombros. — Quero que fale comigo sobre isso.
— Devo agir como João Batista? — perguntei-lhe.
— Não senhor! — negou bravo. — Não gosto de gozações! João Batista é um depravado! Deveria me respeitar como criança! Você deve falar comigo, como um pai que se preocupa com o bem estar do filho pré-adolescente.
— Já!? — admirei. — Você se acha pré-adolescente?
— Sei lá o que sou! — deu de ombros. — Me tratem com respeito e amor! Prometo que eu retribuo.
— Você é uma criança especial, Regis.
— Todas as crianças são especiais, Willian! Embora muitos adultos pensam que elas são bichinhos de estimação.
— Onde você aprende a ser assim?
— Com você! — foi incisivo.
Após o demorado almoço fomos providenciar horário de músico.
Enquanto caminhávamos pelas ruas de são Paulo, decidimos que ali, realmente deveria ser nosso local de morar, pois seria ótimo para que fizéssemos a divulgação correta do disco e conseguiríamos melhores shows.
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