Juntos Contra o Clichê

Alexandre, o Grande; Sophie, a Enorme.


O leve bater das asas dos pássaros ajudava a manter a brisa cobiçada no ar, torcendo para levar consigo a sensação térmica de 800º graus, comum em nosso país. Ao longe a voz de um pai alegrando a filha com um refrescante picolé de frutas, beijando a esposa grávida logo depois para comemorar a família perfeita. Posso ouvir os beija-flores dedicando sua preciosa canção de amor às suas amantes, flores que anseiam pela próxima primavera para atrair seus admiradores com a mais pura beleza... Ou pelo menos eu acho que está assim lá fora. Ficar reproduzindo essas imagens alegres na mente ajuda a me acalmar. Desviar o olhar da janela e observar os seis homens ao meu redor fazia um tremor percorrer minha espinha. Cadê o idiota do Gaby para chegar e me tirar daqui?, pensei. Para completar o Leo também sumiu. Se eu tiver sorte sairei daqui apenas com a boa experiência do que é ter um harém.

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Inspira. Expira.

Parece que estou sentada aqui há dois anos, ainda com esperanças de que alguém encontre meu esqueleto que olha eternamente para a janela. Parei de contar os segundos depois da insistência do Jô me atrapalhar, mas tenho certeza que já deve ter passado, no mínimo, meia hora desde que os seis homens entraram. Sempre gostei muito de jogos de sobrevivência, então parece que estou aplicando minhas habilidades na vida real e está funcionando. O problema é que agora estou com medo deles virarem zumbis de repente e tentarem comer meu cérebro. Espero que tenha algum Rick Grimes passando por perto para me salvar.

Como se ouvisse minhas preces, o rangido da porta que os homens passaram alegrou minha alma cansada de sofrer, que desistiu da vida depois de tanto tempo neste lugar. Era deus grego do meu mundo, mais conhecido como meu segundo melhor amigo.

Levantei as pressas e ataquei-o com palavras. – Você demorou, Leo. – alertei-o sem demostrar o quanto estava tensa com a situação, arriscando até uma risadinha no final da frase.

Leo encaixou meu rosto em sua visão. Sinto como se ele estivesse olhando diretamente para os meus pensamentos, lendo-os por completo. Mesmo encantada por ele, não pude deixar de perceber o olhar confuso em seu rosto. – Eu demorei apenas um minuto, Sophie.

Puta merda, eu contei rápido demais. Não acredito que passou apenas um minuto desde todos esses acontecimentos. O universo está conspirando para me fazer enlouquecer. Leo ignorou o fato de ainda estar em pé olhando para ele, obviamente vermelha até os pés, e ocupou o espaço vazio no sofá mais perto da porta. Ótimo, agora ele me acha uma doida obcecada. Já que minha imagem já está completamente estragada mesmo, então vou começar a jogar sério. Vou virar a situação ao meu favor, usando esse sufoco para criar um laço mais forte com o meu amigo.

— Ei, Leo! – gritei. Não queria ter falado tão alto, agora tenho sua atenção e a de todos os presentes. – Sabe, eh... – isso não é bom, estou começando a me arrepender de ter chamado. Não, nada disso! Quem não arrisca, não petisca. – Parece que o Gabriel vai se atrasar, ele me mandou uma mensagem avisando. – é agora! – Você pode me levar para casa no lugar dele? – Jogada de mestre! Passar um tempo sozinha com ele pode me ajudar a melhorar o que acha de mim, quem sabe até melhor muito o que acha de mim. Em nível romântico.

O olhar surpreso de todos me fuzilava, até o queixo do baixinho estava tocando o chão. Depois, todos estavam esperando a resposta do Leonardo, encarando-o, que estava com o cenho franzido e um olhar ainda mais confuso do que antes. Lentamente enfiou uma das mãos no bolso e tirou o aparelho que me acompanha há vários anos. – Está falando disso aqui? – disse, calmamente. Eu, por outro lado, queimava por dentro. De vergonha.

Só me resta controlar essa situação o máximo possível. Não posso perder a compostura.

— Somos telepatas.

— Gabriel não acredita nisso. – rebateu rapidamente.

— Ele mudou de opinião no último ano.

— Ele me disse isso semana passada.

— Caralho! – soltei, sem querer. Fui no impulso das respostas rápidas e acabei de piorar ainda mais a minua situação. – Não, quero dizer... Baralhos. – ri forçadamente. – Nos comunicamos por baralhos. É que as palavras são tão parecidas. – soltei mais algumas risadas.

Com o cenho ainda franzido e o mesmo olhar, Leo indagou: – Me lembro de tê-la revistado antes de coloca-la deitada no colchão.

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As cenas do Leo me revistando não me deixavam raciocinar sobre o que falar em seguida. Aliás, isso também me fez lembrar que ele provavelmente me carregou até aqui. Eu sou uma princesa! Será que agradecer ao carrancudo por me apagar é estranho demais?

— E então? – exigiu, cortando minha linha feliz de raciocínio.

Limpei minha garganta e afastei as indecências que minha mente estava armando para mim. – Ah, querido Leonardo. Não esse tipo de baralho. E sim esse aqui. – cutuquei minha cabeça com o dedo indicador na maior classe possível.

Todos na sala me olharam espantados. Jô até mesmo se afastou de mim do sofá. Mesmo assim mantive minha postura orgulhosa sobre o que disse.

— Isso não é bom, chefe. – respondeu o baixinho. – Acho que o soco destruiu os miolos dela. – a seriedade em sua voz me assustava. – Vamos leva-la ao hospital.

Engasgando com o ar e após tossir loucamente, disse: – O que? Não! – pelo olhar, todos ali estavam levando a sério a sugestão do companheiro. – Não, gente. Que isso? Era apenas uma brincadeira. – abri o sorriso e soltei breves risadas para reforçar a minha fala.

Todos ainda me encaravam duvidando da minha sanidade, o que me deixava ainda mais desconfortável do que o evento do sofá. Tentei convencê-los com mais alguns sorrisos, contudo ainda me olhavam com pena.

— Tudo bem. Você venceu. – fitei Leonardo. – Só queria que você me levasse para casa. – nessa altura não ligo se me acharem abusada. Com certeza é bem melhor do que maluca.

Os olhares rígidos esvaíram-se, dando lugar a suspiros de alívio, que acabei acompanhando. O máximo que pode acontecer agora é ser expulsa, e não arrastada por um bando de homens para o manicômio mais próximo. Necessito melhorar minhas habilidades de persuasão. Recuso-me a acreditar na minha madrinha dizendo que minto muito mal, é apenas falta de prática.

Meu segundo melhor amigo continua a me olhar, entretanto a expressão em seu rosto relaxou e o sorriso dominou novamente seus lábios. – Por que te levaria? Como disse antes, já chamei Gabriel para te buscar. – respondeu atônito, com a expressão orgulhosa de sabe-tudo.

Respirei profundamente. Fazia tempo que não me encontrava em uma situação dessas, estando tão próxima da atual pessoa que conquistou o meu coração. O nervosismo é inevitável, ainda mais com tantos olhares curiosos nos consumindo atentamente.

Juntei a raspa de coragem que restava em mim depois de um dia que precisei dela tantas vezes. – Ok. – cerrei meus olhos. – Se você não quer fazer por bondade, faça por estar me devendo. – imitei o seu sorriso e a expressão sabe-tudo.

A plateia foi ao delírio. Sinto-me como uma atriz de teatro, a cada cena sendo envolvida na emoção férvida do povo. Agora eles esperavam alucinados pela resposta de Leonardo. Eu também.

— Te devendo pelo que, exatamente? – sua pergunta mais parecia retórica. Sua testa estampava um grande e afiado: “não estou devendo merda nenhuma”. Pelo menos me deu a chance de convencê-lo.

— Ora, você se esqueceu? – imitei-o novamente, agora com o mesmo tom da pergunta anterior. – Eu que te salvei daqueles grandalhões.

Parece que foi a gota d’água para os seus subordinados. Pude escutar até um “o que?” perdido, mas estava ocupada demais batalhando olhares com o Leonardo para associar de que boca saiu. Leo se remexeu no sofá, dobrando suas pernas e apoiando a cabeça em uma das mãos, sem tirar o sorriso do rosto. Notando-o melhor, os machucados no supercílio e abaixo dos lábios ainda estavam inchados; começarão a cicatrizar em breve.

— Sim, claro que salvou. – afirmou irônico. – Tudo o que mais precisava naquela hora era de um saco de pancadas. – suas risadas não foram necessárias, todos na sala riam por ele.

Caminhava alegremente ao lado do meu segundo melhor amigo. Convencê-lo não foi fácil, acabou demorando bem mais do que o esperado. Quando venci a tortuosa batalha de passar por todos os obstáculos que ele empunha fui aplaudida de pé pelos membros do seu grupo, mesmo que no fundo alguns me assassinavam pelo olhar. Ignorei. Nada pode acabar com a alegria que estou sentindo no momento. Somos como um casal, apesar dele estar a três metros de distância.

— Você não precisa andar tão rápido, Leo!

Sua postura rígida indicava o quão irritado estava por perder para mim, no entanto ele pensa que pode esconder o sentimento de derrota com o seu sorriso habitual, tão frio quanto a personalidade do meu irmão mais velho.

Depois de um grande suspiro, disse: – Se eu andar do seu lado, as pessoas pensarão que te agredi. Não quero ser preso.

Mesmo sendo difícil de acompanhar suas longas pernas, forcei-me a diminuir nossa distância com o resto de energia que tinha. Dei um tapinha em suas costas para mostrar que agora estávamos próximos, porém não saiu amigavelmente; o barulho foi alto e a palma da minha mão ardeu um pouco. Leonardo me fitou em fúria.

Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, respondi rapidamente: – Desculpa! Não era para ter sido tão forte. – sorri para me defender.

Minha casa sempre uma grande bagunça de pessoas; era tanta gente para um só banheiro, apenas cinco camas e pouca comida. Aprendemos desde pequenos a brigar e a insistir por tudo, não importa o que seja. Ainda não me acostumei a tocar delicadamente em outras pessoas, sem machuca-las, e isso é algo que até os meus amigos da minha antiga cidade reclamavam. Preciso tomar mais cuidado da próxima vez.

Leonardo não levou seus insultos até os meus ouvidos, guardo-os para si ou até mesmo deixou-os passar. Depois da briga de hoje já deveria ter imaginado que estava acostumado com violência. Preciso aproveitar a caminhada até minha casa e tirar a limpo que história toda foi essa, afinal.

Fitei-o discretamente, observando seu perfil descontraído que carregava bem mais coisas do que apenas felicidade. A cicatriz entre o ombro e o pescoço era quase imperceptível escondida em baixo de sua gola, no entanto, pelo pouco que meus olhos conseguiam ver, aparentava ser comprida e não muito larga. Pergunto-me o que causou.

Espantando a curiosidade de mim e concentrando-me no que deveria realmente importar, lancei: – Leo...

— Nós não somos bandidos ou participamos da máfia, se você quer saber. – interrompeu-me.

Mesmo frustrada com todos adivinhando meus pensamentos não pude evitar a surpresa dele ter respondido minha pergunta antes mesmo que eu pudesse tê-la terminado. Eu sou realmente tão fácil de se ler?, pensei, meu eu interior aos prantos. Recuperei-me em poucos segundos.

— Então você mora com todos eles?

Depois de pensar por um tempo, Leonardo diminuiu a velocidade. O copiei. Agora estávamos lado a lado caminhando devagar, a poucos centímetros de distância. Se tiver sorte, posso me desequilibrar e acabar esbarrando meu ombro no seu. Chão, por favor, me pegue se surpresa.

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— Nós não moramos juntos. – respondeu pensativo. Seu sorriso diminuiu um pouco e seu olhar parecia fitar algo muito distante. – Aquele lugar é a minha segunda casa.

Suas respostas vagas não me ajudavam muito, apesar disso pude perceber o quanto deve considerar todas aquelas pessoas e aquele local do século passado. Parando para pensar, a atitude de todos daquele local era como se fossem uma grande família feliz. Problemática, mas feliz. Não evitei um sorriso sincero, imaginando como deve ser difícil lidar com todos ao mesmo tempo.

Retirando o sorriso do rosto, indaguei: – Você poderia ser menos vago, sabia?

Leonardo fitou-me. – Nós apenas ajudamos aqueles que precisam.

Assustei-me. – Vocês fazem justiça com as próprias mãos?

— Não, isso não

— O que é afinal?

Desta vez ele demorou um pouco mais para responder, contudo não desviou o olhar do meu. Parecia procurar as palavras mais adequadas. – Esta cidade está infestada de subgangues que vivem por aí se divertindo ameaçando e agredindo pessoas. Se alguém vier nos procurar para dar um jeito em tal aborrecimento, nós aceitamos o trabalho por um preço.

– Então vocês são uma subgangue que é contra as outras subgangues?

— Mais ou menos isso.

— Mas por que vocês fazem isso? – não consigo pensar em nada que leva outra pessoa a fazer esse tipo de trabalho.

Leonardo parou de caminhar e virou-se para mim. – Não tenho motivo para contar tudo para você. – abri a boca para falar, mas ele continuou. – E não me venha dizer que é porque sou seu segundo melhor amigo. Nem nós conhecemos há tanto tempo assim para trocarmos confidências.

Ele tem razão.

Entender tudo o que eles faziam me tranquilizou. No fundo, todos são boas pessoas que se preocupam com o bem estar de outras pessoas. Bom, em parte. Pela mãe amada, espero não ter entendido errado. Já que ele não está aceitando o argumento de que somos melhores amigos, só me resta ser sincera.

— Se não quer me contar porquê somos amigos, ok. Me conte pelo fato de eu gostar de você.

Repassei esta cena diversas vezes na minha cabeça desde criança, sempre imaginando que a minha primeira declaração seria super-romântica e em um lugar cheio de flores. Não pude estar mais errada. A rua em que estamos está vazia, apenas alguns carros passavam deixando o cheiro de poluição para trás. As portas das casas escondiam mães chamando seus filhos para comer e casais se despedindo. Aqui fora só resta nós dois, trocando olhares, acompanhados da gritaria de crianças brincando na rua de baixo.

Me confessar me deixou envergonhada, coisa que não era fácil de conseguir para uma pessoa como eu. Posso sentir a fumaça deixando minha cabeça e uma queimação sem fim nas minhas bochechas. Minhas mãos estavam inquietas, então as fechei e segurei a tremedeira nervosa. Não há como voltar atrás. Não há motivos para me arrepender.

Quando cheguei a pensar que o silencia seria eterno, Leonardo disparou: – Interessante.

Ele diminuiu nossa distância consideravelmente, nos deixando com pouquíssimos centímetros de diferença. Levou uma de suas mãos cuidadosamente atrás da minha cabeça e a outra uma para levantar um pouco mais meu queixo, ajeitando minha cabeça para cima. Ele estava se aproximando de mim. Seus lábios estavam se aproximando dos meus. Meu segundo melhor amigo estava tentando me beijar antes de me contar seus sentimentos, apesar de já saber que não era mútuo. Mais do que qualquer coisa a voz de Gabriel ecoava na minha cabeça, o “de todas” voltou a me assombrar.

Seus olhos semicerrados não desviavam dos meus arregalados; estava decepcionada. Seus lábios estavam para encostar-se aos meus, contudo eu fui rápida o bastante para levar meu braço bom para cima e colocar minha mão entre nossos lábios, impedindo um evento que definitivamente me arrependerei depois, entretanto nunca me perdoaria se deixasse algo tão importante ser fútil deste jeito. Voltei meus olhas para o normal e era a vez dele arregala-los. Ficamos alguns segundo assim até que usei força para empurrá-lo para trás.

Sai de seu alcance voltando um pouco por onde já havíamos passado. Parei de costas para ele por alguns segundos para recuperar meus sentidos sobre o que acabou de acontecer. Espantei a tristeza e também o rubor do meu rosto, voltei a meu sorriso e animação habitual.

Virei para trás e pontei, soltando a risada irônica mais alta que já utilizei. Logo balancei a cabeça em negação. – Uma pena, meu caro Leo. – fingi tristeza. – Você só poderá conquistar este prêmio aqui – apontei com a outra mão para os meus lábios. – quando sentir a mesma coisa que eu.

Leonardo me encarava com uma de suas sobrancelhas erguida, confuso. Cruzou os braços. – O que?

– Estou dizendo que serei eu a conquistar esse seu coraçãozinho difícil!

Dito isso, voltei a andar para a direção contrária a dele, voltando a rua. Era uma boa deixa para nos despedirmos e raciocinar sobre tudo o que aconteceu. Eu realmente preciso voltar a respirar normalmente.

Andei por pouco tempo até ouvir seu grito. – Ei, sabichona, – parei e virei-me para ele – você não deveria morar nesta direção? – apontou com o polegar para trás.

Ri maleficamente. – Você realmente acha que levaria para a minha casa uma pessoa que poderia ser bandido ou da máfia?

Deixei-o ali e voltei para o meu caminho. Ainda estava um pouco longe da casa da minha madrinha e meu corpo estava me matando de dor, porém os recentes acontecimentos serão minha companhia.