Chá com leite.
Capítulo 5
“Me chama de Mat”.
Idiota!, Matheus pensou.
Ele acendeu o cigarro e ficou ali, encostado na janela do restaurante, sentindo os olhos de Esther em suas costas. Tragou o máximo de podia, fazendo seus pulmões quase estourarem de tanta nicotina, depois soltou a fumaça, vendo-a rodopiar no ar frio de Junho.
Sentiu o gosto de Lucky Strike em sua boca, e observou o fogo na ponta do cigarro o consumir lentamente. Tragou novamente, dessa vez incomodado com a sensação estranha que deixara para dentro do restaurante.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Ele se encolheu em sua blusa de lã. Não sabia como a garota ruiva podia aguentar o frio, vestindo apenas uma blusa de manga comprida e uma calça jeans.
Quem disse que ela está só de blusa comprida?, uma voz perguntou, dentro de sua cabeça.
Bem que eu adoraria descobrir, Matheus respondeu.
Jogou o toco de cigarro na calçada, e amassou com o pé.
Entrou dentro do restaurante, mais feliz com a sensação de ar quente. Voltou para a mesa, onde Esther vasculhava sua bolsa desesperadamente.
–- Shit... – ela murmurava, baixinho. – Shit, shit, shit!
–- Hum, calma – Matheus disse, sentando-se a mesa. – O que é tão importante a ponto de você xingar em inglês?
–- My knees... – Esther murmurou, vasculhando onde já tinha vasculhado.
–- Hum?
–- Minhas chaves!
–- Ah.
Matheus olhou para a mesa.
–- Seriam essas aqui? – ele apontou para um chaveiro ao lado do pote de gelatina.
Esther levantou os olhos pra ele, depois olhou pra chave. Ficou vermelha, e grunhiu:
–- Obrigada.
Matheus deu risada. Era engraçada a maneira como inglesas ficavam envergonhadas. Esther pegou o molho de chaves e enfiou dentro da bolsa, como se estivesse decidida a comer sua refeição em silêncio.
Matheus começou a devorar sua gelatina. Esther ergueu os olhos pra ele, deu uma risadinha e voltou seus olhos para o prato.
–- O que foi? – Matheus perguntou, sem esperar terminar de engolir para enfiar mais gelatina na boca.
–- Tem gelatina no seu nariz – Esther disse.
Matheus colocou a palma da mão da ponta de seu nariz. Afastou a gelatina para o chão, e continuou a comer. Passaram-se cinco minutos, e Esther terminou seu prato. Limpou a boca e amassou o guardanapo.
Matheus ficou um pouco incomodado quando Esther ficou fitando-o, então puxou conversa.
–- Hum, porque “más companhias”?
–- Hã?
–- Tipo, você disse que seus pais reclamavam que você andava em más companhias. Como assim?
–- Ex-dependentes químicos.
–- Tipo, maconheiros?
–- Quase todo mundo lá fuma maconha. Tipo, ex-viciados em heroína, cocaína.
–- Ah. E porque você anda com eles?
–- Eu faço trabalho voluntário numa clínica de reabilitação. Esses caras viram meus amigos depois que ficam limpos.
–- E seus pais nãos gostam?
–- Minha mãe não gosta só porque tem caras negros. Meu pai não gosta porque ele odeia drogas. O que é irônico, já que ele é fumante.
–- Seu pai é hipócrita, então?
–- Completamente.
–- Aquela velha... Desculpa, aquela idosa. Aquela é sua mãe? A que estava aqui com você?
–- Não. Minha tia. Irmã da minha mãe.
–- Ah. Você tá ligada que ela parece um pão fatiado fazendo cosplay da rainha da Inglaterra, né?
Esther deu risada.
–- Aham. Ela é bem brega – Esther concordou.
–- Ninguém avisou isso pra ela?
–- Ela já tá quase morrendo. Deixa ela ser brega enquanto pode.
Foi à vez de Matheus rir.
–- Ela é preconceituosa também? – ele perguntou.
–- Não é racista nem homofóbica. Mas ela exterminaria todos os muçulmanos do mundo, se pudesse.
–- Hum... – Matheus pensou. – Os Estados Unidos já estão fazendo isso por ela. Mas qualquer dia desses você pode aparecer na sua casa com um negro muçulmano e gay, só pra ver o que acontece.
Esther precisou de três minutos para parar de rir.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!–- O mundo vai rachar ao meio – Esther concluiu, por fim.
O clima de riso ficou no ar por certo tempo, enquanto Matheus observava as pessoas lá fora, com seus casacos de lã.
–- Como você aguenta? – Matheus perguntou, de repente.
–- Aguento o que? – Esther perguntou.
–- Ficar só com essa blusa.
–- Ah. Lá na Inglaterra é mais frio, mesmo no verão.
–- Lá é verão agora, hã?
–- Uhum. As pessoas estão de blusa de algodão, e só.
–- Meu Deus. Vocês devem ser feitos pra se decompor e virar neve, porque não é possível...
Esther riu.
–- Mais lá em Nova York é mais frio ainda – ela disse.
–- Você foi pra Nova York? – Matheus perguntou.
–- Uhum. Na verdade, eu fui visitar meu primo Yohan. Mas eu saí antes, por que... Bom, a esposa dele é uma merda.
–- Como assim?
–- Ela é uma nazifascista morando no Brooklyn. Acho que dá pra imaginar o que acontece.
Matheus riu.
–- Tua família não é muito normal, é? – ele perguntou.
–- Hã. Você também não é – ela disse.
–- Não, não sou – ele concordou.
Os dois ficaram se fitando, como se não houvesse mais nenhum assunto sobre o qual conversar.
–- Hum, no que você trabalha? – Esther puxou assunto.
–- Tô na faculdade de medicina. Trabalho meio período num sebo. Sabe como é, a faculdade já tá paga, mas ainda tem custo de material, fora meus cigarros e conta de luz, água, telefone. E você?
–- Eu faço psicologia.
–- E trabalha em...?
–- Hum, eu não trabalho, na verdade. Já tá tudo pago. Eu guardei dinheiro da herança do meu vô desde que ele morreu. Eu tinha... Hm, 11 anos.
–- Oxe. Imagina quantos cigarros dá pra comprar – Matheus pegou a caixa de cigarros e abanou.
–- Você idolatra nicotina?
–- Você não?
–- Você está fazendo medicina. Eu jamais iria a um médico que fuma.
–- Se você soubesse quantos amigos meus da faculdade fumam...
–- Eles não vão nem pra residência.
–- Não?
–- Não. E você também não.
–- Ah, eu vou sim. Eu sou um aluno esforçado – Matheus guardou o cigarro no bolso novamente. – Por mais que você ache que não.
–- Eu acho.
–- E quantos anos você acha que eu tenho?
–- Hum... 19.
–- 19?
–- Sim. Você é muito infantil.
–- Eu tenho 24.
23 e meio, uma voz disse, em sua cabeça.
–- Ah. E quantos anos você acha que eu tenho? – Esther perguntou.
Matheus a observou. Ela tinha bochechas pálidas e sardentas, tinha uma testa sem espinhas e um sorriso fechado.
–- 22 – Matheus disse. Esther balançou a cabeça. – 21? 23? 49? Estou perto?
Esther riu.
–- 25 – ela disse. Matheus bateu na mesa.
–- 25 e nunca fumou? – ele perguntou.
–- Já disse que não fumo. Na realidade, eu odeio cigarros.
–- Odeia quem fuma, também?
–- Não.
Matheus ficou estranhamente feliz em ouvir aquilo.
–- Hm, em que sebo você trabalha? – Esther perguntou.
–- Ah, você não conhece.
–- Eu só trouxe livros de psicologia. Talvez eu passe por lá pra comprar algum livro.
–- Mundial Books – Matheus disse. – Você já leu... A Cidade das Ilusões?
–- Não. Sobre o que é?
–- Tem esse garoto, David, e essa garota, Míriam. Eles são irmãos, e moram na Inglaterra. A mãe deles morreu, eles moram com os avós, e blá-blá-blá. Daí o pai deles aparece, do nada, e ele ficou rico. Daí ele leva os dois pra Nova Orleans, e...
–-... Ela se casa com um cara por pura obrigação, o David briga com o pai por causa da abolição de escravos, depois ele vai para o outro lado do país e se forma médico, mas acaba tendo que lutar na guerra...
–-... E a Míriam se apaixona pelo André, e o Gabriel se apaixona pela Míriam...
–- Etc. etc. Sei. Já li.
–- Aham. Foi o melhor livro que eu já li.
–- Melhor que Les Misérables?
–- Eu não li Les Misérables.
–- Não leu Les Misérables?
–- Não.
–- Meu Deus. Como você sobreviveu sem ler esse livro? É tipo... O melhor livro.
–- Ah. Uma inglesa não devia dizer isso.
–- Por quê?
–- Vocês tem a Rowling.
–- E vocês tem Machado de Assis.
–- Uma inglesa que leu Machado de Assis – Matheus riu. – Certo.
Esther tirou um bloco de notas da mochila, depois uma caneta, e começou a escrever. Matheus observou suas unhas curtas e lisas, e se perguntou por que inglesas não pintavam as unhas.
Ela arrancou uma folha do bloco e estendeu para Matheus, que inclinou a cabeça para ler.
–- Um número de telefone? – ele perguntou.
–- Meu número de telefone – Esther corrigiu. Ela se levantou e colocou o bloco de notas e a caneta na mochila, depois tirou a carteira. Matheus a observou andar até o balcão, onde um chinês mal-encarado esperava as pessoas pagarem. Ela deu uma nota pra ele, ele murmurou algo e ela negou com a cabeça. Ela recebeu algumas moedas, e voltou para a mesa, enquanto guardava a carteira e colocava a mochila nas costas.
Matheus estava boquiaberto.
–- Aquele cara sabe falar? – ele perguntou. Esther riu.
–- Aham. Ele é bem legal, você só precisa forçar um pouquinho – ela disse.
Força com ela, uma voz na cabeça de Matheus disse. Ele a ignorou.
–- Hum... Tchau. Boa sorte com... O que quer que você esteja fazendo – ele disse.
–- Eu to aqui só pra relaxar um pouco, mesmo – Esther disse, tirando o cabelo alaranjado debaixo da alça da mochila. – E você?
–- Eu estou de férias. Minha missão de inverno é não fazer nada e trabalhar no sebo.
Esther riu novamente.
–- Hum. Boa sorte em não fazer nada – ela disse.
–- Tchau – ele balbuciou. Ela acenou e andou pela porta, em direção ao frio.
Matheus precisou de um minuto antes de conseguir pegar o papel em cima da mesa e guardar no bolso.
Levantou-se, tirou a carteira do bolso e foi até o balcão. O chinês mal-encarado tinha olhos com pés de galinha e um rosto enrugado. Matheus estendeu o dinheiro, mas o homem recusou e disse:
–- Aquela garota já pagou pra você.
Matheus ficou olhando para o cara, achando que era brincadeira. Mas ele manteve o rosto impassível. Matheus balbuciou um “boa tarde”, e colocou a carteira novamente no bolso.
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