Dizem que viemos ao mundo com um propósito. Sou obrigado a acreditar que Deus deve me odiar e me mandou aqui apenas para sofrer.

Não é de hoje que eu venho desconfiado disso. Desde pequeno, eu sempre fui considerado a ovelha negra da família. Más notas, péssimo gênio... nunca consegui fazer algo que para eles fosse útil ou agradável. Era sempre o inútil, imprestável, vagabundo e maricas.

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Quando envelheci, veio-me um outro problema: a feiura. Nunca gostei da minha aparência, mas na adolescência era mortal o ódio que eu tinha pelo meu rosto e todas aquelas imperfeições, como espinhas, cravos e até rugas. A situação era tão crítica que muitas vezes eu chorava pro horas dentro do banheiro, podendo até bater em mim mesmo por aquilo.

Numa dessas vezes é que aconteceu. Eu não sei, foi tão rápido... num dos meus acessos de raiva, enquanto revirava o armário do banheiro, aquele objeto brilhante e pontiagudo praticamente clamou para mim. Seu brilho inigualável acabou me cegando e rapidamente vi ali um modo de me libertar. De fazer com que todos vivessem em paz, sem se preocupar com o ignorável parente que nunca conseguira nada.

Antes de ceder às vontades da lâmina, lembrei de um verso do meu poema predileto do Álvares de Azevedo, então o declamei em voz alta antes de começar.

— Eu deixo a vida como deixo o tédio!

Fiz o que tinha de ser feito. Lenta e dolorosamente, fui aos poucos realizando aquele rito de passagem entre a vida e a morte que todos chamam de "suicídio". Ironicamente, todos os que um dia me xingaram, esculacharam e rebaixaram agora estavam chorando, abraçando o meu defunto corpo.