Venha aqui

A criança ouviu o vento muito morno e doce dizer, tão doce quanto o aroma dos bolos de semolina molhados por calda de laranjeiras da feira. Ela brincava junto a seus irmãos e amigos, a pular e gritar em volta da fonte enquanto suas mães conversavam perto das barracas. Parada, encarou a multidão barulhenta ao seu redor e por fim decidiu que não era a si que aquela voz chamava; é claro que não. O vento não sussurrava assim.

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Correu atrás de sua irmã mais nova, que lhe furtara a maçã. Sempre ficavam nesse jogo de tomar uma da outra o que quer tivessem nas mãos, principalmente quando a tia de ambas as subornava com alguma fruta suculenta ou brinquedo em troca do bom comportamento. Não funcionava todos os dias, mas ao menos o estardalhaço das duas era distante enquanto as mais velhas faziam compras e fofocavam.

A menina ria quando mais uma vez escutou algo se sobressair do resto.

Vamos

Era paciente, muito mais paciente do que seu pai; Infinitas vezes mais do que sua mãe.

Tenho um presente para você

Será rápido. Será somente seu. E com ele...

A irmã se foi junto com o grupo, afastando-se das barracas e do largo poço, e a algazarra que faziam diminuía a cada segundo, assim com a luz do imenso Sol estranhamente fez. Na tentativa de localizar a origem do som entre a atmosfera e a multidão, a menina ergueu seu queixo em direção da brisa.

Você nunca mais derrubará uma lágrima.

— Asya, – A mulher se reequilibrou com a pesada cesta marcando a pele de seu antebraço. Suor escorria de seu belo rosto marcado pelo tempo, mas os olhos jaziam arregalados e inquietos, movendo-se de um lado para o outro feito a própria filha mais jovem, que distraía-se com as outras crianças. – Asya! Onde está a sua irmã?

— Eu não sei, mamãe. – A menina disse, segurando uma maçã vermelha. Parecia notar somente agora a ausência da outra garota, de onze anos, e resignada chacoalhou os ombros.

««««««

Jamais havia ido muito longe sem a vigilância aguda da mãe, mas andar pelo labirinto das ruas e pessoas não era tão difícil ou assustador o quanto ela e seu pai faziam parecer pelos sermões longos e enfadonhos, pelas lendas assustadoras de garotas de sua idade sendo devoradas por grandes najas. Na verdade, poucos pareciam prestar atenção em sua estatura baixa e roupas simples, mas não sabia dizer se não a viam ou se não lhe achavam digna de algo qualquer.

Assim que esse pensamento lhe veio, o rosto da mãe também atravessou sua mente. Ela reclamava das dores nas juntas dos dedos e nas costas, seus joelhos estalavam a cada movimento seu e o Sol marcava mais e mais sua pele com um tom de cobre. No entanto, a filha quebrava pratos e derrubava o leite tirado das cabras; seu chá era amargo e as mãos impróprias para a mínima tarefa de casa. A menina só pensava em correr com os rapazotes da vila, gargalhando em meio ao campo e aos animais. Não era capaz de ajudá-la assim como não era capaz de pôr a mão na terra e arar o solo. Jamais levantaria uma enxada por conta própria e seria inútil levá-la à lavoura da aldeia, à despeito de todas as suas súplicas infantis e irritantes.

A cada vez que ela a olhava nos olhos, lembrava-se do possível dote que teria que pagar à seu noivo no futuro, e num futuro que aproximava-se cada vez mais. Tal costume ainda exista em uma família ou outra, em vilas distantes. Onze anos, mais alguns meses e faria doze. Tinha por volta de mais dois ou três anos para sossegar seu espírito indolente e aprender o serviço doméstico de maneira decente; e seu pai mais algumas colheitas a juntar e negociar o valor do casamento com alguém.

Isso sem contar a filha mais nova, Asya.

A cada vez que ela a olhava nos olhos, a menina enxergava decepção e raiva refletidas em seus olhos semicerrados.

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Seguindo o breve riso do vento e o rastro de tinta negra ao chão, ela desviou de pedintes velhos e multidões ocupadas; atravessou lojas abarrotadas de pratos, vidros e cerâmica barata para enfim chegar à uma rua distante, erma. Apesar das casas tão iguais às outras do centro, a luz repousava de maneira mais cálida e gentil naquele canto da cidadela, onde punhados de grama e flores silvestres brotavam aqui e ali pelos pedregulhos saltados dos paralelepípedos. As lufadas de ar eram salpicadas de pó e areia, tapetes e esteiras tremulavam coloridas no alto varal.

Havia algumas outras crianças ali, ela via. E elas riam também, frente à uma jovem trajada em mantos claros ao lado de uma cadeira de vime, onde repousava uma velha.

O caminho de sombras sibilantes terminava no sorriso encantador da mulher.

— É maravilhoso que tenha chegado. – Era a mesma voz sussurrando no ar, porém agora mais alta e clara. Mais natural. – Nós estávamos esperando, não é mesmo?

A garota mirou a idosa, esperando que esta permanecesse cansada e oculta pelo véu negro que lhe cobria a face. Será que era parecida com sua avó, sempre a dizer que a neta carregava um sopro de Munira em si, destemida e veloz? Será que seus cabelos grisalhos eram nuvens e os olhos esbranquiçados, um fresco oásis? Qual não foi o seu espanto quando ela lhe ergueu o rosto cheio de rugas e os lábios crispados, como se sua mera presença fosse uma das mais graves ofensas. Ela murmurou algo indescritível em seu timbre rouco e então fechou as pálpebras, indo para sua posição inicial.

Os dedos longos e enrugados acariciavam um pingente comprido, feito de uma pedra negra. De súbito, a recém chegada sentiu que haviam mais olhos do que os deles todos naquele recinto.

— Não se acanhe, menina. – A moça lhe estendeu a palma aberta, convidando-a a se juntar à elas. – Venha cá, venha.

Na mão de cada menino e menina havia um ramalhete de flor ou erva, uns com alecrim e alfazema, outros com espécies que ainda não aprendera a nomear. Alguns já iam embora, exclamando despedidas e oferecendo breves e desajeitados abraços. Ela aprumou-se de passagem, no medo de estar desarrumada à vista de um sorriso tão largo e bondoso, em seguida contando os passos para chegar perto do mulher e de sua imensa cesta de palha trançada.

— Qual é o seu nome, menina?

As íris grandes e escuras da garota procuraram perigo ao seu redor, mas afinal eram somente crianças de sua idade, uma jovem e uma anciã. Era só uma sensação. Era só um colar, afinal de contas. Não deveria sentir medo.

Não sentiria.

— Zeliha.

— Ze-Li-Ha... – Repetiu, deliciando-se com cada sílaba. Parecia ter mel na boca. – Devo dizer, Zeliha, que há algo à sua volta. Consigo ver as marcas de lágrimas que há muito secaram-se de seu pequeno rosto...

Lembranças sufocaram sua garganta, fazendo que a voz saísse com um soluço.

— Você é uma alis?

Alis, uma abreviação do termo forma alisfata. Seres encantados daquelas terras de areia, celestiais. Possuíam asas imensas e poderes não bem compreendidos ou explicados através das mais antigas lendas, uma vez que também já não se falava mais nelas. Todas haviam partido.

A pergunta foi um deleite para a jovem.

— Não, minha querida. Não. Mas...

Devido ao entrelaçar de dedos das duas, a mulher piscou um punhado de vezes seguidas. As emoções da criança tremulavam feito tempestades de areia e Farah suspirou ao se desenlaçar da aura da outra, então sorrindo como se nada houvesse acontecido. Na verdade, para quem mirasse aquela estranha reunião, nada demais veria senão uma jovem e uma velha, talvez sua mãe, vendendo flores para infantes ingênuos. Para quem mirasse para a aprendiz, enxergaria suas finas cicatrizes no rosto como se fossem desenhos de um mapa para o mais misterioso artefato.

— ...Deixe-me ler o seu destino.

Farah pegou a mão direita de Zeliha, virando a palma para os céus. Vinha o entardecer e seu punhado de estrelas, e ela sabia que não haveria muito mais tempo, fato que a criança nem poderia supor. Pensava que conseguira fugir, afinal. Passando as pontas dos dedos sobre a pele da menina, percebeu a textura era ressecada apesar da idade. Trabalhava em casa, talvez aquela queimadura viesse de preparar chá para os mais velhos. Talvez as palmas fossem o alvo de duros castigos por suas peripécias, que pela imundície das vestes na altura dos joelhos, eram muitas. O rosto infantil querendo amadurecer não lhe permitia mentir: havia algo de errado.

— Sua linha do coração... – Ela lhe indicou com as unhas o traço que iniciava-se perto do dedo mindinho, e que recortava-se até o médio. – Não é continua. Isso significa muitas pedras e espinhos no seu caminho, pedras que feriram teus pés. E pela sua mão esquerda... Ainda permite que te ataquem.

— Eu não posso fazer nada. – Um soluço tentou mais uma vez escapar de sua garganta, enquanto a voz arranhava-se fina na boca. Em resposta, Farah apertou sua mão carinhosamente, pois não passava de uma pequena ainda muito delicada sob a tolice de outrem. – É a minha mãe. Não posso fazer nada, devo respeitá-la.

“Então é a mãe.”

Aquela espécie de relacionamento lhe era familiar, terrivelmente familiar. Nada como uma senhora mais velha e portadora da razão divina, uma imperatriz cheia de vontades e desmandos dentro de casa. Nada como expectativas inalcançáveis ou o mais vil desdém. Nada como frases venenosas de puro sarcasmo.

Ao lado da menina, desenhos e diagramas brotaram serpenteando do chão e coloriram o ar. Sim, as imagens antigas de mãos e linhas oriundas de seus livros estavam ali, com as mil e uma anotações das possibilidades existentes nos fios do mundo. Os cílios da feiticeira piscaram rápido, asas de mariposas negras aos olhos de Zeliha.
Ela cresceria mais, é claro. Suas formas tornariam-se curvilíneas, viçosas como pêssegos, e as mãos calejariam-se. As linhas das noites passadas e do futuros dias cravariam-se mais e mais fundos na palma da mão, sendo então mais certeiras para uma previsão, mas Farah preferia destinos abertos para uma leitura simplificada.

Tocar a mão de uma criança era tocar o futuro, tatear a aura de tragédias e felicidades que estão por vir. Dissera ao tímido Abbas que ele faria jus ao seu nome, pois tornaria-se forte e altivo como um leão. Ninguém mais o ignoraria a sua voz, embora a cólera e a insanidade fizessem sombras ao sonho de grandeza. Dera à ele um ramo de violetas bem roxas, além de enfatizar com toda a seriedade possível que o rapazote deveria cuidar daquela planta como se tratasse da própria alma.
A alfazema fora para Imran, que tremia de ansiedade ao lembrar de voltar para a casa. Perderam tudo por um erro do tio e a egrégora da casa era de rubra violência. Se dormisse com a alfazema ao lado da esteira, o seu sono seria povoado por serenidade. O aroma da planta suavizaria o seu lar.
Para a outra menina, Hayedeh, arruda. Havia muitos olhos, olhos imensos, a espreitar a beleza de seus cabelos escuros e sedosos, de seu lábio pequeno e vermelho feito uma flor.

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Cada um com dores sofridas desde tenra idade. Era uma benção que os deuses tenham soprado aos ouvidos meio surdos de Aziz, clamando para que ela atribuísse tal treino à devota aprendiz. Sim, crianças eram mais fáceis de se ler e mais fáceis de se atrair a atenção. Não esperavam que lhe dissessem o que queriam ouvir, ao contrário de adultos, e não lhe chamavam as feiticeiras por nomes vis, embora logo fossem aprender tal costume. Farah suspirou, concentrando-se de novo.

Dedos mais longos do que a palma, cujo o formato era um pequeno quadrado. Uma mão do ar tão espirituosa, intangível e rancorosa quanto o próprio elemento, quanto a própria Zeliha.

— Vejo cruzes nas linhas da cabeça, que é longa e separada da linha da vida. Apesar do ânimo e da alegria em ti, tens decisões importantes a tomar, pois os deuses lhe conferiram o privilégio da escolha. Pondere com muita sabedoria para que este privilégio não se torne um fardo.

A garota assentiu, lágrimas já desabrochando de seus olhos.

— Agora, a linha da sua vida é esta. – O vento soprou mais forte, parecendo puxar as estrelas para que a noite caísse mais rápido. Lentamente, a moça riscou a palma da mais nova com nada senão o toque suave de sua unha. – Começa entre o indicador e o polegar, embora sempre mais próxima ao dedão. Geralmente curva-se até o pulso, mas a sua não é tão curvada, nem tão longa. Não, não se assuste. O comprimento não tem relação com o seu tempo neste mundo, pequena. A sua...

— ZELIHA!

Uma figura ao fundo ribombava ira, iluminada calidamente pelo entardecer. Rapazes passaram por ela, acendendo archotes nas paredes e completamente desinteressados pela ocasião, pois não era raro encontrar uma mulher com pesadas sacolas nas mãos a gritar com a sua cria. No entanto, a cada vez que acendiam uma tocha presa às paredes, a ira dela incendiava-se feito altas labaredas. A mulher largou as compras da semana no chão, ao lado da menina mais nova que tinha uma maçã na mão esquerda e a barra das vestes da tia na direita. Veio marchando rua abaixo, o vento trazendo suas exclamações exageradas enquanto as mãos da garota tremiam sobre as de Farah.

— Zeliha, quantas vezes eu já te avisei que não quero que saia de perto de mim? – As sobrancelhas dela se ergueram e franziram a testa, onde vincos formaram verdadeiras dunas sobre sua pele. – Quantas vezes? Consegue imaginar o tanto que eu e sua tia tivemos que andar nessa cidade pra te encontrar? Carregando peso? Eu quase pensei em te deixar.

As pálpebras da anciã abriram-se por causa de todo o estúpido vozerio na penumbra. Ela estalou os lábios, passou os dedos sobre a jade e desabou seus olhos sobre a tola no pátio, cheia de gestos e duros impropérios. Em resposta, a mãe lembrou-se que existiam mais do que ela e a filha no recinto.

— E está a incomodar as pessoas de novo? – Talvez oferecesse um sorriso de desculpas para as duas mulheres, mas reconheceu a postura de ambas: Ociosas numa rua erma, com ervas e pedras sobre a esteira no chão, feiticeiras. Franziu o nariz, Zeliha não tinha jeito mesmo. – Em casa nós conversamos, menina indecente.

As mãos dela arderam só da menção da suposta conversa, a qual seria o ressoar da palmatória noite adentro. Outra madrugada mal dormida devido aos dedos quentes e latejantes. Em pânico ela encarou o rosto da alisfata e das outras crianças, procurando algum apoio, alguém que pudesse fazer algo. Qualquer coisa. No entanto, nenhum dos infantes que restavam sabia o que dizer ou como ajudar, encarando-a de volta com os dedos envoltos com força nos ramalhetes. E a jovem jamais seria uma alis.

Farah encarou Zeliha de volta.

— Queira aguardar um pouco, minha ama. Não demoro. – A jovem em seguida ergueu o rosto para a mãe da menina com a expressão suave estampada no rosto, embora a claridade fizesse brilhar a alvura de seus caninos. Oh, ela não ousaria soltar a língua com uma feiticeira. Não aqui, não sozinha. A mulher abriu a boca para falar, mas calou-se.

O breve e ácido riso da aprendiz foi capaz de despertar a mestra de seus devaneios com os mortos, e esta piscou e piscou, querendo compreender a razão da súbita insanidade da outra. Até os espíritos que sempre a acompanhavam desviaram seus olhos vazios para aquele divertido crocitar. Ela remexeu a cesta cheia de ervas, fazendo o aroma de manjericão, um dos mais fortes, espalhar-se no ar. Já anoitecendo, o restante das crianças também não demorou-se a sair dali. Não esperariam mais mães e pais virem para mais gritaria.

No mesmo lugar e ardendo em fúria e medo, a mãe remexia-se sem saber se agarrava o pulso de Zeliha e partia ou se simplesmente gritava com a feiticeira barata. Era bom que a filha não tivesse dado um único tostão àquelas duas, senão mal conseguia imaginar o que faria. Ela voltou seus olhos para a irmã, igualmente assustada, e a filha pequena que importava-se mais com os insetos que criquilavam nos arbustos. Nesse pequeno ato, curto como o piscar de olhos ou o cair de uma estrela, Farah pegou a mão da menina.

— Aqui, minha querida. – A neófita segurava com as pontas dos dedos da outra mão, de unhas compridas e secas, uma longa pena preta de um corvo deveras elegante. Ainda não o encontrara pessoalmente, a pena estava nos paralelepípedos do chão no caminho de manhã. Ainda não era hora de encontrá-lo. Farah sacudiu de leve a cabeça, num gesto calmo e que balançou de forma graciosa o seus cabelos. Seus olhos, porém, adquiriram um brilho semelhante da lâmina de uma adaga quando pôs a pena na palma predestinada da garota. – Leve isto e saiba manter um segredo.

Também lhe entregou um ramo pequeno de alecrim.

— Eu acho que já basta. – Ela ousou dar mais um passo a frente, mas não dois. – Zeliha, chega. Afaste-se dessas duas!

— Mas... A minha linha da vida? A minha linha do destino? – Ela sussurrava com urgência, tropeçando nas palavras. A mãe não poderia ouvir, tampouco ela poderia ficar.

— Diga-me, Zeliha... – O sorriso dela mais uma vez foi calmo, tanto que a menina se perguntou se ela ouvia os impropérios e ameaças de sua mãe, ou o marchar de seus pés para cada vez mais perto. – Quando os corvos voam?

Ela não respondeu.

— O que traz a tempestade? Quando a chuva cai? Vamos outra vez, resuma: Quando os corvos voam?

De repente o peso de sua tenra idade desabou sobre os ombros magros de Zeliha. Estava cansada, tão cansada, e a pergunta da alis mais parecia uma piada de mal gosto. Afinal, quando os corvos voavam?

— ...Quando compreender a razão dos corvos voarem, vai compreender a sua própria palma. – Farah completou, agora séria. – Não se preocupe com as linhas de seu futuro, no fim são linhas. Apenas linhas. Não deixe de fazer o que quer por causa de marcas nas mãos.

Zeliha ocultou a pena nas dobras das vestes num movimento rápido, mal tendo tempo de sentir sua textura de encontro com sua pele, pois a mão de sua mãe lhe rapinou o pulso e ela cuspiu mais ofensas ao vento, ofensas que Farah nada fez senão rir.

A noite então finalmente caiu serena e os arquejos de dor da menina já não passavam de sons distantes. Nada mais de exclamações estúpidas e falta de fineza evidente, nada mais de crianças a rir com ervas e seus destinos nos dedos. A aprendiz soltou mais um suspiro, organizando os objetos que trouxeram naquela tarde como se nada importasse e ninguém houvesse gritado a três palmos de distância de seu rosto.

Archotes clarearam as ruas e as estrelas preocupavam-se em pôr luz na face das duas. Foi neste instante que a mais jovem notou que a anciã a encarava pesadamente, os olhos profundos e enraizados de rugas, embora o brilho no início de sua catarata fosse diferente. Aquilo era...orgulho? Mesmo praticando a clarividência, Farah não soube dizer. Talvez fosse a sua própria soberba distorcendo a visão de suas pupilas, talvez não. De quê serviria se importar com isso, de qualquer maneira?

— Você podia ter simplesmente dito que as linhas dela eram rompidas. Tanto a linha da vida quanto a do destino. Poderia ter dito à ela, mas não o fez.

Ah, a linha da vida... A linha da interpretação do conforto e das mudanças da existência. Rompida. Começava ali, serpenteando a pele... Para cessar um centímetro, e aí prosseguir feito uma estranha naja que aprendera a saltar. De fato, havia uma mudança brusca ali. Uma bela mudança. E a linha do destino? Bem, a linha do destino revela a ação dos ventos externos, que alteram a rota das flechas lançadas. De novo, a linha se interrompia e depois mudava de direção.

Mas, ela era uma criança. Uma criança com o futuro aberto e caminhos ainda muito vagos.

Uma palma de leitura simples e...

Manipulável.

— Não. – Farah pegou a cesta com uma das mãos e ofereceu seu outro braço à velha, cuja a força física estava longe dos seus dias de glória. Aziz ergueu-se com dificuldade, segurando o colar de jade como se temesse perdê-lo na mais fortuita ação. – É claro que não. Qual seria a graça?