Charlotte

Levantou da cama de má vontade, desejando permanecer dormindo pelas horas restantes do dia. Sentia um grande desânimo, perdendo até mesmo a disposição para tomar o desjejum e iniciar atividades produtivas. Nem mesmo suas tarefas como médica eram capazes de animá-la ou motivá-la a sair da torre. Charlotte não queria olhar para a cara de ninguém, pois precisava de um tempo sozinha para refletir sobre tudo o que vinha acontecendo.

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Abriu as cortinas, deixando entrar um pouco de luz no cômodo. Observou a paisagem mórbida visível através da janela em que se encontrava. Uma região completamente nevada, com algumas árvores e arbustos espalhados. Bem à frente, a uma distância gigantesca e após a cidade de Siedronus, uma floresta com os mais variados tipos de plantas se formava, com uma pequena e longa trilha que levava às Montanhas Sombrias. Estas se erguiam até o céu, sendo impossível para Charlie e todos aqueles que não cruzavam a trilha saberem o que realmente existia por trás delas. Eram conhecidas principalmente pelas criaturas monstruosas e aladas que ali habitavam, de acordo com mitos e lendas, que citavam gigantes dragões e serpes. Nessas histórias, as feras tinham sua própria região antes do domínio humano e desejavam se vingar daqueles que a roubaram, mas Charlotte acreditava que isso era narrado apenas nos contos de terror, feitos para assombrar a vida de qualquer criança que os escutasse, ensinando-as o que era sentir o medo.

Durante as outras estações, principalmente na primavera, vastos campos coloridos se abriam naquela mesma visão, mostrando a real beleza que a natureza tinha a oferecer. Isso trazia a Charlotte boas sensações, pois nem tudo naquele mundo era ruim e trágico. Grimwerd tinha suas maravilhas, que eram algo que os humanos nem sempre tinham noção ou sequer valorizavam.

Despertou dos devaneios quando alguém bateu à porta do quarto. Charlotte bufou, se prontificando a atender o indivíduo. Sua reação mudou quando viu as amigas Katherine e Hazel, mas ainda assim não era um bom momento para que conversassem. Controlando o instinto de ser rude desnecessariamente com as duas, permitiu que entrassem e se sentassem em duas cadeiras próximas a uma mesa de canto.

— Há algo muito importante que precisamos conversar... — A rainha disse, sem amenizar as coisas, sendo direta. A princesa a conhecia e sabia quando estava prestes a iniciar uma situação complicada. — Em primeiro lugar, quero que saiba que foi uma decisão tomada pensando em seu melhor, embora não pareça.

Convenientemente, havia três assentos. Charlotte ficou com o último, encarando as duas mulheres que expressavam seriedade em seus olhares.

— Sobre o que estão falando?

— Eu e seu pai ficamos verdadeiramente tristes pelo que aconteceu depois do nascimento de Cedric e Daevon. Não queríamos que você se sentisse isolada ou longe de nossa família, pois você faz parte dela e nunca deixará de fazer.

— Você não entende.

— Posso não ter tido uma infância tão difícil quanto a sua, mas sei do que estou falando. — As palavras eram ditas com sinceridade. Sinceridade tão grande que a garota não conseguia se atrever a sequer duvidar do que era pronunciado. Perceberia caso a madrasta estivesse mentindo, pois sabia reconhecer isso nas pessoas. — Lothar cometeu graves erros, muito piores do que tudo o que podemos imaginar, mas ainda é o seu pai. É alguém que faz parte de sua vida.

“Está do lado dele em tudo, mas parece que faz o jogo do rei por ser a única solução cabível, como se... fosse obrigada a dizer tudo isso. Ela sabe o que acontece com quem discorda de suas ordens e deseja sua confiança para usufruir disso mais tarde. Esperta.”

— Não age como se fosse.

— Desde que seus irmãos chegaram, Lothar realizou muitas tentativas para que vocês se aproximassem. Sou prova disso. Charlie, sou sua amiga e quero apenas que você fique bem. Por causa disso, conseguimos uma solução para o problema... Você se casará.

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Hazel abaixou a cabeça, envergonhada, mas ainda assim sem abrir a boca. Charlie compreendia que a ama não tinha voz nenhuma no palácio e estava apenas obedecendo às ordens que lhe eram sujeitas. Jamais culparia a senhora pelo que estava prestes a acontecer.

— O quê?! — Não sabia como reagir diante daquilo. Foi um verdadeiro baque, pois estava muito jovem para se tornar esposa de alguém e não estava preparada para realizar tal ação. Certamente, assim como muitas garotas novas que eram obrigadas a se tornarem mulheres da noite para o dia, seria com alguém muito mais velho, o que a apavorava ainda mais. — Estão tomando decisões sobre meu futuro sem me consultar? Sem se importar com o que vou sentir?

— Ulrick é um bom homem. Está triste desde que perdeu a esposa e não consegue cuidar bem dos filhos. São crianças que precisam de afeto e de uma nova mãe, Charlie. Sua presença nessa família será como uma luz. Poderá mostrar a eles que ainda existe esperança e que não precisarão sofrer para sempre.

— Isso... é... loucura.

Charlotte se apressou em deixar o ambiente, fugindo do alcance da rainha ao descer a escadaria e utilizando os atalhos nos corredores. Fugiria de tudo e de todos para um local onde não pudesse ser facilmente encontrada. Por causa dos passeios e explorações que fazia com Elliot, conhecia quase todos os cantos e esconderijos da cidade de Arroway, dificultando que os guardas de Lothar encontrassem seu paradeiro.

Sabia que Katherine e Hazel estavam vindo atrás, pois não desistiriam de tentar fazê-la ver o melhor daquela proposta. Entretanto, seu passos eram muito mais ágeis em comparação aos delas. Era a única que passara anos fugindo de Lothar e brincando de caça-bandidos com Elliot nos bosques, em uma época distante da realidade atual.

Desceu a escadaria principal e seguiu por uma porta lateral, observando que homens responsáveis pela patrulha poderiam ter sido comunicados de sua fuga. Qualquer um que a visse seria prejudicial. Não podia se deparar com ninguém.

Tinha a noção de que não poderia fugir para sempre. Mais cedo ou mais tarde, teria que aceitar aquilo e agir conforme as leis mandavam. Aproveitaria o tempo para pensar na melhor maneira de lidar com o futuro casamento.

...

Sem se importar com o frio que fazia seus ossos doerem de tão forte, ficou encostada em uma árvore e olhando tristemente para um grande lago que estava congelado. Lago que, durante as épocas quentes, era um ponto de diversão com o pequeno pescador.

Estava livre para chorar o quanto fosse necessário, já que ninguém estava ali para interromper o momento ou constrangê-la de alguma forma. Explodiu em lágrimas, querendo que Elliot estivesse vivo para lhe trazer conforto e tranquilidade. Era um dos únicos capazes de ajudá-la a controlar os momentos de loucura e agonia.

Mas havia outra pessoa que tinha a mesma capacidade. Essa pessoa estava viva e acabara de aparecer à sua frente. Quando viu Hazel, Charlotte não hesitou em abraçá-la. O laço entre as duas era mais resistente do que qualquer coisa que tentasse destruí-lo.

— Hazel, por favor, me ajude...

— Minha querida, não há nada que possamos fazer. Como Katherine disse, Ulrick é um bom homem e saberá tratá-la de forma digna. Caso contrário, ele terá muitos inimigos para enfrentar.

— Acha mesmo que esse casamento pode ser bom?

— Tem algo que gostaria de compartilhar com você... Falar um pouco sobre meu passado. — Charlotte parou de chorar, sendo tomada pela curiosidade. Em todos os anos que viveram juntas, Hazel nunca tocara naquele assunto. — Quando conheci aquele que se tornou meu marido, tive um pouco de medo, no início. Era alguém que não conhecia, mas revelou ser boa pessoa, honesto e trabalhador. Discutíamos algumas vezes por causa de nossas diferenças de pensamentos e também porque alguns rapazes tentavam me seduzir, mesmo que nunca tivessem sucesso. Não demorei muito a amá-lo.

— É possível que aconteça comigo? Que eu tenha a mesma sorte?

— Com certeza, mas precisa ser corajosa para isso. Amadurecer. Não demonstrar fraqueza diante dessas dificuldades e saber ultrapassar esses obstáculos do jeito certo.

A menina abaixou a cabeça, concordando com a ama. Entrando em consenso de que deveria retornar, tomou a iniciativa e foi pelo mesmo trajeto que percorreu até o lago. Hazel, logo atrás, seguia seu passo.

Charlie respirou fundo. Um dia, faria Lothar pagar por todos aqueles pecados. E quando acontecesse, não seria nem um pouco bonito. Lothar sofreria na pele tudo o que Charlie sofrera por treze anos. Permitindo que toda a tristeza e amargura tomasse conta dela naquele instante, sorriu imaginando os mais variados métodos de tortura que poderia utilizar no futuro, quando o rei fosse velho o suficiente a ponto de não conseguir reagir aos seus ataques.

...

Atravessou a ponte levadiça, suando de nervoso. Mesmo com a baixa temperatura, retirou o cachecol, sem se importar se corria riscos de contrair algum tipo de doença. Além disso, ventos fortes vinham na direção de Charlie, desarrumando seus cabelos soltos. Impacientemente, a garota os colocava de volta no lugar, repetindo o gesto inúmeras vezes.

Os guardas a reconheceram e abriram passagem, sem hesitar. Charlotte corajosamente subiu os degraus da escadaria principal e respirou fundo, antes de ir aos aposentos de Lothar e Katherine.

— Tudo dará certo, minha filha. — Hazel colocou a mão em seu ombro e acompanhou seu passo. — Saberá utilizar as vantagens de tudo a seu favor, assim como todas as mulheres um dia devem fazer.

— Assim espero.

Quando Hazel se prontificou a chamar a rainha, Katherine saiu do cômodo com um sorriso no rosto, aliviada por ter a enteada de volta. Diante do olhar lançado pela madrasta, Charlie se sentiu, de alguma forma, amada. Gostava de saber que Katherine realmente se importava.

— Fico feliz por ter pensado melhor sobre a ideia. Charlie, tenho noção do perigo que corro ao revelar algumas coisas que estão entaladas em minha garganta, mas... peço para que entre comigo, sozinha. A partir de hoje, teremos um segredo.

Hazel assentiu, sem se importar com o fato de ter que aguardar a princesa do lado de fora. A senhora era sempre compreensiva, dotada de uma paciência que chegava a ser surpreendente. No lado de dentro, Katherine conduziu a mais nova até a varanda exclusiva do casal, para que pudessem ter a discussão ao ar livre.

— Que segredo é esse? Algo sobre meu pai?

— Certamente que sim. Charlie, o rei possui um comportamento instável e agressivo, podendo ser rude com aqueles que tanto ama, assim como aconteceu com você. Lothar somente agora percebeu a sua importância, mas temo que volte a praticar atitudes cruéis com todos nós. Concordei com esse casamento por ser uma forma de você se mudar daqui e se ver livre dessas tormentas, tendo a sua própria vida e mais segurança.

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— Kath, eu não havia pensado nisso...

— Eu sei... Pode até não acreditar, mas já tive um coração puro e inocente como o seu. No entanto, semanas de sofrimento me obrigaram a mudar minha forma de pensar, se quisesse continuar sobrevivendo. Sei que parecerá um inferno no início, mas creio que será a melhor opção. Vou me assegurar de que Ulrick será um ótimo marido.

— Como fará isso?

— Não queira saber. Como uma amiga que se preocupa, tenho um último pedido a fazer: não conte sobre nada sobre o que falamos a ninguém. Temos que agradar Lothar para evitar possíveis complicações.

...

As duas entraram em um acordo, no qual a princesa pediu para o casamento ser realizado numa cerimônia simples e sem muitos convidados. Algo que não causasse movimentações por toda a população ou que fosse motivo de fofocas. Charlotte sabia que as fofocas viriam de qualquer maneira, mas gostaria de evitá-las o máximo possível.

Enquanto isso, Lothar fora se comunicar pessoalmente com Ulrick para anunciar suas vontades de que este fosse o noivo da filha. Quando retornou ao castelo, o rei disse que Ulrick aceitou e os preparativos para a cerimônia começaram nos dias que se sucederam.

Charlotte usou um vestido bonito e sofisticado, mas não tão elegante quanto o de Katherine em seu casamento. O tecido era azul, uma das cores que representavam a pureza naqueles tempos. As mangas eram longas e as saias, retas.

Adentrou o santuário de braços dados com o pai. Lá dentro, estavam presentes Hazel, Katherine, os pequenos Richard e Elizabeth e o sacerdote religioso que se responsabilizaria por oficializar a união. Eram poucas pessoas, como a noiva havia pedido.

A cada passo que dava, pedia aos deuses em pensamento para lhe concederem uma boa vida como esposa e para Ulrick ser um marido amoroso. Era o essencial para qualquer menina que estava prestes a se tornar uma mulher.

Fim da Parte I