Meus batimentos cardíacos aumentaram a cada segundo que passava. Só de pensar no que dizer aos parentes dos três participantes mortos, me dava calafrios. O prefeito Gies tira do bolso do paletó, dois cartãozinhos, cada qual contendo uma mensagem e distribui cada um para mim e para a Anne. Deduzi que fosse para deixar tudo ao pé da letra ou para ler em voz alta, diante do público.

– Estes cartãozinhos que vocês têm em mãos - explica Gies. - contêm a mensagem que um de vocês deve falar diante do público. Leiam-na em voz alta.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

– São mensagens de pêsames? - indagou Anne, curiosa.

– Exatamente, srta. Zimmer - concorda Gies. - As famílias dos participantes falecidos no clímax do reality ainda sentem o pesar da perda dos filhos. A mãe de um dos rapazes quase sucumbiu à profunda depressão.

Imaginei que um dos rapazes, no qual o prefeito Gies se refería, fosse o Otto. Sua morte foi muito dolorosa e eu chorei por isso. Imagino também como os pais de Lewis reagiram ao ver aquela trágica cena na televisão. Nas primeiras noites em que eu estava de volta a Munique, eu tive pesadelos e em alguns deles, tive insônia.

Marni passou por trás de mim e parou na minha frente.

– Lembrem-se, postura ereta, sorriam e acenem - ela repete o procedimento do trem. - Enquanto um de vocês lê a mensagem do cartão, o outro continua ereto e com o rosto voltado para o público. Resumindo, ao chegarem ao palco, sorriam e acenem...

Marni foi interrompida por Margot, que começava a ficar um pouco impaciente com a cobrança da apresentadora.

– Eles já sabem disso, Marni. Não precisa repetir.

Marni ficou corada e paralisada. Mas voltou a sorrir para a gente e se desculpou. Ela deve ter visto que já sabemos do procedimento.

Enquanto a porta não abria, eu aproveitei para dar uma esporádica no cartão, cuja mensagem estava escrita assim:

Senhores pais dos falecidos da 64ª edição do Survival Game,

Expressamos o pesar da perda, assim como a vossa senhoria. Durante o reality, ele demonstrou sua tamanha bravura e honra nos primeiros dias, sobrevivendo às mais duras condições de vida em um ambiente hostil. Só de pensar nos seus dias antes do Dia da Seleção, sua vida foi pacata, apesar das repressões que tem sofrido por ser judeu. Uma tristeza foi tão grande que vocês têm sentido, no momento em que ele nos deixou, diante da tela da televisão, diante do expectador. Foi um tiro no coração em todos nós. O que fazer, sem ele para afagar-lhe o abraço? Sem ele para beijar-lhe a cabeça? Sem casar, nem ter filhos?

O seu filho agora pertence aos céus, levando uma vida melhor. Que Deus o tenha e ele sempre estará no coração de cada um.

Imaginei a mim, morto. Como é que os vencedores fariam para consolar os meus pais? Também, que cara de pau o führer tem para nos consolar da perda? Afinal, foi ele quem matou. Ele, não! Aquele sem-noção, Fritz Hollharf. Hitler II o tirou de Reichenstag para nos reprimir ainda mais. Fritz só nos subjugou com o reality, enquanto Hitler reprime ainda mais cassando os nossos direitos e nos mantendo em quarentena.

Abriram a porta apenas para a equipe de filmagem. Minhas. Mãos começam a tremer, a suar frio. Sinto a mão da Anne envolver a minha mão esquerda, que tremia e suava frio. Ela estava bem quente, mas tornava aconchegante, o suficiente para acalmar a tensão.

– Fique frio, amor - Anne sibilou no meu ouvido. - Estamos juntos nessa.

– Posso ver o que está escrito no seu cartão? - perguntei, curioso.

Anne me mostrou o cartão, enquanto dei o meu a ela. As mensagens eram praticamente idênticas. Só de pensar no que falar, fico apreensivo e apesar do aconchego que a Anne me dá, tampouco vai adiantar. Enquanto os vencedores se tornam famosos, o resto dos judeus permanece segregado e os demais inferiores, como ciganos, traficantes de drogas, negros e árabes, sao levados diretamente para os Campos de Concentração, realizando trabalhos forçados e geralmente são duramente asfixiados pelos gases ácidos das câmaras de gás. Hoje tem uma pequena parcela dos judeus em Campos de Concentração.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

– Praticamente igual ao meu - murmuro, fazendo a Anne erguer a cabeça para mim.

– É sim - balança a cabeça em concordância.

Do nada, ouço uma voz masculina de um alto-falante ressoar nos meus tímpanos.

– Senhoras e senhores, com vocês, os vencedores da 64ª edição...

– Às vezes, fico pensando sobre como vai ser, se um de nós ou até nós dois estivéssemos no lugar dos outros - reflito.

Anne dá de ombros. Eu suspiro profundamente. Ela roça levemente o meu braço esquerdo e o envolve delicadamente, aproximando-se de mim.

– Fique frio - sibilou no meu ouvido. - estou contigo, amor. Pro que der e vier. Não importa se fizermos papéis de ridículos na frente de todo mundo.

Inclino a cabeça ao seu lado e sussurro:

– Estarei com você, Annie. Você é a garota dos meus sonhos. O destino, às vezes, pode ser irônico na vida. Mas em certas circunstâncias, ele pode ser seu amigo. O meu pai falou isso um dia.

Ela me beijou na lateral do pescoço, quando ouço um ranger das portas, seguido de ovações do público do outro lado.

– O show já começou - gorgeia a sra. Gies, acompanhando o marido com os braços enrolados no braço direito dele.

Margot fica atrás de nós, enquanto marchamos em direção ao palco, quando os gritos histéricos dos fãs aumentaram de intensidade. Neste momento, até pensei que ia ficar surdo com isso, mas mesmo assim, nem penso em tapar os ouvidos. Por outro lado, semicerro os olhos e franzo levemente o cenho para tentar dissipar o barulho ensurdecedor da multidão. Pelo menos eu esboço um sorriso sem graça cerrado na cara.

Entrelaço os dedos da mão esquerda com os da direita da Anne, sem perceber. Chego ao microfone com as mãos suando frio e uma delas segura o cartão. Marni encontra o seu lugar no lado direito do palco, junto com o restante da equipe. Margot continua na soleira da porta do edifício.

O prefeito Gies cruza o palco e fala ao microfone:

– Estamos aqui reunidos para contemplar a glória que os dois conquistaram durante o programa. - ele aponta a mão para nós. Mordo o lábio inferior de constrangimento. - E embora tenham lutado bravamente, nem tudo foram flores para eles. Os seus aliados que os acompanharam durante a jornada, os deixaram para salvá-los e mesmo assim, foram considerados mártires do reality.

Mártires?! Hitler nos confinou no sudoeste da Alemanha e o prefeito Gies alcunha tanto a mim e a Anne, como os nossos companheiros mortos no programa de mártires? Querem nos fazer de bobos, principalmente os pais deles que ainda sofrem com a dor. Lá no meio da multidão, avisto uma mulher com cabelos loiros escuros que aparenta ter quarenta e poucos anos, cujo rosto estava inchado de chorar. O homem, um pouco mais alto que ela, - creio que seja o marido - gordo e com cabelos castanhos escuros e as costeletas grisalhas, a ampara com o máximo de cuidado. Reconheço o rosto da mulher. Vejo pelos seus olhos, castanhos. Deve ser a mãe de Otto, deduzo. E ele deve ser o pai. Do lado direto deles, uma garota loira se enrosca no braço do homem. Ela nem se parece com nenhum dos dois. Ou deve ser prima, ou deve ser a namorada do Otto.

– E eles, o sr. Heinrich Holger e a srta. Anneliese Zimmer - ele continua, enquanto olha para nós de relance. - têm algo a declarar para os parentes dos seus falecidos companheiros, aqui presentes.

Ele deixa o microfone e dá um passo para trás. Eu adianto um passo para frente e me recomponho ao microfone. Rapidamente, abaixo o olhar para a mensagem e, num piscar de olhos, começo a falar, sem me dar ao luxo de decorar a fala:

– Caros pais dos fale... - nem penso em falar isso, pois comprometeria os pais de Otto, Lewis e de Hannah, ao falar a palavra "falecidos". Sem hesitar, continuei, mas de forma simplificada ao da mensagem. - Dos nossos companheiros da 64ª edição do Survival Game, estamos aqui para compartilharmos a tristeza, sobre o quanto sentimos pela perda de um ente muito querido, que a vossa senhoria pressentiu, assim como nós.

Olho para a multidão que estava estática no lugar, silenciosa. A mulher, sobre a qual mencionei, ficou atenta em mim, mas continuava sendo amparada pelo marido. Minha testa suava e sentia palpitações.

– Também nós, remanescentes do reality - eu nem sonharia falar "vencedores", pois isso seria um ato de superioridade. - também lamentamos a perda dos nossos aliados, que foram, ao mesmo tempo, companheiros e até amigos. Sabemos que não será nada fácil imaginar que ele nunca mais poderá ter um ombro amigo, nem beijar, nem casar ou ter filhos, tampouco se tornar avó ou avô. Tampouco abraçar os amigos, nem o aconchego da família terá de volta.

Uma lágrima brota dos meus olhos, à medida que eu falava sobre o "nunca" das possibilidades, principalmente sobre a parte do abraço e o aconchego. E isso me fez lembrar a Elise, pelas noites que ela chorava por minha causa. Comigo, os pais, em meio à multidão, começava a emitir lágrimas no rosto, à medida que eu falava. Até parecia que estava recitando um elogio fúnebre em um velório. Mas isso é um velório, mas não uma turnê, na minha opinião.

– Então, por mais solene que seja essa declaração, eu vos peço - enquanto falava, ao mesmo tempo lutava para conter a lágrima que teimava em descer em rios sobre o meu rosto. - eu vos peço para que sigam em frente, não guardem mágoas do passado, pois é isso que o filho de vocês querem que vocês façam. Ele ficaria muito feliz se dessem um passo para frente, sem ao menos olhar para trás. - minha voz começava a ficar um pouco embargada. Suspirei. - Muito obrigado.

Todos ficaram em silencio completo. Eu esperava o contrario e o temia, ao mesmo tempo. Foi quando a mulher saiu do lado do marido e veio ao palco, com os guardas abrindo passagem para ela subir e parou na minha frente, me encarando. A princípio, eu pensava que ela fosse se manifestar, alegando que matei o filho, o que ocorreu exatamente o contrario. Ela me envolveu nos braços embaçou o soluço com suas lágrimas rolando pelo rosto. Me deu uma vontade de poder chorar também.

– Muito obrigada - ela sussurrou, com a voz embargada pelo choro. - Muito obrigada por salvar o meu filho.