Família

Capítulo VI - Imortal


A saudade abriu seus olhos.

Piscou uma, duas vezes, tentando prolongar dentro de si aquela sensação fantasma de um apito ressoando até ele ter um sobressalto – passara anos sendo tirado de seu sono assim, também com uma mãozinha chacoalhando-o, frenética. Sentiu um sorriso nostálgico nascendo sem permissão em seus lábios.

Soltou um suspiro pesado, porém decidido; estava na hora de lidar com aquilo. Na quietude do quarto que não era realmente dele, espreguiçou-se bem até ouvir estalos e resolveu dar um jeito naquele sentimento incômodo que persistia. Espremeu os olhos no breu e resmungou ao levantar da cama, o dedão do pé colidindo com a madeira. Não tardou, pôs-se a procurar em sua mochila jogada no cantinho uma coisa.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Mesmo amassada, era uma coisa importante: “Onii-chan, é o melhor modo de se eternizar um momento! Tenho certeza de que não existe um melhor. Se cuidar direitinho e tomar cuidado para não perder (eu sei como você tem hábito de perder as coisas, seu bobo), ela fica pra sempre!”

Taichi Yagami desdobrou a foto e a encarou.

A família estava sorrindo.

“Será que eles sentem a minha falta?”

Os olhos zelosos da sua mãe na imagem iriam encher-se de indignação com a pergunta na vida real. Iria, resoluta porém bem-humorada, puxá-lo pelas orelhas um pouco e dizer o quanto aquela dúvida era sem sentido. Yuuko Yagami amava muito os filhos e não permitiria que aquele tipo de aflição vivesse dentro de nenhum dos dois, seus tesouros preciosos que mereciam viver a cima de tudo. A mortalidade deles e o quanto ela se aproximou durante os anos foi desconcertante.

Tão perto de perdê-los várias vezes, Taichi não podia imaginar como a mãe aguentava. Mesmo antes do Primeiro de Agosto, ela ia recebê-lo em incontáveis situações com arranhões ou ossos quebrados depois de jogos de futebol fatídicos, assistir o corpinho frágil de Hikari contorcer-se com dores e vibrar com as tosses que nunca paravam de irromper dentro dela até que a garganta ardesse e a voz sumisse – ela era uma mulher forte, protetora, impulsiva quando um de seus filhos se machucava.

Tocou suavemente a bochecha e estremeceu.

Nenhum deles estava machucado agora. Só estavam longe um do outro, mas estavam indo bem. Estavam se virando e descobrindo novas coisas, crescendo como ela sempre quis ver. Taichi sentia-se preocupado com a mãe, que, por mais que estivesse orgulhosa, devia estar triste ao ter os pássaros voando para fora do ninho.

“Taichi! Não quero que você fique preocupado comigo, ouviu?! Está tudo bem, meu amor, vai estudar e se formar e realizar os seus sonhos. Logo a Hikari vai, também, mas eu vou ficar ótima. Seu pai vai sempre estar aqui para me fazer companhia.”

Susumo Yagami. Ao ouvir a questão do filho, o pai iria balançar a cabeça, tentando tranquilizá-lo com um aperto firme no ombro e umas batidinhas amigáveis nas costas. Não ia dizer muito, ou fazer drama. Iria sugerir que ele fosse esfriar a cabeça indo se divertir, sair com os amigos e curtir uma das melhores fases da vida. Susumo tentaria levantar o humor dele pegando Miko e dizendo que ele podia relaxar limpando a caixa de areia do gato. Se estivesse descansado, até, iria propor uma partida de futebol, “em nome dos velhos tempos, filho, em que você não ia a nenhum lugar sem uma bola na frente dos seus pés.”

Taichi riu baixinho e pousou os olhos na garotinha com o apito no pescoço.

A irmã mostrar-se-ia surpresa e preocupada – ‘por que você perguntaria algo assim, Onii-chan?’ – por alguns segundos antes de lhe oferecer um daqueles sorrisos luminosos e abraçá-lo forte com o amor que ele iria estimar até o túmulo. Hikari continuava sendo sua protegida e ele o garoto que correu atrás dela pelas ruas escuras de Hikarigaoka até encontrá-la; ela estava mais forte, mas ele continuaria a encontrando onde quer que ela estivesse, com ou sem apito para chamá-lo.

Hikari ainda era a luz que o guiava nas horas de turbulência.

“É claro que sentiremos sua falta,

Mas você sempre vai voltar para casa!”

Taichi sabia que toda a mudança da faculdade, afastar-se da família e do lugar no qual havia crescido seria complicada, dolorosa inclusive. Sendo ele quem sempre foi, encarou a situação de cabeça erguida, pronto para mergulhar no que aquela nova aventura tinha a oferecer. Os desafios o instigavam e ele estava feliz, mas ainda havia dias em que se encontrava desejando voltar no tempo e para sua amada casa – ver aquele pequeno fragmento da sua vida ali, silencioso e por enquanto sob seus cuidados inquestionavelmente imortal, transportou-o para uma época em que o sonho da diplomacia era remoto e as tardes resumiam-se a brincadeiras no parque.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Agora, ele tinha dois mundos para conciliar,

uma família que iria apoiá-lo.

E uma foto com algo escrito.

***

Onii-chan,

Achei essa fotografia num algum de família perdido; a Miko que achou, na verdade, estava debaixo da sua cama. Devia arrumar melhor seu quarto! Enfim, olha que ótimo! Acho que foi seu primeiro torneio de futebol! Com, o quê, seis anos? Você parecia tão feliz segurando o troféu... mesmo ele sendo quase o dobro do seu tamanho. Mamãe não parava de sorrir e o papai estava tão orgulhoso! Vou colocá-la na sua mochila. Olhe para ela toda vez que se sentir com saudades. Cuida bem dela.

Com amor,

Hikari.