ApocalipZe

DIA Z - Eduardo


03:00 a.m.

Assim que pôs os pés dentro de casa, Eduardo não queria mais nada além de sua cama.

Porém, não pôde evitar um banho. Estava precisando depois de tanto suor.

Assim que se deitou, deixou escapar um sorrisinho ao se lembrar das horas passadas.

A única coisa que atrapalhou o momento foi aquela incômoda dor no corpo, que o lembrou de sua consulta, marcada para o dia seguinte.

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Na verdade, estava mais para uma sensação ruim, mas Eduardo deixou para se preocupar com isso na consulta.

09:47 a.m.

Naquele dia, o estacionamento privado do Senado estava fechado para reforma. Eduardo não se importou por não lembrar. Na verdade, a única coisa que o incomodava era o risco que seu carro correria em um local qualquer. Infelizmente, não teve outra escolha a não ser deixá-lo em um estacionamento público.

No trabalho, a primeira coisa que notou foi a falta de Amanda. Preocupado com a possibilidade de ela não ter lido o bilhete, ele apressou-se em ir ao banheiro para telefonar, quando seu chefe o avistou no corredor e lhe deu aquele sorrisinho.

A reunião durou o resto de seu expediente.

14:35 p.m.

Após mais um dia de trabalho, Eduardo arriscou uma ligação para Amanda enquanto se dirigia até seu carro; no momento em que ligou o celular, recebeu uma mensagem:

De: Amanda (♥) (online há 4 horas)

Bom dia! Acabei de ver o seu bilhete e concordo plenamente com a última frase... Porém acho que te esqueci de te de contar uma coisa: consegui tirar uma folga pra hoje. Mas podemos nos encontrar depois do turno, se você quiser.

Até logo! Beijos

Enviada às 10:43

Ele sorriu e sua vontade de ligar para ela aumentou ainda mais.

Chamou, chamou e caiu na caixa postal. Fora de área.

Ele teria que se preocupar com isso outra hora, pois quando pisou no acelerador, o carro permaneceu imóvel.

Deixou uma mensagem rápida e um beijo antes de sair para verificar o veículo. E então, viu os pneus furados.

Ele teve de respirar fundo e reunir todo o seu autocontrole para não soltar um palavrão.

Em vez disso, ele se contentou apenas em praguejar contra todos os estacionamentos públicos e vândalos da cidade.

Sem alternativa, ele se dirigiu até a parada de ônibus mais próxima enquanto ligava para o guincho.

16:21 p.m.

A consulta teria sido rápida, se não fosse um sujeito, já de idade, que entrara antes de Eduardo. O homem tossia ruidosamente em um lenço. Todas as vezes que o afastava da boca, Eduardo pensava tê-lo visto voltar vermelho. Várias vezes.

Concluiu que devia ser sua imaginação. A mão do homem tremia ligeiramente e não teve como não sentir dó do idoso.

17:54 p.m.

Após alguns exames, o médico concluiu que era apenas estresse. Passou-lhe uma medicação e o mandou ficar em repouso. Apesar de Eduardo não lembrar situação o deixara tão estressado.

Enfim, pensar em Amanda o animara mais um pouco enquanto ia até a parada de ônibus. Teria ela já ouvido sua mensagem?

Um homem tossia ruidosamente perto de si. Olhando disfarçadamente, Eduardo reconheceu o pobre senhor da clínica.

Eduardo não se lembrava de ter visto a pele do homem tão pálida, os olhos tão vermelhos e, Eduardo percebera, sua tremedeira parecia ter piorado. Ele parecia umas dez vezes pior que antes.

De qualquer forma, Eduardo aprendera cedo que era melhor cuidar de sua própria vida.

Voltando-se a seus devaneios, recordou-se de que a última vez que estava em um lugar como aquele foi no dia da prova de seu concurso. Tinha 21 na época, mas se recordava tão bem da data que parecia ter sido o dia anterior.

Então, Amanda lhe veio novamente á cabeça. Imaginou-se casado, com as crianças correndo pela casa enquanto ambos corriam atrás, felizes.

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Ele não conseguira falar com ela o dia inteiro. Talvez...

Após um pequeno esforço, ele conseguiu se lembrar do endereço. Sabia qual ônibus passava por aquela área e, talvez, se escurecesse rápido demais, quem sabe até não dormia por ali...

Bem na hora, o ônibus que passava pelas redondezas do prédio de Amanda surgiu da linha do asfalto, como que soubesse de sua vontade em visitá-la.

O homem que tossia se preparou para dar com a mão.

18:06 p.m. – 28 min.

Nos últimos instantes em que ponderava ir, a sensação voltou. Desta vez, um pouco mais forte.

Quase que um pressentimento.

“Estresse. Tente relaxar um pouco.” – dissera seu médico.

Ora, não era isto que ele estava indo fazer?

Ignorando-a, ele deu o sinal. O ônibus abriu as portas exatamente onde ele se encontrava.

Pensando estar com ao menos um pouco de sorte, ele entrou no ônibus. O senhor doente entrou logo atrás.

Eduardo decidiu sentar o mais longe possível daquela pobre alma adoentada e a sensação desapareceu de repente.

18:26 p.m. – 8 min.

Eduardo estava sentado na janela esquerda, na última cadeira da última fileira. Era o lugar mais longe possível do coitado. Apenas dois bancos do ônibus estavam vazios.

A viagem estava ótima, ou era ele quem estava muito bem, quando a sensação, do nada, surgiu novamente.

Desta vez, era mais forte que em todas as vezes desde que começara.

Havia algo errado. Eduardo sentiu.

O homem doente estava de frente para o cobrador.

No começo, Eduardo não percebera nada. Até um burburinho se iniciar e uma voz masculina se elevar acima do cochicho das pessoas:

– O senhor está bem?

Ele observou enquanto um cara qualquer se levantava de sua cadeira para ir até o senhor doente. A única coisa que Eduardo memorizara dele fora o boné vermelho em sua cabeça.

O ônibus parou em uma parada. Uma mulher com uma aparência cansada e agitada entrou segurando uma sacola biodegradável. Algo disse a Eduardo para descer ali, naquela parada. O ônibus retomou seu trajeto.

O senhor doente parecia não se importar com nada. Ficou sentado, como se nada tivesse acontecido e, não fosse o balançar do ônibus, ele sem dúvidas estaria imóvel.

– Ei, senhor! O sen...? – o cara mal terminou de falar e o velho começou a tremer incontrolavelmente.

O burburinho aumentou. A mulher de aparência cansada foi de encontro ao homem, tirou uma garrafa descartável de sua sacola e a estendeu para o velho com um sorriso gentil:

– Água deve ajudar. Sempre ajuda.

– Ei! Senhor! Vou chamar ajuda ok? – o cara insistiu.

O velho começou a fazer ruídos sem nexo. Um misto de gemidos, gritos, e tentativas de fala.

Como o homem estava de costas, Eduardo pôde acompanhar apenas a expressão confusa e preocupada da mulher e do outro homem.

A essa altura, Eduardo estava o mais alerta possível. Pegou o celular, pronto para chamar socorro quando o homem deu um grito alto.

O telefone chamou uma vez.

O telefone chamou duas vezes.

O telefone chamou três vezes.

18:30 p.m. – 4 min.

Na quinta vez, o barulho do ônibus estava suficientemente alto para indicar o medo das pessoas. Na sexta vez, uma voz suave atendeu:

– Alô?

– Amanda? – Eduardo ficou confuso.

Em vez do pronto-socorro, discara o número de Amanda sem perceber. Apesar de não se recordar bem quando exatamente ela lhe passara seu número.

– Eduardo? Oi! Estava mesmo querendo falar com você...

Eduardo pressentiu algo ruim vindo.

O pensamento de Amanda chateada consigo exigiu mais atenção:

– Oi! Sim, é claro. Escute, sinto muito por hoje mais cedo...

– Está tudo bem. Li seu bilhetinho. Achei superfofo! Inclusive, respondi por mensagem...

O alívio foi instantâneo. E ele sorriu rapidamente com aquilo.

– Não tive tempo de olhar o celular hoje. Desculpe querida...

Um som terrível veio da parte dianteira do ônibus. O velho havia s, que havia se levantado abruptamente e agora estava parado em pé. Ele balançava conforme o ônibus sacolejava.

– Não tem problema... Isso foi um grito? – perguntou Amanda, agora soando preocupada.

– Ah, nã...

Eduardo fora interrompido novamente pelo velho, que saltou sobre o pescoço da mulher bondosa. A que lhe oferecera água.

Ele congelou enquanto um esguicho escuro escapava do pescoço da vítima. Outra mulher levantou-se de seu assento e começou a gritar desesperada. A maioria das pessoas fez o mesmo, subindo e equilibrando-se sobre os bancos. Todas tinham o telefone em mãos e gritavam com quem quer que estivesse do outro lado da linha, em pânico. A essa altura, o barulho no ônibus estava suficientemente alto para indicar o medo das pessoas.

O homem de boné vermelho correra para a parte traseira do ônibus, ficando bem perto de onde Eduardo estava.

– Eduardo? O que está havendo? Que barulho horrível é esse? – A voz de Amanda subiu um tom, indicando que a preocupação crescera o suficiente para deixa-la quase que com medo.

– Escuta, tentei te ligar hoje mais cedo...

– Ah... Desculpe, eu acabei acordando tarde hoje... Mas me diga, por favor, onde você está? O que está acontecendo?

– Estou no ônibus indo para aí para conversarmos melhor. Quero dizer, se não tiver problema...

– O quê? Não! Claro que não... Que ótimo! Mas espera... Ônibus? Aconteceu algo com o carro?

Ele realmente não tinha tempo nem estava com cabeça para contar todos os detalhes, então começou a ser breve:

– É uma longa história... Em dez minutos chego aí e conversamos melho...

Outro grito. Desta vez masculino e alto chamou novamente a atenção de Eduardo.

O velho havia largado a mulher no chão, que mantinha um semblante de pânico e tentava tapar com uma das mãos ensanguentadas o pescoço ferido. A pobre mulher tremia de uma forma incontrolável.

– Edu? – chamou Amanda, no telefone.

A mulher de rosto bondoso tremeu por breves instantes, antes de cravar os olhos em Eduardo. Logo depois, seus olhos viraram vidro. No lugar onde o velho... mordera... Uma ferida aberta em seu pescoço continuava a expelir sangue negro e espesso.

O velho senhor olhava de um lado para o outro, grunhindo para todos que gritavam. Assim que deu um passo, o cobrador gritou, ao tentar escapar pelo lado livre. O velho senhor virou o rosto em sua direção e, como se aquele grito fosse tudo o que precisava, avançou.

Ambos caíram praticamente aos pés do motorista que, alarmado, girou o volante abruptamente.

– Eduardo?!... – com o solavanco, Eduardo deixara seu telefone cair enquanto tentava firmar a si próprio com a primeira coisa que suas mãos alcançaram.

– Amanda... tentou falar, mas foi interrompido.

Em seguida veio o grito doentio do cobrador acompanhado de um motorista em pânico geral.

Logo depois, tudo pareceu acontecer em câmera lenta: o corpo da mulher de rosto bondoso ser erguido do chão junto com todos os outros passageiros que estavam em pé; uma mulher, dos muitos que também se seguravam soltar o ferro após não ter mais forças para segurar o próprio peso; o ônibus virando de lado, tornando seu campo de visão algo confuso, como se ele estivesse no ângulo errado...

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Ainda em câmera lenta, ele captou acompanhou enquanto as primeiras rachaduras das janelas apareceram. Bem à sua frente, a expressão e o grito lentos e angustiados do homem de boné vermelho, que antes de ser jogado para trás, bateu a cabeça em um dos ferros e teve seu boné retirado com o impacto.

E então, o estouro abafado e sonoro de tudo o que era vidro do lado direito do ônibus misturando-se ao rangido terrível e metálico da lataria raspando contra o asfalto negro, tomando tudo o que era som no ambiente, penetrando fundo nos tímpanos e atravessando a mente de Eduardo de forma dolorosa e tortuosa.

O corpo de Eduardo ficou por um milésimo de segundo mais leve. Então, tão rápido quanto tudo o que acontecia ali, seus braços pareciam pesar mil toneladas enquanto ele concentrava todas as suas forças em segurar aquela barra de ferro. A dor e agonia eram tantas que ele não se surpreenderia se seus nervos e carne se rasgassem.

O corpo do homem foi violentamente afastado de si e, um segundo depois de sua cabeça tocar o asfalto corrente debaixo das janelas quebradas, ele abriu a boca. Porém, foi tudo rápido demais até para seu último grito quando sua cabeça foi arrastada e ficou presa no vão entre janela/asfalto.

O sangue jorrou abundante. Como se uma bolsa enorme e cheia do líquido estivesse em rápido movimento e tivesse sido rasgada no ato. O que era terrivelmente parecido.

Depois, o ônibus sofreu outro impacto, tendo sua lataria traseira amassada bem ao lado da cabeça de Eduardo, enquanto seu próprio rosto ia de encontro ao piso metálico do veículo.

Uma dor lancinante no nariz, o som de algo rachando, uma última batida, e todo aquele terrível cenário escureceu.

Ele recobrou a consciência antes mesmo de perdê-la por completo. Sabia que precisava se levantar sair dali e correr para perto de Amanda. Ele sentia isso.

– Eduardo? O que aconteceu? Você está bem? – era a voz dela.

A voz dela...

Vinha de algum lugar por perto e soava bastante aflita.

Ele olhou ao redor e viu seu celular, jogado num canto ali por perto.

– Eduardo...? – ela chamou novamente. Desta vez, com um tom de voz baixo e com palavras cuidadosamente escolhidas.

Amanda estava com medo.

Ele esticou o braço e pegou o aparelho:

– Amanda...

– Eduardo! Ai meu Deus, o que houve? Você está machucado? Ouvi um barulhão vindo daí, onde você está?

– Amanda, escute, por favor...

E agora? Se descrevesse o que acabara de acontecer, mesmo que sua narrativa fosse bastante eufemística, Amanda com certeza ficaria muito preocupada. E, pelo que Eduardo se lembrava desde a última vez que olhou pela janela, não faltava muito para chegar até a casa dela. Talvez uns quinze minutos a pé...

Então ele optou por omitir a pior parte. E tentando ignorar a dor no corpo e rosto, disse:

– Não houve nada, está tudo bem... Quero dizer, aconteceu um pequeno... acidente, com o ônibus. Mas nada com que se preocupar – sentiu algo quente escorrer de seu nariz à boca. Pelo gosto, ele já sabia o que era. Tentou limpar o que conseguiu com a mão, mas o sangue não parava de escorrer – Não estou muito longe de sua casa, já estarei aí. Te amo.

Ele não pode ouvir a resposta. Primeiro porque não queria preocupa-la ainda mais, segundo porque ele precisava sair daquele ambiente e terceiro, porque alguém em algum lugar ali dentro começou a gemer tenebrosamente, reforçando o segundo ponto.

A dor no nariz o ajudou a se recompor enquanto tornava seus sentidos mais aguçados. O líquido quente e salgado continuava escorrendo por sua boca e queixo, até que molhou seu paletó aberto e sua camisa branca.

Ali atrás, acima da última janela, era possível ver o céu azul.

18:34 p.m.

Olhando uma última vez aquele mundo revirado, aquelas vidas perdidas e aquele caos todo, ele apoiou uma mão na janela aberta, depois a outra e juntou o que lhe sobrara de força para subir. Um cheiro pungente e um leve calor dominavam o ar.

Apesar do cheiro ainda pungente, foi um alívio respirar o ar do lado de fora.

Eduardo se esforçou ao máximo para escorregar até o pneu e descer. Por mais incrível que parecesse, ele conseguiu cair em pé (não sem antes perder levemente o equilíbrio).

E então, outro som. Crescente.

O motor de algo.

Um carro.

A terrível sensação em seu peito voltou uma última vez, sinuosa, mais para um alerta.

– Cuidado! – alguém gritou.

O som do motor ficou alto de repente. Ele virou o rosto.

Tudo o que viu foi um borrão amarelo, antes de sentir uma pressão insuportável no abdômen.

Logo depois, a sensação, a pressão, a dor no corpo, os pensamentos e todas as coisas ruins que lhe aconteceram até ali desapareceram.

Toda a sua vida passou diante de seus olhos, como um filme. Cada momento, cada sorriso, cada palavra, abraço, aperto de mão, pulo, corrida, contato visual, absolutamente tudo.

Parecia que não iria terminar nunca, mas ao mesmo tempo era como se tudo passasse em milésimos de segundo.

Na última lembrança, por algum motivo foi o rosto sorridente de Amanda que tomou conta de sua mente, e tudo pareceu ficar claro e calmo.

Naquele último instante, enquanto o rosto de Amanda iluminava sua vida, ele se sentiu completamente realizado. Em tudo.

Em seguida, tudo à sua volta escureceu.

Para sempre.