The Mistake Of Chris

Mathematical Incident and blood stain on picnic


Na terça, estou na biblioteca com Callie. Ela está decidida a estudar apenas matemática, e ignorou minhas recusas. Fico foleando o livro enquanto ela se dedica avidamente a uma única conta. Nem mesmo tento.

Callie já está na terceira tentativa, se não me engano. Disse que não precisava de ajuda depois que perguntei logo após seu primeiro fracasso. Ela xinga baixinho e solta ruídos de frustração enquanto amassa a folha de papel e arremessa do outro lado da sala, e eu só a observo. No momento, se mantem concentrada nos exercícios, com os lábios um tanto franzidos e ajeitando a cada segundo uma meça de cabelo inexistente para atrás da orelha. Suas unhas estão pintadas de preto e contrastam com a pele clara do rosto, que está apoiado sobre uma das mãos.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Sem que ela perceba, deixo o livro de lado e pego discretamente um caderno, abrindo numa página em branco. Encaixo um lápis entre os dedos. Faço meio que desajeitadamente a curva do seu pescoço, e me pergunto o que ela acharia se soubesse que estou a desenhando sem que ela tenha ciência disso. Traço o ângulo do queixo, e uma parte de mim espera que Callie levante o olhar e me censure por isso. Ela apenas franze a testa possivelmente por não estar se dando bem com o cálculo.

Me concentro no desenho. Na curva dos dedos e na delicadeza dos cílios e em como a boca dela fica linda quando está imersa em algo. Estou detalhando o cabelo loiro que cai num rabo de cavalo quando levanto o olhar para ela. Callie está me encarando atentamente.

— O que está fazendo? — pergunta, piscando diversas vezes, como se tivesse acordado de um transe.

— Nada. — respondo, ao mesmo tempo que fecho o caderno e solto o lápis na mesa de madeira. Consigo ver em sua expressão que ainda quer saber, mas não vai nem ao menos perguntar novamente, porque minha resposta deixou claro que não pretendo relevar, seja lá o que for.

Ela espalma ambas as mãos em cima do livro, e o arranha, frustrada. Quando relaxa os dedos novamente, sua cara não é das melhores.

— Não vai nem ao menos tentar?

— Não.

— Chris, você está sendo acomodado e isso me irrita. De verdade. Em todos os sentidos possíveis. Mas não vou te dar lição de moral agora porque realmente quero terminar a maldita equação.

— Ok. — Abro o caderno novamente assim que ela recomeça a conta. Não me importo de ser acomodado nesse sentido, estou bem aqui sem me matar por um único exercício de matemática.

Callie parece verdadeiramente estressada por isso, como se isso definisse algo importante sobre si mesma. Comento isso quando ela joga o caderno no chão e solta soluços de pura frustração. Está à beira do choro, com as mãos tampando o rosto e debruçada sobre a mesa. Tento saber o que ela está sentindo no momento, porque simplesmente não me parece um motivo suficiente para chorar.

Não quero desenhá-la chorando.

Quero que levante o rosto e volte com aquele olhar concentrado e os lábios levemente contraídos.

— Você não entende, Chris.

— Tente me explicar.

— Não dá. — Me debruço na mesa junto com ela, a cabeça apoiada sobre o caderno com um desenho inacabado. Estico o braço e toco sua pele com a ponta dos dedos, o suficiente para que ela note e embole seus dedos nos meus. Não me olha nos olhos e nem faz menção de levantar o rosto para me encarar.

— Callie, por favor. — Me sinto um pouco idiota implorando para que ela saia desse estado horrível de tristeza e tudo mais, mas simplesmente não sei o que fazer além disso. Quero que ela olhe em meus olhos e me diga que está tudo bem e me abrace apertado e até me leve para a maldita aula de ioga se isso significa que não vai mais ficar triste.

— Estou com medo. Porque se não tenho nem capacidade de resolver isso, como vou melhorar disso tudo e voltar pra casa?

— Você sabe que não é bem assim.

— Então como é? — Sua voz está abafada pelo fato de que o rosto está escondido entre os braços. Sei que está chorando. Não sei responder a sua pergunta e agora estou ficando frustrado comigo mesmo porque quero ajuda-la e não consigo.

— Cacete, Callie. Tá, eu acho que antes disso aqui, alguém te machucou. Tenho certeza disso e odeio esse alguém de uma forma insana só por conta disso. Acho que você ainda está machucada, e eu sinto muito mesmo. Sinto muito que seja assim. Então a droga do exercício de matemática é só uma mini decepção a mais e você já tá puta com isso tudo. — Paro um segundo de falar e foco somente nela, porque ainda quero que me olhe nos olhos. — Droga, não deveria ter usado a palavra puta. Não foi nesse sentido, você sabe.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Acho que ela sorri com isso porque quando finalmente ergue a cabeça está com o canto dos lábios levemente erguidos. Os cílios estão molhados e o rímel mancha seu rosto quando ela pisca. Ainda assim, olha para mim, e isso é o que realmente importa.

— Sabe que eu faria qualquer coisa só pra não te ver assim, não é?

Ela aperta meus dedos contra os seus antes de responder:

— Eu sei sim, Chris. E obrigada por isso.

***

Dois dias depois do Incidente Matemático, Callie nem parece a mesma. No café da manhã, ela está animada e não para de sorrir, mas se recusa a revelar o porquê. Jeff já revirou os olhos pra ela uma dúzia de vezes por isso, mas continua perguntando o que é a cada minuto.

Aparentemente eu sou o único que tem medo do Mike, já que ele está sentado na mesma mesa que todos nós nesse momento. Talvez eu seja o mais sensato daqui. Na terapia de ontem, ele foi basicamente o assunto principal. A Dra. Lee decidiu que seria bom que ele socializasse mais, e infelizmente, Emma fez a boa garota e disse que ele poderia sentar com a gente no refeitório.

— É uma péssima ideia. — rebati, na mesma hora.

— É uma ótima ideia. — disse a doutora, me lançando um olhar severo.

— Pelo menos eu não seria o único assassino da mesa. —Jeff dá de ombros como se tivesse dito algo natural. Ele passou a não falar muito nas sessões desde o seu showzinho, como declarou a Dra. Lee. Acho que ele entendeu que por ela, ele apodreceria num dos quartos da solitária.

— Agressor. — corrige Mike. É, como se um agressor não fosse nem um pouquinho ameaçador.

Não sei quando nos tornamos esse grupinho de “amigos” loucos onde todos têm tendências agressivas ou suicidas.

Amanhã é o aniversário de Emma e ela não parece nem um pouco animada, sinceramente. Está num estado em que mais brinca com o que está no prato do que come, e não é somente no café da manhã. Ela está despedaçando o muffin em pedaços cada vez menores e os espalhando pelo prato ao meu lado. Jeff parece estar interessado nos detalhes do fato de que Mike arrancou as mãos de um cara com uma enxada e Callie presta atenção a eles.

É inútil tentar fazê-la comer, então nem tento. Cansei de ver Callie implorar para que Emma dê uma mordida e não cuspa.

Aparentemente, Mike arrancou as mãos do cunhado porque esse estava tentando estuprar sua irmã. Bem, é um bom motivo.

— Quer dizer, teoricamente um cara ainda pode estuprar alguém sem as mãos, não é? — Jeff pergunta, como se estivessem discutindo algo totalmente normal.

— O plano era castrá-lo também, mas não lembro o que aconteceu depois de arrancar as mãos.

Emma dá um sorriso discreto enquanto Jeff gargalha alto. É minimamente engraçado, tenho que admitir.

— Pretende cabular a jardinagem hoje novamente, bonitinho? — Callie pergunta a mim, depois de uma pausa entre a revelação das intenções psicóticas de Mike com o cunhado.

— Não quero ir. ­— respondo simplesmente. Só não estou com a mínima vontade de ir, e não acho que isso seja uma coisa a ser discutida na terapia nem nada. Quero só passar esse dia meio nublado meio alguma coisa que não parece um dia bom no meu quarto. Seria mentira se eu dissesse que não vou ficar pensando na Hannah.

— Perdi o momento em que alguém me contou que eles estão juntos? — O que Mike fala é mais do que inconveniente, devo acrescentar. Callie abaixa os olhos para seu prato, e eu apenas o encaro meio sem reação.

— Na real, nenhum dos dois assume, mas aposto um dos meus vinhos que aí tem coisa.

— Não tem nada, Jeff. — interrompo os risinhos dos dois severamente e Callie me olha. Não consigo entender o significado do olhar que me lança, por mais que eu tente. Por fim, ela abaixa a cabeça novamente e se levanta para levar a bandeja.

Me pergunto se fiz algo de errado e não consigo achar o tal erro. Emma me olha como se eu fosse o maior idiota do mundo. Talvez eu seja, na verdade.

***

No sábado, o sol retorna. E isso não é exatamente ruim. É o aniversário de Emma, e Callie convenceu a Dra. Lee e a própria psicóloga que a fazer um piquenique para comemorar.

— A Lena disse que era uma ótima ideia. — Já perguntei a Callie porque ela usa o primeiro nome para se referir a doutora, e ela diz que Lena insiste porque quer que se torne realmente próxima dos próprios pacientes.

Então, as duas levaram os membros da horrorosa terapia em grupo para um doce piquenique no gramado, com direito a toalhas quadriculadas estendidas pela grama. Estou prestando atenção as pessoas nesse momento e notando pacientes que eu mal lembrava da existência.

Somos um grupo estranho.

Por exemplo, Roger, que é negro, alto e forte, e certamente um bom candidato para servir ao exército dado a sua capacidade física e todo o medo que coloca em mim com uma simples encarada no corredor, está vestido totalmente de moletom cinza e com o capuz da blusa sobre a cabeça, ocultando parte do rosto. Nunca nem ouvi sua voz. Beatrice, que por acaso fica no quarto ao lado do meu e eu nem tinha me dado conta disso até hoje, quando Callie nos apresentou, está com um vestido branco longo e rendado, e uma coroa de flores na cabeça, também seguindo a linha do branco. E descalça. Parece alguma hippie, com o contraste da pele morena e do batom laranja.

Mike parece meio atormentado com a grama, o que é surpreendente já que a poucos dias ele estava com a cara na grama. No momento, está ocupado demais arrancando as folhas uma de cada vez do chão. Jeff o observa com curiosidade. A namorada vem visitá-lo hoje, então ele não é a pior pessoa no momento.

E a gloriosa aniversariante não parece tão gloriosa assim. E nem minimante feliz.

A pulseira prata que ganhou de Callie reluz ao brilho do sol e ela a gira impacientemente. Callie está tentando de verdade, e por mais que pareça algo bom, não deixo de pensar que ela não deveria se esforçar tanto para agradar aos outros sempre.

Encaro o céu por um momento logo após a lembrança de um piquenique com Hannah invadir minha mente. Pisco os olhos repetidas vezes e olho para o espaço vazio ao lado de Mike, onde supostamente ficaria um outro cara que eu não lembro o nome, e quase consigo ver uma Hannah de 11 anos sentada, com uma blusa roxa ainda sobre o ombro direito e o expondo, mesmo que algumas mechas do cabelo castanho claro ajudem a oculta-lo. Lembro da maneira como colocava o cabelo atrás da orelha várias vezes, incomodada com o calor, e como se recusava a deixar que seu cachorro, Bob, ficasse deitado sobre suas pernas pelo mesmo motivo.

Os pais de Hannah haviam levado eu e Steve junto para um piquenique pelo motivo de que não conseguiam sair e espalhar mais de seis pratos de coisas diferentes sobre uma toalha vermelha sabendo que os garotos da casa vizinha não tinham almoço. Não tínhamos nem notícias dos nossos pais desde a noite anterior quando ambos saíram de carro discutindo. Não foi nesse dia em que o carro escapou pela barreira de proteção da estrada e saiu em voo livre pelo abismo. Eles voltaram horas mais tarde, mas até então, a família Banks já tinha nos levado para um passeio com direito a uma troca de olhares estranhos entre os pais de Hannah que falavam e discutiam silenciosamente sobre o descaso total de nossos pais.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Nós passamos a tarde no parque e Hannah ignorou quando sua irmã declarou que ela já era velha demais para brincar num balanço. E não só ignorou, como fez com que eu a empurrasse. Steve ria do fato de eu me cansar tão rápido de te empurrar e assumiu meu lugar quando ela pedia para ir mais alto.

Talvez ela tivesse o dom de melhorar a vida dos irmãos Campbell. Pelo menos um pouquinho.

Quero ouvir sua voz novamente me dizendo para esquecer por um momento todas as circunstâncias atuais e simplesmente fingir que temos cincos anos de novo, quando eu era só o garotinho que queria desesperadamente só vestir camisetas azuis e ter a casa amarela. Quero ouvir sua voz novamente e o som da sua risada enquanto corro atrás dela pela grama enquanto o sol vai se ponto e o céu se torna laranja aos poucos. Quero lembrar de Steve arrastando Phoebe para brincar também, e dos dois correndo como a gente, mesmo que a irmã de Hannah ainda falasse entre gargalhadas que era pura criancice. Quero lembrar de como é ir dormir sorrindo feito bobo sem que nada pudesse estragar isso.

Tenho que parar de pensar nisso no momento em que minha mente só gira em torno do fato de por qual motivo alguém levou uma faca realmente perigosa para um piquenique, e quem a deixou jogada sobre a toalha quadriculada, que agora está se enchendo de sangue.

Olho para os quadradinhos azulados sendo manchados de vermelho e simplesmente não consigo desviar o olhar antes de minhas mãos comecem a tremer e o ar comece a faltar. Minha mente bloqueia todos os sons externos e me paralisa no lugar, mas escuto Callie gritando ao fundo em desespero.

Desvio o olhar do sangue para ver um Mike tão paralisado quando eu. Sigo seu olhar até encontrar os pulsos ensanguentados de Emma e a faca caída inerte ao seu lado. A pulseira prata se perde em meio ao vermelho escarlate que sai da ferida. Lena afasta Callie bruscamente de perto da garota que está com a cabeça no colo da Dra. Lee. Callie cai no chão de joelhos e não se move mais. Suas mãos estão sujas do sangue da amiga.

Minha mente gira e borra minha visão, e quase dou graças a Deus por isso. Só consigo escutar os soluços desesperados de Callie enquanto alguém me arrasta pelo braço para dentro do hospital novamente.

A mancha na toalha está maior e não para de aumentar.