Dezenove

Dezenove


Começou e terminou numa terça-feira chuvosa. Aliás, é incrível como as terças-feiras têm essa característica deprimente. Acordei com a mesma cara de sono após passar a madrugada em claro, procurando por inspiração. Já era tempo de entregar meu próximo projeto, a editora não ficaria nada feliz com o atraso. Suspirei, peguei minhas coisas e saí. Não era paciente para fazer meu próprio café da manhã durante os dias da semana. Andei dois quarteirões até a cafeteria, do mesmo modo que fazia em todas as terças-feiras chuvosas. Pergunto-me agora se eu teria feito diferente se soubesse o que me aguardava. Se teria me arrumado melhor, ido mais cedo, ou ficado até mais tarde. Simplesmente não sei.

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Fiquei desapontada quando encontrei o lugar cheio. Talvez fosse por conta da chuva: as pessoas pareciam feitas de açúcar. Puxei uma senha e me espremi no aglomerado de clientes, na tentativa de conseguir enxergar o que o padeiro havia assado até aquele momento. O atendente chamou o número dezoito. Eu era o trinta e dois. Suspirei, desanimada. Tudo isso por um cappuccino. O número dezoito se afastou do balcão, praticamente me empurrando junto. Olhei para minha bolsa, conferindo se tudo estava intacto. Então vi aqueles dedos.

De nada tinham demais, não fosse o fato de estarem repletos de manchas de gravite. Seguravam o lápis como meus próprios dedos seguravam a caneta naquele momento: preparados para qualquer pontada de inspiração que viesse à mente, independentemente das circunstâncias. Subi o olhar, deparando-me com um rosto confuso. O garoto, pouco mais velho que eu mesma, encarava o caderno de desenho com decepção. Terças-feiras chuvosas não pareciam ser produtivas para artistas. Ele tinha o número dezenove em mãos, e estava tão distraído que sequer notara que o chamavam.

— Ei, — pigarreei, e seus olhos me encararam — acho que é você.

O garoto franziu o cenho e levou um tempo para entender do que se tratava. Fez, então, seu pedido: um café preto grande e um brioche recheado. Tirou outro papel do bolso e o entregou a mim. Era a senha vinte.

— Sempre pego duas, por precaução. — sorriu. — Obrigado.

— Obrigada você. — respondi, mas ele não estava mais lá.

Peguei meu cappuccino com canela. O atendente sequer perguntou o que eu queria: minha presença era tão frequente lá que era só me aproximar do balcão para que me servissem o de sempre. Agradeci e deixei o dinheiro sobre o balcão, procurando pelo garoto dos dedos borrados. Ele havia reduzido minha espera em doze números, era quase um anjo. Passei apressadamente pela porta, na esperança de encontrar algum sinal dele na rua.

— Já vai embora, número vinte? — ele me chamou, sentado a uma das mesas ao lado de fora da cafeteria.

— Hm... Não... Ainda não, dezenove. — o garoto indicou para que me sentasse à sua frente. Tinha o caderno aberto em uma folha em branco e a fitava fixamente, como se esperasse que o desenho surgisse diante de seus olhos. — Então, você tem um nome?

— Todos temos. — ele arqueou uma das sobrancelhas, sorrindo com minha decepção ao ouvir sua resposta. — Você escreve?

— Eu tento. — suspirei, derrotada.

— Resposta errada. — bebericou um pouco do café, divertindo-se com o jogo.

— Quê?

— Você respondeu errado. — passou as mãos pelos cabelos, fechando o caderno. — Quando me perguntou se tenho um nome, eu respondi o imprevisível. Quando perguntei se você escreve, deveria ter feito algo imprevisível também. Vamos tentar de novo. Você escreve?

Parei para pensar por uns segundos.

— Eu e qualquer criança da primeira série. Você não?

— Ótimo, está aprendendo rápido. — recostou-se melhor à cadeira, cruzando os braços no peito. — Posso ver o que escreve?

— Só se eu puder ver o que desenha. — foi a minha vez de sorrir. Nenhum artista gostava de expor seus trabalhos inacabados, e não seria diferente com ele. — Nunca vi você por aqui.

— É a primeira vez que venho. — ele ofereceu o brioche e eu o recusei.

— Não como doces pela manhã.

— Por isso é amarga assim? — sorriu. Sorria muito, por sinal, ainda mais por ser uma terça-feira chuvosa. — Você deveria tentar conhecer lugares novos e pessoas novas. A inspiração não vem de sentimentos antigos.

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— Por isso você é um largado? — sorri de volta. — Não vai mesmo me falar seu nome?

— Não. — deu de ombros. — Você não perguntou. Afinal, qual é o seu nome?

— Por que quer saber?

— Você pergunta tanto do meu que fiquei curioso para saber o seu, oras. — bebeu mais um pouco do café.

— É Ana. — sorri. — E o seu?

— Ah, não vale repetir perguntas. Assim a conversa não flui. — sorriu mais uma vez. — E então, Ana, quantos anos você tem?

— Alguns. — tomei um bom gole do cappuccino. — Talvez alguns a menos que você.

— Você não sabe quantos tenho para afirmar isso.

— Nem você sabe sobre mim para negar. — dei de ombros. — E então, o que você desenha?

— Coisas que acho bonitas. — brincou com o lápis em sua mão, revirando-o em seus dedos como uma baqueta de percussão. — Coisas que vejo por minhas andanças como nômade cultural.

— Você deve ser muito louco para achar algo bonito em uma terça-feira chuvosa, número dezenove.

— É assim que me definiria? Louco? — o garoto perguntou, aproximando-se mais de mim e apoiando seus cotovelos sobre a mesinha.

— Ninguém é cem por cento louco. Você é só mais que o restante da população. — sorri. — Eu diria noventa e oito por cento.

— E os outros dois? — parecia curioso.

— Genialidade.

— Genialidade? — franziu o cenho. — E a criatividade, está onde?

— É necessário ser genial para ser criativo. Criatividade sem genialidade é um plágio bem feito.

Ele parou por um momento, refletindo sobre aquilo. Aparentemente, não estava tão preparado para meus devaneios. Sorriu, suspirou e bebeu mais um pouco do café.

— Você me pegou. — passou os dedos pelo cabelo. — Meu nome é Thomas.

— É um nome bonito, Thomas.

— Entende porque não queria chegar nisso aqui? — arqueou uma sobrancelha. — Agora a conversa ficará extremamente normal.

Olhei para o relógio. Dez e quarenta. Havíamos passado quase uma hora nessa brincadeira, e eu estava atrasada. Encarei seus olhos profundamente, lamentando por ter de deixá-lo ali. Não por ele, mas por mim mesma. Eu não queria sair.

— Não ficará normal. — levantei-me, jogando o copo descartável no lixo. — Na verdade, eu tenho que ir.

— Vou com você. — ele sorriu, levantando-se também.

— Não vai terminar de comer?

— Ah, uma garota aí me disse que não é legal comer doces pela manhã.

Revirei os olhos e coloquei o capuz da blusa. Thomas abriu um guarda-chuva e me puxou para seu lado, pedindo-me que nos guiasse pelo caminho. Ele mantinha o sorriso, e seus olhos pareciam querer me perguntar muitas coisas, mas uma força maior parecia mantê-lo assim.

— Eu poderia jurar que você sairia correndo na chuva. — brinquei. — Aparentemente, sua porcentagem de genialidade é um pouco maior do que eu pensava.

— Há muita genialidade na loucura.

Andamos os dois quarteirões praticamente em silêncio. Eu atrasava o passo, tentando enganar a mim mesma, repetindo mentalmente que eu ainda poderia passar mais um tempo com ele. Quando chegamos à porta de minha casa, pensei em continuar e fingir que morava muito mais além, todavia sentiria uma imensa culpa se enganasse o garoto que ainda era um completo estranho para mim.

— Bom... — sorri. — Chegamos. Quer entrar e tomar um café?

— Acho que você tem coisas mais importantes para fazer, número vinte. — Thomas brincou. — Podemos combinar de sair algum dia pelo Facebook.

— Ahn... Eu não tenho redes sociais. — dei risada de sua incredulidade. — Nada de Facebook, Twitter, nem sequer celular.

— Como você se conecta com as pessoas? — ele me fitou por um instante. Aproximei-me dele e selei meus lábios com os seus por um breve momento.

— Assim. — sorri.

— Por que fez isso? — franziu o cenho mais uma vez. Era a terceira em uma hora.

— Porque você não ia fazer, oras. — brinquei.

— Eu estava me guardando para minha futura esposa, isso não é óbvio? ­— ele dramatizou.

— Vamos nos casar, então! — propus, dando risada. Thomas arrancara muitas delas nesse pouco tempo.

— Alguém está de muito bom humor para uma terça-feira chuvosa. — o garoto das mãos borradas copiou minha frase, e beijou-me em seguida, o que levou menos tempo do que eu, de fato, gostaria. — Tome, — ele arrancou uma das folhas do caderno e a dobrou, sem me deixar ver o conteúdo — sempre que precisar de inspiração, abra-o, minha noiva.

— Com certeza, meu noivo. — sorri, e subi as escadas. — Até logo, número dezenove.

— Até, número vinte. — e sumiu em meio à multidão de pessoas que andava pelas ruas.

Sentei-me sobre a escrivaninha e pus-me a escrever, não parando até o término dos capítulos. Deixaria a revisão para o dia seguinte, mas finalmente havia acabado a história que por tanto tempo protelei para escrever. Quatrocentas páginas de pura inspiração. Voltei às primeiras, relendo minha dedicatória. Dedicava a obra aos meus amigos que não via há semanas, e isso me pareceu completamente injusto. Apaguei tudo.

Dedico esse livro única e exclusivamente ao meu noivo:
Alguns anos de idade, noventa e oito por cento loucura, dois por cento genialidade.
Cem por cento inspiração.

De fato, eu nunca mais vi o Thomas. E o papel? Bom, era apenas uma folha em branco. Eu era capaz de ouvi-lo dizer que a criatividade surge de nós, e não daquilo que vemos. Mas dezenove passou a ser meu número favorito desde então.