Onde vivem os monstros

As tuas notas


“Esquisita”, ela ouviu. Fisgou no ar por acaso ao caminhar pela calçada do parque. Conhecia as vozes, e se aproximou para escutar mais. Atravessou por entre os arbustos com cuidado para não se arranhar e andou até se esconder atrás da primeira árvore. “Por quê?”, a outra menina perguntou. “Ah, sei lá. Não gosta de brincar de verdade. Parece que vive no mundo da lua.” Falavam de alguém. “Outro dia correu atrás de um besouro porque achou bonitinho.” “Ai, que nojo.” O que tinha de errado? Ele voava e era tão lindo. Quis ir até elas, mas Lavanda segurou sua mão. Disse que era melhor não. Lavanda era da altura da árvore, da largura do armário da cozinha e o pelo tinha cheiro de rosa igual às do jardim. Lavanda parecia nome de menina, mas não era. Em alguns dias, aparecia marrom claro, em outros, branquinho, sempre fofo e bom de abraçar. Quando ele não estava, alguém brigava com ela. Era desastrada, curiosa, bagunceira, falava demais. Ninguém queria ficar perto dela, com Lavanda ou sem Lavanda. Pensava bastante nele para fazê-lo aparecer sempre.

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De noite, com a luz apagada, ele contava sobre de onde veio, ajeitava seu cobertor e fazia cafuné até ela dormir. A cidade de Lavanda não tinha gente, só mais como ele. Lá, ninguém precisava de escola. Ela achou que devia ser tranquilo, mas meio chato. Sem escola? Lavanda gostava. Se ele achava bom, então era bom. Lá, ele falava, o sol não batia forte, era igual a fim de tarde, e as estrelas brilhavam mais. Lavanda apontava os vaga-lumes no quintal quando ela perdia o sono e saía de fininho pela porta da despensa. Dava fome à noite, mas ele não podia pegar o chocolate na prateleira alta. Tudo bem. Lavanda também não jogava videogame, não vestia as bonecas com ela, não desenhava. Não tinha problema.

Era melhor não falar sobre Lavanda para mais ninguém. Falou uma vez e a vizinha do lado nunca mais visitou sua casa. Falou outra na hora do almoço e toda semana perdia o desenho de sexta-feira na televisão porque tinha que ir conversar com a moça do escritório colorido. Um dia, chorando de castigo, ganhou um abraço dele e ele pediu para ser um segredo. Ela não queria ver Lavanda sozinha. Ele era legal, por que todo mundo não gostava? Ele disse que nem todo mundo achava a mesma coisa. As pessoas eram diferentes. Talvez um dia até ela não gostasse mais dele, não quisesse mais vê-lo. Nunca. Nunca! Lavanda era para sempre.

Quando passou o batom rosa para ir ver o menino bonito da outra turma, Lavanda apareceu no espelho e disse que ela estava linda. Sorriu, e ele disse que o sorriso era mais bonito que a maquiagem. Perguntou da roupa, ele sugeriu levar um casaco. Era tempo de vaga-lumes e podia chover quando ela estivesse voltando. O menino emprestaria o dele, não precisava. A mão de Lavanda em seu ombro. Estava esperta também.

Não sabia onde tinha colocado o caderno. Revirava preocupada o quarto, olhou embaixo da cama e Lavanda estava lá, com o mesmo cheiro de rosa. Ele pulou de lá e lhe deu o melhor abraço apertado que conhecia. Que saudade. A cabeça doía de um lado, andava estudando demais. Quando ele se sentou na cama, percebeu algo embaixo do lençol. Era o caderno com a matéria da próxima prova. Ela deu um grito de felicidade e a fresta da porta se abriu, dizendo para falar baixo que estava tarde. Pôs a mão na boca, conteve o riso, olhou para Lavanda que também prendia o riso e não conseguiu segurar mais, mas riu baixo, ou brigariam de novo. Já deitada, ouvindo o barulho bom do ventilador, Lavanda se sentava ao lado de sua cama. Ela perguntou por onde ele andava esse tempo todo, brincando de indignada, mas sabia que era ela que não o procurava. Sempre que precisar, ele disse, e fez reverência de lorde. Apertando sua mão, dormiu menos nervosa.

Girou a maçaneta do apartamento alugado, entrou e se fechou naquele mundo de poeira e caixas. Era difícil não ter carro naquela cidade. Atravessou a sala apertada até o quase nada de varanda e viu as luzes dos prédios no horizonte. Por que a beleza cinzenta era bonita? Uma pergunta boa, daquelas de ir dormir tentando responder. Anotaria os rabiscos no bloco de cabeceira… Onde ele estava? Mesmo que estivesse sozinha, foi para o quarto tirar a roupa do trabalho. No caixote ao lado do colchão, Lavanda a esperava. Não o tinha perdido como o bloco porque ele mesmo encontrou seu lugar ali organizando a mudança. Ele perguntou de seu dia, do rapaz da cidade antiga, da bagunça na casa, do trabalho novo, do restaurante. Aconselhou que seria bom conversar com mais alguém, daquele jeito cuidadoso que ele tinha. Ela procurou o celular no bolso do blazer no chão, ficou encarando a tela e deixou para depois. Só queria dormir e um abraço. Lavanda fazia falta. Fechou os olhos e sonhou sentindo o cheiro de rosa, como se os braços dele ainda dessem quase duas voltas nela.

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