Nothing Left to Lose (HIATUS)

O reencontro inevitável


Eu queria poder dizer que dormi bem e que não pensei no passado. E pela primeira vez em dois anos, eu posso sim dizer isso. Tive uma noite tranquila, digamos. Sábado é um dia sagrado pra mim, porque é o único dia da semana que eu dedico somente a mim, e faço coisas que realmente gosto.

Me arrumei. Blusa preta transparente, um pouco caída nos ombros. Jeans preto e bota de cano baixo. Delineador e máscara de cílios. Penteio o cabelo e estou pronta. Pego o metrô até o parque da cidade. Um parque bem típico, com muitas árvores e criancinhas, casais felizes e apaixonados, famílias fazendo piqueniques. Mas não é nada disso que me atrai até ali. Eu tenho um cantinho, quase no fim do terreno do parque. Um lugar só meu. Nunca encontrei nada nem ninguém lá além de alguns animais inofensivos. É bem simples. Provavelmente aquele local funcionara antigamente, mas já não era visitado há tempos quando o encontrei. Atrás de umas rochas, que conseguem me encobrir, há um balanço velho, meio caído, enferrujado. Gramado gasto, alguns arbustos secos. É ali que eu fico nos sábados.

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Chego, estendo minha toalha de mesa no chão, sento-me e encosto nas pedras. Livro em mãos, inicio minha leitura. Sempre que estou aqui, me sinto em paz. O silêncio acaba por facilitar alguns pensamentos indesejados, mas não me importo. Ao menos estou sozinha.

Flashback on

Estava definitivamente encrencada. Despertei ainda um pouco tonta. Mais uma vez num quarto de hospital. Detesto hospitais com todas as minhas forças. Meu antebraço está dolorido. Fios saem de minhas veias, e eu agradeço por estar sozinha ali. Lembro-me do motivo pra estar aqui. Mais uma vez fiz besteira. Desço os olhos até meu pulso, que está enfaixado. Quando chegar em casa vou jogar aquele canivete fora. Mas não antes de brigar com minha mãe por mais uma vez ter deixado a tristeza e a decepção amorosa me levarem a isso.

Flashback off

Aqui o tempo passa rápido. Em minha bolsa, tudo o que preciso. Lanches, bebidas, livros, fones de ouvido, papel, lápis. E doce, muito doce. Acho que vou desenhar um pouco.

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Dois anos atrás...

–Você não é o bastante pra mim, Charlie. – ele dizia, enquanto a moça chorava, o rosto borrado pela maquiagem e as lágrimas. Ela tremia, e estaria no chão se ele não a estivesse segurando pelos braços. – Você nunca foi boa o bastante.

As palavras a afetavam como bofetadas. Ele finalmente a soltou, e ela caiu, com os braços marcados pelos dedos do rapaz.

–Por favor... – ela pedia.

–Pare com isso! Aceite logo que foi só diversão! – agora ele gritava, irado. – Você é realmente uma coitada. – assim ela desmoronou, soluçando. Gritou, alto o bastante para que os vizinhos ouvissem. Ela gritava para não desabar de vez. –Você me dá pena. Quando penso que desperdicei meu tempo contigo. Mas nosso tempo juntos já foi o suficiente.

–Não estraga tudo assim, eu te amo... – ela tentava falar, mas sussurrava, de joelhos no chão.

–Quando eu voltar, não te quero mais aqui. – e então ele saiu, batendo a porta, deixando a moça arrasada. Já deitada no chão, ela ainda gritava.

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Dois anos e dois meses atrás...

A garota acordou, já com um sorriso estampado nos lábios. Estava em uma cama, ao lado de um belo rapaz, que dormia profundamente. Roupas espalhavam-se pelo chão do quarto. Cortinas cobriam as janelas, mas já era manhã. Lençóis cobriam o casal. Ela virou-se para o lado e passou os dedos pelas costas dele, que ainda ressonava tranquilamente.

Ele então acorda e olha pra ela. Não em seus olhos, mas pra ela toda. Sorri com os olhos, e a beija. Não são necessários cumprimentos, nem um bom dia sequer.

–Eu te amo. – ela dizia.

Ele, ao invés de responder, a beijava de novo. E de novo.

–Que tal se nós fôssemos tomar café naquela confeitaria da esquina? – ela perguntou, sorridente.

–Acho melhor não. – ele disse simplesmente.

–Tudo bem. Vou preparar café pra gente então... – e saiu, um pouco triste mas ainda assim cheia de paixão.

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Dois anos e três meses atrás...

A moça andava no parque, sozinha. Observava as crianças nos brinquedos e também pessoas da sua idade, quase todas formando belos casais. Então um rapaz, que estava com uma morena baixinha, virou-se em sua direção. “Como é lindo.”, ela pensava. E realmente era. Pose de bad boy, cabelos pretos, sorriso tentador. Ele sorriu pra ela, mas segurava a mão de sua acompanhante. A morena foi comprar algo pra comer, e assim que se distanciou, o rapaz andou até onde Charlie, a moça solitária, estava. Disse quando estava perto suficiente:

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–O que uma garota tão linda como você faz aqui, sozinha? – e passou a mão nos cabelos dela. Como resposta, ela esboçou um sorriso tímido.

–Nick! – uma voz feminina, meio abafada, gritou ao longe, e o rapaz olhou naquela direção.

–Tenho que ir. – antes de sair, escreveu apressado um número de telefone na mão de Charlie. Mal sabia ela em que estava se metendo, e que desde esse dia não seria mais a mesma.

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Domingo não é um dia muito proveitoso pra mim. Sempre fico em casa, pinto alguns de meus desenhos e como fast food. Muito entediante, eu sei. Como não queria repetir minha realidade por mais um dia, resolvi ir até o escritório e procurar o endereço de Júlio.

Andei devagar até meu local de trabalho e quando cheguei entrei com minhas chaves. A porta da sala dele fica trancada, mas não vai ser um problema. Eu sempre soube da cópia guardada atrás da planta fajuta que servia de decoração. Peguei a chave e entrei na sala do meu patrão. Bem pequena e simples. E claro, bagunçada. Pastas jogadas, arquivos espalhados em cima da mesa, copos de café pelos cantos.

Comecei a procurar algo que servisse. Não deve ser muito difícil encontrar um endereço. Abro as gavetas, algumas meio emperradas. Em uma delas encontro algumas contas de luz, água, telefone, etc. Pego uma delas e encontro o que precisava. Anoto num pedaço de papel e guardo a conta novamente. Agora, é só ligar pra Chas.

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Ele agradeceu e disse que iria até o tal endereço quando tivesse certeza de que sei pai não estaria lá.

–Mas você quer fazer o que dentro da casa dele? – eu perguntei, ainda pelo telefone.

–Ele insiste em dizer que não existe um testamento. Mas é claro que está mentindo. Vou até lá procurar alguma coisa útil pra mim. – ele respondeu.

–Também vou. – disse rapidamente. Queria ter algo pra fazer e saber onde meu chefe mora.

–Não. Você foi legal me ajudando, mas eu vou sozinho.

–Então eu vou te dedurar pra ele, e se existir realmente algum testamento, ele vai dar um jeito de esconder antes que você o encontre. – ameacei.

–Você não faria isso, Charlie. – ele duvidou.

–Faria sim. – e faria mesmo.

–Ok, quando eu for te aviso.

–Vamos agora. Ele não está em casa. – Júlio sempre passeava aos domingos. Cidades vizinhas, amigos bêbados.

–Como pode saber?

–Não te interessa. Olha, eu tenho certeza que ele não está em casa. Vamos?

–Tá bem. Vou te buscar em meia hora. – e desligou.

Me arrumei e enquanto esperava peguei um desenho que comecei no parque para terminar. Era um bosque escuro, com árvores altas e de troncos finos. No meio, um caminho de cascalho, e no chão folhas que caíram das árvores. Acho que desenhar é meu único talento.

Levei um susto quando a porta se abriu.

–Não interfona mais não?! – eu exclamei. Chas está cada dia mais abusado. Ele só revirou os olhos e acabou vendo meu desenho na escrivaninha. Logo fui guardando-o dentro do caderno, mas ele foi mais rápido e pegou a folha.

–Você desenha bem. – ele disse, ainda analisando meu desenho. Tomei da mão dele. Já ia sair quando ele me interrompeu. – Espera aí. Você vai comigo, mas nada de me ameaçar de novo ou atrapalhar, ok?

–Eu nunca atrapalho ninguém, Chas.

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Chegamos na rua certa. Estranhei, porque ali só tinha casas grandes e bonitas. Meu chefe não teria tanto dinheiro para um lugar como esse. Sinceramente, nem sei como ele paga meu salário.

–Isso deve estar errado. Esse lugar é muito bom pra ele, o dinheiro que ele ganha não dá pra pagar nem o andar de baixo de uma dessas casas.

–E quem disse que é o dinheiro dele? – Chas estava com um pouco de raiva, pude notar.

Chas estacionou o carro no fim da rua e seguimos em silêncio até a casa informada na conta que eu vi. Era branca de dois andares. Tinha um pequeno jardim na frente. O portão era de grades e não muito alto.

–Vamos pular. – eu disse, já escalando o portão. Ele veio do meu lado. Em pouco tempo já estávamos do outro lado. Fomos até a porta, que é de madeira entalhada com alguns desenhos.

–Está trancada. – ele falou. É claro que estaria, mas eu de alguma forma sabia que devia haver alguma chave escondida ali fora. É bem típico do Dr. Júlio esconder coisas importantes debaixo do nariz dos outros. Procurei debaixo do tapete, perto de alguns enfeites, mas encontrei a chave junto a uma planta, quase no jardim. Abri a porta. – Como você... Deixa pra lá. – ele falou, sacudindo a cabeça.

A casa, por mais que isso pareça impossível, é arrumada. Os móveis limpos, as almofadas organizadas sob o sofá, um cheiro de lavanda no ar. Ele com certeza tem uma empregada e não passa muito tempo em casa, assim não consegue bagunça-la.

–Bem, você está procurando o testamento, certo? – ele confirmou com a cabeça – então, acho que podemos começar logo, aqui embaixo, e depois subir. Pode estar em qualquer lugar.

Chas não disse nada, apenas começou sua busca. Em alguns minutos, já havíamos vasculhado todo o andar de baixo, somente para perder tempo. Gavetas foram abertas, quadros retirados afim de descobrir possíveis cofres, armários foram escancarados, mas nada.

–Vamos su... – ele parou de falar subitamente, interrompido por uma alta risada feminina. – o armário de limpeza.

Eu entendi seus sussurros e corri pra área de serviço, entrando no armário. Chas entrou também e fechou as portas. Vassouras e rodos cutucavam minhas costas e produtos de limpeza e panos diminuíam ainda mais o pouco espaço.

–Você tem muita sorte por eu não ser claustrofóbica.

–Pode apostar.

Fomos os mais silenciosos, na medida do possível, e consegui ouvir fragmentos da conversa no cômodo ao lado.

–Júlio! Vem logo. – ronronou uma quase sedutora voz. Se não fosse pela fineza extrema e pela imagem que eu já tinha da dona dessa voz – uma garota de programa desesperada em usar seu corpo pra ganhar dinheiro – eu poderia ter achado ela até normal. Mas na verdade ouvi-la só me deu nojo.

A porta da sala, provavelmente, foi fechada e um Júlio bastante animado disse:

–Pode ir subindo querida, já vou. – em seguida fez-se ouvir o barulho de saltos subindo as escadas e uma risada masculina de excitação.

–Meu Deus, não poderia haver pior momento para estarmos aqui.

–Ele poderia estar assassinando alguém na sala nesse exato momento, não reclame tanto. – Chas sussurrou pra mim, que senti, fechei a cara.

Depois de a geladeira ser aberta, uma torneira ligada e passos serem dados em direção ao andar superior, os sons passaram a ser inaudíveis. Eu e Chas nos entreolhamos numa concordância mútua que dizia “hora de ir”. Ambos abrimos as portas do armário, bem devagar, as fechamos e seguimos, a passos quase imperceptíveis, até a porta. Saímos sem nos darmos o trabalho de trancá-la e em instantes estávamos correndo na rua em direção ao carro de Chas.

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–Pensei que você havia dito que ele sai com os amigos aos domingos.

–Queria que eu adivinhasse que ele leva prostitutas pra dentro de casa? – eu o encarei, incrédula.

–Você não pode saber se era uma prostituta.

–Faça-me o favor, você realmente acha que uma mulher em sã consciência e por livre e espontânea vontade dormiria com ele? – Júlio não é o que podemos chamar de bonito. Nem elegante. Nem educado. Ou carinhoso.

–Acho que não. – e então se deu por vencido. Seguimos calados até uma lanchonete no centro da cidade. Uma lanchonete que não me trazia boas recordações, mas não citei isso.

Sentados à mesa e aguardando nossos pedidos, eu de repente me sinto a pessoa mais insignificante da Terra ao ver quem entra pela porta do estabelecimento. Já não bastasse o significado que ronda esse lugar. Eu me encolho o máximo possível na mesa, mas o contato visual é inevitável. Aqueles olhos azuis, tão obscuros quanto as minhas lembranças, sempre iriam me atrair.