Nothing Left to Lose (HIATUS)

Feliz aniversário (ou quase isso)


Estava no meu cubículo que as pessoas insistem em chamar de apartamento, quando meu celular tocou. Não conhecia o número, mas sabia que era Chas. Ele queria mesmo que eu respondesse suas perguntas idiotas, e disse que iria passar em minha casa. Eu dei o endereço, vesti outra roupa, porque apesar de nunca estar bonita e elegante, não saio por aí como uma desleixada qualquer. O interfone tocou e eu disse que ele entrasse. Quando abri a porta, me deparei com o mesmo Chas de hoje mais cedo. Exatamente o mesmo, mesmas roupas, mesmo cabelo, mesma expressão, mesmo sapato.

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–Vamos? – perguntei pra ele, que já estava quase dentro do meu (quarto-cozinha-banheiro) apartamento. Ele estava com uma expressão do tipo “como assim?”. – Pera aí, tava achando que ia ficar aqui e me interrogar? Cara, eu não te conheço, e se você for um maníaco? Quero um espaço público, obrigada.

–Eu definitivamente não sou um maníaco, mas se você quer assim, a gente pode ir pra uma lanchonete, sei lá.

–Por mim tudo bem. Agora sai. – disse, empurrando-o totalmente pra fora.

Descemos as escadas, porque aqui não tem elevador. Depois de três lances, e de quase ter morrido, chegamos à portaria, que por sinal não tem porteiro. Deixei que ele fosse na frente, e ele seguiu até um carro, quer dizer, uma espécie de trailer. Ele destravou seu carro (ou casa, também poderia ser) e eu entrei. Vi que lá atrás tinha uma cama de solteiro, umas roupas amontoadas, uma mini geladeira, um filtro e uma porta, que deveria dar no banheiro.

–Você mora aqui?

–Sim. – respondeu simplesmente. Claro, muito natural isso. Ok, nada contra. Ele pode morar onde quiser mesmo. – Então, pode me dizer onde ele mora?

–Quer que eu responda essas coisas aqui? Acho que isso – fiz um gesto, mostrando toda a sua “casa”- não é um espaço público.

–Olhe, eu só estava tentando iniciar uma conversa. Já estamos indo pro seu espaço público, madame.

–Idiota. – disse eu. Ninguém me chama de madame, que coisa mais sem noção.

Fomos até uma lanchonete com bancos estofados, perto da minha casa. Pedi um café, mas ele não quis nada além de olhar e escrever naquele maldito papel, que provavelmente é meu interrogatório.

–Pode começar isso logo.

–Onde meu... o Dr. Júlio, onde ele mora? – é, ele realmente não gosta da palavra pai.

–Não sei.

–Trabalha com ele há três anos e não sabe onde ele mora?

–É filho dele e também não sabe disso? – joguei na cara dele.

–Eu não mantive contato com ele. Na verdade, só soube que era seu filho um tempo atrás.

–Hum. Eu nunca fui até a casa dele, e não presto atenção naqueles boletos que ele me manda pagar. Eu poderia procurar o endereço, não custa nada, mas tenho umas condições. – ele me olhou, pedindo que eu prosseguisse – Primeiro você precisa me explicar muito bem porque quer saber disso tudo. Explicar direito. Depois você vai pagar meu café. E por fim, vai responder minhas perguntas também. Concorda?

–Está bem. Eu não quero saber de nada disso, mas preciso. Não me interessa onde ele mora nem o que faz da vida, mas essas informações iriam me ajudar. Lembra-se daquele processo? É a herança da minha mãe. Minha mãe biológica, a mulher dele, que morreu há dois anos. Eu não sabia que tinha sido adotado até um ano atrás. Ele ficou com tudo, mas agora eu quero minha parte.

–E por que veio atrás dele só agora, depois de um ano?

–Eu não queria ter que vê-lo tão cedo. Continuo não gostando disso, mas preciso mesmo de um lugar pra morar. Eu tenho direito de ter pelo menos uma parte do que ficou com ele, já sou maior de idade.

–A casa que ele mora é realmente dele. Disso eu sei. – havia visto vários documentos e tudo mais.

–Mas existem outras.

–E onde está sua família adotiva? – agora queria saber toda a história.

–Meu pai morreu, e minha mãe mora na cidade vizinha. – deu pra notar que esse sim era o verdadeiro pai pra ele.

–Por que não mora com ela, e fica aí nesse trailer minúsculo?

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–Eu morava, mas isso não vem ao caso. Respondi todas as suas perguntas, não venha cobrar isso também. Já chega, ok? Vai me ajudar ou não? – devo ter tocado em alguma ferida.

–Ok. Vou encontrar o endereço dele amanhã no escritório. – decidi por fim, mesmo sabendo que eu não iria trabalhar amanhã.

–Só mais uma coisa. Como você o aguenta? – soltei uma risadinha sem graça.

–Preciso do dinheiro. – e era verdade, moro de aluguel.

Ficamos em silêncio enquanto eu terminava meu café, que ele pagou. Voltamos pro carro e seguimos pra minha casa. Ele me levou até a porta, e eu disse:

–Te ligo se descobrir alguma coisa amanhã. E não, não vou te convidar pra entrar.

–É... Obrigado. Sabe, por me ajudar. – ele disse um pouco envergonhado. – Qual é seu nome mesmo?

–Charlie. Boa noite. – e bati a porta meio que na cara dele.

Não me chame de grossa nem nada, mas não queria que ele ficasse ali. Depois de alguns minutos deitada em minha cama, a solidão me abateu novamente. Até agora, Chas me manteve distraída, só que é claro que eu tinha que me lembrar do passado. É assim todo dia.

Flashback on

Eu ria como se não houvesse amanhã. Gargalhava como nunca em meio a fumaça deixada por nossos cigarros. Ao fundo, um som velho tocava rock, nas alturas. E então a gente se atracava em meio a um trago e outro, e eu ria ainda mais. Conversas eram um pouco raras nesses momentos. Quem iria querer conversar quando se podia ser feliz? Quando minha risada acabou, ele me encarou e disse:

–Acho que por hoje já chega, não? – era sempre assim. Ele me chamava, e eu ia correndo. Fumávamos, ríamos, beijávamos, ouvíamos música e ele me mandava ir embora. E eu ia sem reclamar.

–É. Por hoje já chega. – eu dizia, não porque concordava, mas porque não queria brigar e porque estava cega de amor.

Flashback off

Lembrar dessas coisas quase sempre me dá dor de cabeça. Abro as gavetas da minha escrivaninha, em busca de um remédio. Na terceira e penúltima gaveta, a única coisa que encontro é um maço de cigarros amassado, jogado ali de qualquer jeito. Não era o que eu queria achar, não mesmo. Bato a gaveta com força, fazendo até um barulho. Eu já estou chorando. Droga.

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Hoje pude acordar mais tarde que de costume, porque não tenho que trabalhar. É meu aniversário. O que me lembra de (1) eu odeio aniversários (2) vou receber visita da “mamãe” e (3) vou ficar o dia todo em casa, me lembrando de que sim, mais um ano se passou e eu continuo aqui.

O interfone tocou e assim como ontem, era Chas. Ele deve achar que estou quase indo pro trabalho, já que hoje é sexta. Resolvi o deixar subir, só pra dizer que não estou de bom humor para perguntinhas hoje. E olhando pra mim mesma agora cheguei a brilhante conclusão de que eu deveria ter tirado o pijama. Pijama não, mas minha roupa de dormir. Um moletom cinza masculino, que fica um tanto folgado em mim. Era um dos moletons dele. Visto um short, pra não ficar tão desleixada assim. Não resolveu muito, mas tudo bem.

Abri a porta e ele estava com o mesmo estilo do outro dia, só que com outra cor de camiseta. Cabelo despenteado, igual a mim. Ele me olhou, com certeza achando um pouco estranho o fato de eu estar tão mal arrumada assim. E pior, sem maquiagem.

–O que você está olhando?

–Vai trabalhar assim? – ele falou, me analisando de cima a baixo, e agora já dentro do meu pequeno e sufocante apartamento.

–Não trabalho hoje. E também não vou responder nenhum dos seus questionamentos hoje. – ele sentou-se em minha poltrona de leitura. Que folgado. – E por sinal, eu não te convidei pra entrar, e muito menos deixei você sentar aí. – com isso ele ia levantando, mas algo o impediu.

–Chaaarlie! – uma voz feminina cantarolou meu nome do corredor do meu andar. Minha querida e doce mamãe. –Parabéns, minha filha. Veja só o que eu trou... – ela parou no batente da porta, segurando uma forma coberta por um pano. – Não sabia que teríamos companhia. Não vai me apresentar seu amigo?

–Ele não é meu amigo, já estava de saída e definitivamente não vai nos acompanhar.

–Aahn, ela tem razão. Eu já estava indo. Foi um prazer senhora. – ele ia sair, quando ela apertou a mão dele.

–Sra. Reeks, prazer. Fique conosco rapaz. Qual seu nome? – não, não. Ela não podia ter convidado ele.

–Chas. Bem, acho melhor eu ir, parece que sua filha não quer que eu fique. – isso mesmo, eu não quero. Mas fiquei calada.

–Imagina, é claro que ela não vai se importar. – e fechou a porta atrás de si. Foi até a cozinha, que era quase dentro do quarto mesmo.

–Parabéns, acaba de conseguir entrada pro dia mais traumatizante da sua vida, e o mais humilhante da minha. Você devia ter saído na primeira oportunidade, seu idiota. – disse baixinho pra ele.

–Eu posso suportar.

Explicando a situação: todo ano minha mãe traz um bolo ou algo do tipo pra mim no dia do meu aniversário e me obriga a sorrir e cantar parabéns. Só que ela nunca convida ninguém, o que é bom. Mas eu nunca gostei de comemorações, e não tenho intimidade com minha mãe. Quando sai de casa pra morar aqui, com 15 anos, ela quis me matar e nós brigamos feio. Cinco anos se passaram, nós meio que fizemos as pazes, e então ela age como se todo 24 de junho fosse nosso dia especial.

Eu nem conheço Chas direito e não sei que espécie de coisas minha mãe vai falar na frente dele, por isso não queria ele aqui.

–Meu bem, vá vestir uma roupa. – ela me disse. Fui me trocar no banheiro. De lá, pude ouvi-la dizendo que odiava todas as minhas roupas, mas que era melhor que aquele moletom ridículo.

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Depois de minha mãe ter saído, fechei a porta.

–Ufa... – disse eu, aliviada.

–Não foi tão ruim assim. – ele sorriu, e pela primeira vez consegui ver seus dentes direito. Eram brancos e alinhados. – Parabéns, Charlie Monrey Reeks. – é, ele descobriu o meu nome durante as conversas com mamãe.

–Não me chame pelo nome completo e vá embora. – disse, praticamente o expulsando.

–E quando eu posso vir atrás de você de novo? – eu olhei pra ele. – Sabe, pra te fazer mais perguntas. – completou ele.

–Hmm, quando eu descobrir o endereço do Júlio te ligo. Anota seu número aí, pra ficar mais fácil pra mim. – e joguei um bloco de notas e uma caneta pra ele.

Então ele levantou-se e, horror dos horrores, veio me abraçar. Na mesma hora eu estendi a mão, e ele a pegou.

–Tchau. – foi até a porta, a abriu e antes de fechá-la, completou: – Por sinal, você fica bonita sem maquiagem.