Nas entrelinhas

Epílogo


Para Vossa Majestade, o Senhor Cabeça de Vento:

Boa noite, Shion. Como tem passado? Eu ainda não acredito que estou fazendo isso. De longe, essa é uma das coisas mais vergonhosas que já fiz. Então trate de se contentar com o que aqui estiver escrito, certo?

Meu pequeno, eu nem sei o que dizer. Passei todo este tempo imaginando como seria quando eu estivesse a escrever tal carta, mas agora que o faço, não sei o que falar. O quão engraçado é isso? Justo eu – que te apresentei tantas palavras novas – não tenho nenhuma para expressar o que sinto? Agora, pensando nisso, tenho certeza que você saberia exatamente o que dizer. É tão bom com palavras quanto é em demonstrar seus sentimentos e esta é uma das qualidades que mais admiro em você.

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Quanto tempo faz? Um, dois anos? Não. Faz exatamente quinhentos e setenta e quatro dias. Quinhentos e setenta e quatro malditos dias que não passei ao seu lado. Que deixei de cumprir minha promessa. Mas entenda, Shion, eu tinha algumas coisas para fazer. Tinha de reconstruir o Bloco Ocidental e cuidar daqueles que restaram deste lado do muro.

Mas isso não me impediu de me sentir o cão mais miserável do mundo por tê-lo deixado. Senti-me um completo covarde. Ainda me lembro daquele dia, do sol de fim de tarde iluminando seu rosto entre minhas mãos. Lembro-me de seus dedos trêmulos puxando minha blusa como uma criança. Mas o que nós dois éramos naquele momento, se não duas crianças que relutavam em deixar a outra ir? Lembro-me de seus olhos cheios de lágrimas logo depois de eu ter afastado meus lábios dos seus. Lembro-me das suas bochechas rubras de vergonha, mesmo depois das tantas vezes em que nos tocamos daquela forma. Mas, principalmente, lembro-me de não ter olhado para trás, pois se o fizesse, eu jamais poderia ter partido. Jamais poderia tê-lo deixado se visse mais uma vez seus olhos calorosos me implorando “por favor, fica”. E eu teria ficado. Teria envolvido meus braços ao seu redor e te abraçado forte, para assegurar que ninguém pudesse te tirar de mim. Teria acarinhado seus cabelos brancos só para te ver arrepiar com meus toques. Teria sussurrado palavras carinhosas em seu ouvido, e dito que te amo quantas vezes você quisesse ouvir.

Mas não foi isso o que aconteceu. Eu não olhei para trás, não te abracei forte uma última vez e nem disse que te amava antes de partir. E é por isso que eu me odiei todos os dias desde então.

Isso é estranho, meu pequeno. É estranho te dizer todas essas coisas agora. É estranho não acordar todos os dias ao seu lado, não sentir seu corpo junto ao meu e não ver seu rosto sorridente ao dizer "bom dia". É estranho não te ter aqui comigo, advertindo-me quando eu ameaçava sair sem um agasalho em dias frios e chuvosos como os de hoje. Mas, mais do que tudo isso, é estranho como você me mudou.

Não vou mentir para você. Diversas foram as vezes em que me peguei desejando que nunca tivéssemos nos conhecido. Você é um imbecil, Shion. Destruiu tudo o que eu considerava de melhor em mim. Destruiu minha autonomia, minha independência e minha capacidade de fazer tudo sozinho, sem nunca me preocupar com mais ninguém além de mim mesmo. E eu te odiei. Odiei quando você simplesmente decidiu salvar aquela garota sem me contar; odiei seus lábios frios contra os meus ao dizer que era um “beijo de boa noite”. Mas a pior parte foi saber que você podia abrir mão de mim tão facilmente. Aquela garota, a Safu. Eu a odiei, mas não tanto quanto odiei você ao saber que havia escolhido ela e não a mim. Mas eu entendi seus motivos e escolhi te ajudar, não por ela, mas por você. Porque ela era importante para você e porque eu faria qualquer coisa para te fazer feliz. Acho que não tive tempo para te dizer que eu sinto muito por não ter conseguido salvá-la. Foi uma escolha dela, eu sei, mas não pude deixar de me sentir mal por isso. Então, bem, eu sinto muito.

Um dia você me disse que foi por minha causa que descobriu todos os sentimentos que podia ter dentro de si, mas hoje eu vejo que eu também posso dizer isso. Você me mudou, Shion, mas o mais estranho foi a forma como fez isso. Foi devagar, sem pressa. Conforme os dias foram passando, percebi que você ganhava cada vez mais espaço em meu coração, até que chegou um momento em que eu me olhei no espelho e não mais me reconheci. E agora há tanto de você em mim como há em você mesmo.

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Por Deus, ainda não acredito que estou dizendo essas coisas depois de tanto tempo. Mas se digo, é porque é verdade. Se tudo der certo, espero que esta carta chegue para você à meia-noite, senão terei que prestar contas com o carteiro que subornei. Recuso-me a perder esta data mais uma vez, então, bem, feliz aniversário meu pequeno. Este é meu presente para você e espero que não seja o suficiente, porque vamos nos reencontrar. Em breve estaremos juntos novamente, Shion.

Com todo o amor que houver nesta vida, para o meu cabeça de vento,

Nezumi

*

Apertei a carta entre os dedos e desabei num choro constante. As lágrimas fluíam pela minha face de tal modo que pensei não poder contê-las com o travesseiro. Nezumi... Ele se lembrou de mim, do meu aniversário. Nezumi...

Meu coração batia forte dentro do peito e uma esperança inexplicável nasceu dentro de mim ao reler aquelas últimas palavras:

“Em breve estaremos juntos novamente, Shion”. Passei a ponta dos dedos sobre o papel marcado com sua caligrafia.

— O melhor presente que eu poderia ter ganhado. Obrigado, Nezumi – murmurei para mim mesmo com um sorriso bobo nos lábios.

Um arrepio percorreu todo o meu corpo ao sentir aquele vento frio das noites de inverno. Só então lembrei que a janela estava aberta. Levantei-me para fechá-la e congelei. Fiquei paralisado com aquela imagem. As cortinas tremulavam e cobriam parcialmente o vulto negro em minha frente, e só quando o vento cessou, fui capaz de ver aqueles olhos prateados brilhando sob a luz cálida da lua. E assim, senti meu coração se encher de alegria ao ouvir aquela voz suave de que tanto senti a falta dizer:

— Espero que você me esquente, Shion, porque eu estou congelando aqui fora.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.