Estava frio, a cidade deserta. O vento levantava as folhas de papel do chão. Não cheguei a tempo. Já não havia mais pessoas despreocupadas andando pelas ruas. Não havia mais os robôs que limpavam a cidade. Não havia flores nas árvores, sorrisos em cada esquina, cães brincando com seus donos. Não mais. No. 6 estava agora tomada por uma atmosfera fria e morta, pois era só isso que havia ali. Era apenas isso que ficou para trás.

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A neve dificultava meu caminho. Cambaleava pelas ruas, arrastando os pés. Já não podia mais andar normalmente. Não podia acreditar no que eu estava vendo. Mas continuei em frente, pois era só isso que eu podia fazer. “Siga em frente. Deixe o passado para trás”, era o que Nezumi certamente me diria. Quase pude ouvir suas risadas diante de tamanha tragédia. Ele com toda a certeza ficaria feliz ao ver aquilo, afinal, esse era seu maior desejo. Seu maior desejo... Como é possível alguém se sentir realizado diante de tamanha tragédia? Eu entendo que algo ruim aconteceu entre ele e essa cidade, mas por que todos eles tiveram que pagar por isso? Por que ele não pode entender meu lado? Por que ele insiste em não me enxergar?

Não vou mentir para mim mesmo. Eu não poderia fazer isso. Nezumi foi a melhor coisa que me aconteceu. Desde aquela noite, durante a tempestade... Nada mais foi como antes. Ele simplesmente apareceu, fez com que meu mundo virasse de cabeça para baixo e partiu. Não houve um único dia naqueles quatro anos em que sua imagem não me viesse à mente. Ele foi embora e isso abriu uma ferida dolorosa em meu peito. Nada mais fez sentido desde então. E quando ele voltou, quando eu segui aquele rato na rua, quando ele me salvou daqueles malditos policiais... Senti a maior felicidade do mundo. Por um momento esqueci que tinha que fugir. Esqueci que havia algo muito errado com aquela cidade. Esqueci que não poderia mais voltar. Ele me salvou de tantas maneiras... Não apenas minha vida. Ele me salvou de uma mentira contada desde quando eu era pequeno. E não pediu nada em troca. Apenas me salvou. Chegará o momento em que precisarei tomar uma decisão, o momento no qual eu terei que escolher. “Shion, No. 6 ou eu. Quem você escolhe?”. As palavras de Nezumi ainda ecoavam em minha mente...

“Ai!”. Meus pensamentos foram interrompidos quando tropecei em algo sob a neve. “Mas o que...?”. Quando baixei os olhos para descobri no que tinha tropeçado, vi uma mão azulada e ferida encostada em meu sapato. Um corpo. Um cadáver sob a neve. Desviei os olhos assustado, a neve vermelha brilhando diante de mim. O rosto parcialmente encoberto apresentava cortes e hematomas. Havia sangue coagulado saindo do nariz e das órbitas vazias onde deviam estar os olhos. A boca estava aberta e eu quase pude ouvi-lo gritando, agonizando até a morte. Senti meu estômago embrulhar. O corpo já estava em estado avançado de decomposição e agora pude sentir seu odor fétido. Não pude mais segurar. Limpei a boca e olhei adiante. Dezenas de corpos enterrados na neve escarlate. Membros espalhados pela calçada, os rostos desfigurados... Todos tiveram a mesma morte cruel e dolorosa. A mesma morte que deveria ter me alcançado se Nezumi não tivesse salvado minha vida: abelhas. Aquelas malditas abelhas mutantes dizimaram No. 6. Cheguei tarde demais.

Corri. Passei pelos corpos sem fitá-los, tropecei em alguns mas não pude parar. Não pude olhar para trás. Virei em algumas esquinas sem saber bem para onde estava indo, apenas sabia que não poderia ficar ali. Não queria ficar ali. Eu poderia ter detido aquilo, mas cheguei tarde demais. Não havia mais ninguém a ser salvo. Não havia nada mais além da morte. Os cadáveres se amontoavam por toda parte, nas portas das casas e pendurados nas janelas. E tudo o que pude fazer foi fugir. Como sempre fazia.

De repente, senti algo se enroscando em meu pé. Caí imediatamente, o baque surdo de meus joelhos colidindo com o asfalto sendo abafado pela cobertura de neve. Senti um vento frio balançando meus cabelos, um arrepio em minha nuca. Havia algo atrás de mim e eu sabia o que era. Hesitei. Não queria olhar. “Não pode ser”, pensei. Senti meu peito apertar antes mesmo de me virar para ver. Ouvi o som de carne sendo mastigada e ruídos de roedores. Levantei-me e respirei fundo, só para me virar e confirmar o que temia: o corpo de minha mãe diante de mim, sendo devorado por vinte ou trinta ratos. Coloquei a mão sobre a boca, descrente do que via. Foi como se tivessem arrancado algo de meu peito. Meu coração batia rápido, doía. Comecei a chorar compulsivamente ao ver seu rosto, a boca torcida numa expressão de dor, como se um grito por ajuda tivesse morrido antes mesmo de chegar aos seus lábios.

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Fiquei de pé diante de seu corpo por alguns instantes, até que enxuguei as lágrimas e tentei, inutilmente, afastar os ratos. Comecei a gritar com eles. Mandei-os ao inferno. Amaldiçoei todos os santos, as palavras cuspidas de minha boca se misturando com meu pranto. Até que ouvi um som, um ruído maldito saído da boca do inferno. Um zunido, aquele que é emitido pelo bater de asas de uma abelha. Ou várias delas. Olhei para o final da rua, por onde eu tinha chegado, e vi dezenas, centenas de abelhas gigantes vindo em minha direção. Meus olhos se arregalaram incrédulos. Estavam a duzentos metros de mim, a distância diminuindo a cada milésimo de segundo em que eu não me movia. Meu estado de choque foi quebrado quando percebi que até os ratos fugiam. Decidi fazer o mesmo.

Virei-me e corri. Corri com as últimas forças que me restavam. Entrava nas esquinas e olhava para trás, mas elas ainda estavam ali. Ainda me seguiam. Não, elas me caçavam. Eu era apenas uma presa indefesa que cedo ou tarde cansaria de fugir. E não havia esconderijos onde elas não pudessem me alcançar. Não havia um só lugar onde eu pudesse me esconder.

Eu já não aguentava mais correr quando virei num beco estreito e fétido. Não havia saída. Desviei de um cadáver e me escondi atrás de uma lata de lixo. Ouvi os zunidos se aproximando, o bater de asas do inferno. Vi por uma fresta elas passarem em frente ao beco, me procurando. Coloquei a mão sobre a boca a fim de abafar minha respiração irregular e acelerada. Passaram por mim e seguiram em frente, os zunidos se afastando lentamente.

Fiquei imóvel por alguns minutos, me certificando de que elas não estavam mais ali, procurando ouvir até o menor ruído. Havia apenas minha respiração.

Era um beco alto, entre duas grandes casas. O céu nublado, a atmosfera fria. O odor de putrefação. Era só mais um lugar como os que se encontravam dos destroços do que, um dia, foi o império No. 6.

Já estava prestes a sair quando algo me disse para olhar para cima. Uma abelha surgiu entre os telhados das casas, logo acima de minha cabeça. Pensei em correr, mas o enxame agora bloqueava minha única saída. “Não, não posso morrer aqui. Nezumi não sabe o que eu... Nezumi...”. Meus olhos se encheram de lágrimas enquanto meu coração apertava em desespero e medo. Medo de morrer, sim, mas meu maior medo era de nunca mais poder estar com ele. Meu maior medo era de não poder tê-lo para mim, não poder protegê-lo ou estar com ele quando precisasse. Ele não tinha a mais ninguém. Ele precisava de mim e ouso dizer que eu precisava ainda mais dele. Não conseguia suportar a ideia de perdê-lo. Não desta vez.

Todos esses pensamentos ocorreram num monólogo em minha mente, tudo isso naquele instante em que vi o enxame se aproximar. Empurrei-me contra o ângulo entre a parede e o muro, na esperança de que pudesse atravessá-lo. Mas não havia saída e eu sabia disso. Olhei para o céu incrédulo, a abelha descendo lentamente enquanto o enxame se aproximava pelo beco. Não rezei. Não pedi a Deus que me livrasse de todo o mal. Deus não estava ali. E eu não queria que Ele visse aquilo. Não gritei por socorro. Não chamei por ajuda. Apenas chamei quem eu mais queria ver. Chamei por quem mais amava. Havia medo e desespero em minha voz quando estendi a mão para o alto e gritei a plenos pulmões:

— NEZUMI!

Levantei assustado, suando frio. Eu estava deitado em nossa cama, em nosso quarto, rodeado por nossas estantes entupidas de livros. Ele estava ali, segurando minha mão, com uma expressão confusa no rosto. “Um pesadelo”.

— “Isso é apenas um sonho, Alice” — sussurrou com um sorriso gentil e desafiador nos lábios.

— Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas.

— Muito bem, mas essa foi fácil. — disse ele baixando os olhos.

— Sim, mas pode perguntar uma mais difícil. Eu posso te surpreender!

— Certo, vejamos... — ele suspirou e olhou para mim, olhou em meus olhos. Senti uma sensação estranha na boca do estômago, a mesma sensação que eu sempre sinto quando ele esquece os olhos nos meus. Desviou o olhar para as estantes, como se procurasse uma frase perdida nos livros enfileirados. Apertou a vista e sorriu, certamente encontrando o que procurava. — Bem, adivinhe: — ele ainda segurava minha mão quando a puxou contra seu peito, estendeu a outra para o alto e começou a interpretar — “Acautelai-vos senhor, do ciúme; é um monstro de olhos verdes, que zomba do alimento de que vive”.

Nezumi era completamente diferente quando encenava. Era como se ele se libertasse de toda dor que sentira até ali. Como se nada mais além da arte importasse. Fiquei extasiado com cada palavra, cada gesto. Seus olhos cinzentos brilhavam contra a luz. Quase não percebi que ele segurava firme minha mão. Quase não percebi que eu também apertava a sua com força.

— Shion? — chamou — Está tudo bem?

— Oh sim. — respondi, soltando nossas mãos — Ah, essa é Otelo, de Shakespeare.

— Muito bem — disse ele sorrindo, enquanto bagunçava meus cabelos e se sentava na beira da cama — Ande logo, vá mais para lá.

Me afastei e permiti que ele se sentasse ao meu lado.

— Shion, antes, enquanto dormia, você me assustou — disse calmamente, enquanto fitava o teto.

— Ah, sim. Nezumi, me desculpe por isso. Não quis te preocupar.

— O que houve? O que você sonhou?

— Não é nada demais — menti. Só então percebi que ainda estava assustado, que meu coração ainda batia rápido.

— Shion... — ele se virou para mim, os olhos nos meus. Aqueles olhos, seus movimentos, sua expressão. Tudo isso era uma droga para mim. Quanto mais você usa, mais você quer. Até que chegará o momento em que isso te fará mal. E você não vai querer parar. Será apenas uma questão de necessidade. E eu sabia. Já não tinha mais volta. Isso era parte de mim agora. Ele era parte de mim. Desviei o olhar para minhas mãos, que apertavam o cobertor contra meu peito. — Shion, você gritou meu nome — sua voz estava diferente. O que era aquilo? Preocupação? — Shion, preciso saber do que você tem medo. Preciso saber como posso te proteger. O que mais te assusta?

Ele olhava fixamente para mim, como se tentasse ver a resposta através dos meus olhos. E estava ali, sempre esteve. Levantei os olhos e olhei fundo nos dele, de forma a deixar o mais claro possível. Agora ele podia ver através de mim, tão claro como podemos ver o fundo de um lago de águas cristalinas. Pude perceber o momento exato no qual ele encontrou a resposta. Seus olhos se arregalaram, quase tanto quanto no dia em que toquei seu pescoço, o dia em que eu disse que meu maior medo era perdê-lo. Se ele ainda tinha dúvidas quanto a isso, essas dúvidas foram arrancadas de seu coração naquele instante.

— Shion, eu...

— Você já sabe a resposta. Eu já havia dito isso antes, não? Nezumi, o que eu mais tenho medo é te perder. Eu meu pesadelo eu estava prestes a morrer, mas só consegui pensar em você. Pensar que não mais te veria. Só consegui pensar que eu precisava de você, como sempre precisei. Mas eu não queria que você me salvasse porque isso você já fez. O que eu queria mesmo era sair correndo e te encontrar. Eu não podia morrer sem dizer... Sem que você soubesse... — as palavras não saíram. Sufocaram em minha garganta. Morreram antes mesmo de chegarem aos meus lábios. Fechei os olhos e abaixei a cabeça, respirando fundo. Porque estou dizendo isso? Que diferença isso faz agora? Tínhamos coisas mais importantes para resolver.

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— Shion... — ele pegou minha mão e com a outra segurou meu rosto próximo ao dele. Meu coração acelerou, batia forte. Será que ele está ouvindo? Levantou meu rosto e olhou dentro dos meus olhos — Shion, eu estou aqui agora, não estou? — sussurrou, a voz doce e suave próxima ao meu rosto. Assenti. — Então saiba eu sempre estarei aqui para você. Não precisa se preocupar. Você não vai me perder. Sou eu quem não pode mais... — se calou de repente. “O quê? O que você ia dizer?”. Ele riu da minha confusão, da minha inquietação. — Ah, Shion. Você é único.

Soltou meu rosto e minha mão e se deitou ao meu lado, os braços cruzados atrás da cabeça. Puxei parte do cobertor para cobri-lo, mas ele recusou. Só ficou ali, olhando o teto e através dele, quando suspirou:

—... viver sem você — murmurou, como que para ele mesmo. Como se pensasse alto.

— Ah? O quê? Do que você está falando — perguntei, olhando-o confuso, observando cada traço de sua expressão facial. Ele sorria gentilmente para o teto, até que olhou para mim e se inclinou sobre meu rosto, colocando um braço de cada lado de minha cabeça.

— Ah, Shion... Você não tem mesmo experiência com essas coisas — sussurrou em meu ouvido. Meu coração disparou. Sua voz assim, tão íntima para mim... Senti um arrepio que tomou conta de todo o meu corpo.

— Coisas? Nezumi, não sei do que... — e antes que pudesse terminar minha frase, senti os lábios macios de Nezumi tocando gentilmente os meus.